CG28

Reavivar o dom que recebestes

Aos participantes no Capítulo Geral dos Salesianos

Valdocco, 16 de fevereiro – 4 de abril 2020

 

Queridos irmãos!

Saúdo-vos com afeto e agradeço a Deus por poder, mesmo à distância, partilhar convosco um momento do caminho que estais a percorrer.

É significativo que, depois de algumas décadas, a Providência vos tenha conduzido a celebrar o Capítulo Geral em Valdocco – o lugar da memória onde o sonho fundador se concretizou e deu os primeiros passos. Estou certo que o rumor e as vozes dos oratórios será a melhor música, a mais eficaz, para que o Espírito anime o dom carismático do vosso fundador. Não fecheis as janelas a este rumor de som de fundo... Deixai que vos acompanhe e que vos mantenha inquietos e intrépidos no discernimento; e permiti que estas vozes e estes cânticos, por sua vez, evoquem em vós os rostos de tantos outros jovens, que, por várias razões, se encontram como ovelhas sem pastor (cfr. Mc 6, 34). Este rumor e esta ansiedade manter-vos-ão atentos e em alerta a qualquer tipo de anestesia autoimposta e ajudar-vos-ão a permanecer em fidelidade criativa à vossa identidade salesiana.

 

Reavivar o dom que recebestes

 

Pensar na figura do salesiano para os jovens de hoje, implica aceitar que estamos imersos num momento de mudanças, com tudo aquilo que esta incerteza gera. Ninguém pode dizer com certeza e precisão (se alguma vez foi possível fazê-lo) o que irá acontecer no futuro próximo a nível social, económico, educativo e cultural. A inconsistência e a "fluidez" dos acontecimentos, mas sobretudo a rapidez com que se sucedem e comunicam as coisas, faz com que todo o tipo de previsão se torne uma leitura condenada a ser reformulada muito em breve (cf. Constituição Apostólica Veritatis gaudium, 3-4). Esta perspetiva é ainda mais acentuada pelo facto de as vossas obras estarem particularmente orientadas para o mundo dos jovens, que em si mesmo é um mundo em movimento e em contínua transformação. Isto exige uma dupla docilidade: docilidade aos jovens e às suas exigências e docilidade ao Espírito e a tudo aquilo que Ele deseja transformar.

Assumir responsavelmente esta situação – quer a nível pessoal, quer a nível comunitário – comporta sair de uma retórica que nos leva a dizer continuamente “tudo está em mudança” e que, à força de o repetir, termina por fixar-nos numa inércia paralisante que priva a vossa missão da parrésia própria dos discípulos do Senhor. Tal inércia pode também manifestar-se num olhar e numa atitude pessimista diante de tudo aquilo que nos circunda e não só no que se refere às transformações que acontecem na sociedade, mas também em relação à própria Congregação, aos irmãos e à vida da Igreja. Esta atitude que acaba por “boicotar” e impedir qualquer resposta ou processo alternativo, ou por fazer emergir a posição oposta: um otimismo cego, capaz de dissolver a força e a novidade evangélica, impedindo aceitar concretamente a complexidade que as situações exigem e a profecia que o Senhor nos convida a levar por diante. Nem o pessimismo nem o otimismo são dons do Espírito, pois ambos provêm de uma visão autorreferencial capaz de ser medida só com as próprias forças, capacidades ou competências, impedindo de olhar àquilo que o Senhor atua e quer realizar entre nós (cfr. Esrot. Ap. postsin. Christus vivit, 35). Nem adaptar-se à cultura da moda, nem refugiar-se num passado heroico, mas já desencarnado. Nos tempos de mudança, faz bem ater-se às palavras de S. Paulo a Timóteo: “Por isso recomendo-te que reanimes o dom de Deus que se encontra em ti, pela imposição das minhas mãos, pois Deus não nos concedeu um espírito de timidez, mas de fortaleza, de amor e de sabedoria.” (2 Tm 1,6-7).  

Estas palavras convidam-nos a cultivar uma atitude contemplativa, capaz de identificar e discernir os pontos nevrálgicos. Isto ajudará a entrar no caminho com o espírito e o contributo próprio dos filhos de Dom Bosco e, como ele, desenvolver uma “válida revolução cultural” (Enc. Laudato si’, 114). Esta atitude contemplativa permitir-vos-á superar e ultrapassar as vossas próprias expetativas e os vossos programas. Somos homens e mulheres de fé, o que supõe ser apaixonados por Jesus Cristo; e sabemos que tanto o nosso presente como o nosso futuro estão impregnados desta força apostólico-carismática chamada a continuar a permear a vida de tantos jovens abandonados e em perigo, pobres e necessitados, excluídos e descartados, privados dos seus direitos, de casa... Estes jovens esperam um olhar de esperança capaz de contrariar todo o tipo de fatalismo ou determinismo. Esperam cruzar-se com o olhar de Jesus que lhes diz que “em todas as situações “escuras ou dolorosas […] há uma via de saída» (Exort. ap. postsin. Christus vivit, 104). É ali que habita a nossa alegria.

Nem pessimista nem otimista, o salesiano do séc. XXI é um homem cheio de esperança porque sabe que o seu centro está no Senhor, capaz de fazer novas todas as coisas (cfr. Ap 21, 5). Só isto nos salvará de viver numa atitude de resignação e sobrevivência defensiva. Só isto tornará fecunda a nossa vida (cfr. Homilia, 2 fevereiro 2017), porque tornará possível que o dom recebido continuará a ser experimentado e expresso como uma boa notícia para e com os jovens de hoje. Esta atitude de esperança é capaz de instaurar e inaugurar processos educativos alternativos à cultura imperante que, em não poucas situações - quer pela indigência ou pobreza extrema quer por abundância, em alguns casos também extrema -, acabam por asfixiar e matar os sonhos dos nossos jovens condenando-os a um conformismo ensurdecedor, adulador e não poucas vezes narcotizado. Nem triunfalistas nem alarmistas, homens e mulheres alegres e com esperança, não automatizados mas artesãos; capazes de «mostrar outros sonhos que este mundo não oferece, de testemunhar a beleza da generosidade, do serviço, da pureza, da fortaleza, do perdão, da fidelidade à própria vocação, da oração, da luta pela justiça e o bem comum, do amor aos pobres, da amizade social» (Exort. ap. postsin. Christus vivit, 36).

A “opção Valdocco” do vosso 28º Capítulo Geral é uma boa ocasião para se confrontar com as fontes e pedir ao Senhor: “Da mihi animas, coetera tolle.[1] Tolle sobretudo aquilo que durante o caminho se foi incorporando e perpetuando e que, ainda que noutro tempo tivesse sido uma resposta adequada, hoje vos impede de configurar e plasmar a presença salesiana de maneira evangelicamente significativa nas diversas situações da missão. Isto pede, da nossa parte, superar os medos e as apreensões que podem surgir por ter acreditado que o carisma se reduzisse ou identificasse com determinadas obras ou estruturas. Viver fielmente o carisma é qualquer coisa mais rica e estimulante que o simples abandono, remedeio ou readaptação das casas ou das atividades; comporta uma mudança de mentalidade diante da missão a realizar.[2]

 

A “opção Valdocco” e o dom dos jovens

 

O Oratório salesiano e tudo aquilo que nasce a partir dele, como narra a Biografia do Oratório, nasce como resposta à vida dos jovens com um rosto e uma história, que colocam em movimento aquele jovem sacerdote incapaz de permanecer neutral e imóvel diante daquilo que acontecia. Foi muito mais do que um gesto de boa vontade ou de bondade, e muito mais do que o resultado de um projeto de estudo sobre a “viabilidade numérico-carismática”. Penso nisso como um ato de conversão permanente e de resposta ao Senhor que, “cansado de bater” às nossas portas, espera que o procuremos e que o encontremos... Ou que o deixemos sair, quando bate de dentro. Conversão que implica (e complica) toda a sua vida e a vida daqueles que estavam à sua volta. Dom Bosco não só não escolhe separar-se do mundo para procurar a santidade, mas deixa-se interpelar e escolhe como e que mundo habitar. 

Escolhendo e acolhendo o mundo das crianças e dos jovens abandonados, sem trabalho, nem formação, permitiu-lhes experimentar de modo tangível, a paternidade de Deus e deu-lhes os instrumentos para narrar a sua vida e a sua história à luz de um amor incondicional. Eles, por sua vez, ajudaram a Igreja a reencontrar-se com a sua missão: “A pedra rejeitada pelos construtores tornou-se pedra angular” (Sal 118, 22). Longe de serem agentes passivos ou espectadores da obra missionária, tornaramse, a partir da sua própria condição - em muitos casos "religiosos analfabetos" e "socialmente analfabetos" - os principais protagonistas de todo o processo de fundação.[3] A salesianidade nasce precisamente deste encontro capaz de suscitar profecias e visões: acolher, integrar e fazer crescer as melhores qualidades como dom para os outros, sobretudo para os marginalizados e abandonados de quem não se espera nada. Disse-o Paulo VI: “Evangelizadora como é, a Igreja começa por se evangelizar a si mesma... Numa palavra, é o mesmo que dizer que ela tem sempre necessidade de ser evangelizada, se quiser conservar frescor, alento e força para anunciar o Evangelho (Exort. ap. Evangelii nuntiandi, 15). Cada carisma precisa de ser renovado e evangelizado e no vosso caso sobretudo pelos jovens mais pobres.

Os interlocutores de Dom Bosco ontem e do salesiano hoje não são meros destinatários de uma estratégia antecipadamente projetada, mas protagonistas vivos do oratório a realizar.[4] Por meio deles e com eles o Senhor mostra-nos a sua vontade e os seus sonhos.[5] Poderíamos chamarlhes cofundadores das vossas casas, onde o salesiano será especialista em convocar e em gerar este tipo de dinâmicas sem se sentir o patrão. Uma união que nos recorda que somos “Igreja em saída” e que nos mobiliza para isto: Igreja capaz de abandonar posições cómodas, seguras e em certas ocasiões privilegiadas, para encontrar nos últimos a fecundidade típica do Reino de Deus. Não se trata de uma escolha estratégica, mas carismática. Uma fecundidade suportada em base à Cruz de Cristo, que é sempre injustiça escandalosa para quantos bloquearam a sensibilidade diante do sofrimento ou que desceram a pactos com a injustiça diante do inocente. «Não podemos ser uma Igreja que não chora à vista destes dramas dos seus filhos jovens. Não devemos jamais habituar-nos a isto, porque, quem não sabe chorar, não é mãe. Queremos chorar para que a própria sociedade seja mais mãe» (Exort. ap. postsin. Christus vivit, 75).

 

A “opção Valdocco” e o carisma da presença

 

É importante dizer que não somos formados para a missão, mas que somos formados na missão, a partir da qual se articula toda a nossa vida, com as suas escolhas e as suas prioridades. A formação inicial e a permanente não podem ser uma instância prévia, paralela ou separada da identidade e da sensibilidade do discípulo. A missão inter gentes é a nossa melhor escola: a partir dela rezamos, refletimos, estudamos, repousamos. Quando nos isolamos ou nos afastamos do povo que somos chamados a servir, a nossa identidade como consagrados começa a desfigurar-se e a tornar-se uma caricatura.

Neste sentido, um dos obstáculos que podemos identificar não tem tanto a ver com uma qualquer situação externa às nossas comunidades, mas é aquilo que nos toca diretamente por uma experiência distorcida do ministério..., e que nos faz tanto mal: o clericalismo. É a procura pessoal de querer ocupar, concentrar e determinar os espaços minimizando e anulando a unção do Povo de Deus. O clericalismo, vivendo o chamamento de forma elitista, confunde a eleição com o privilégio, o serviço com o servilismo, a unidade com a uniformidade, a discrepância com a oposição, a formação com a doutrinação. O clericalismo é uma perversão que favorece as ligações funcionais, paternalistas, possessivas e até manipuladoras com o resto das vocações na Igreja.

Outro obstáculo que encontramos – difundido e até justificado, sobretudo neste tempo de precariedade e fragilidade – é a tendência para o rigorismo. Confundindo autoridade com autoritarismo, pretende-se governar e controlar os processos humanos com uma atitude escrupulosa, severa e até mesquinha perante os limites e as debilidades próprias ou dos outros (sobretudo dos outros). O rigorista esquece que o grão e o joio crescem juntos (cfr. Mt 13, 24-30) e que «nem todos podem tudo», e que, nesta vida, as fragilidades humanas não são curadas, completamente e duma vez por todas, pela graça. Em todo o caso, como ensinava Santo Agostinho, Deus convida-te a fazer o que podes e «a pedir o que não podes» (Esort. ap. Gaudete et exsultate, 49). São Tomás de Aquino com grande finura e subtileza espiritual recorda-nos que «o diabo engana muitos. Alguns atraindo-os a cometer pecados, outros a um excessivo rigor para com aqueles que pecam, de modo que, se não pode tê-los por comportamento vicioso, leva à perdição aqueles que já tem, usando o rigor dos prelados, que, não os corrigindo com misericórdia, os induzem ao desespero, e assim se perdem e caem na rede do diabo. E isto acontece connosco, se não perdoarmos aos pecadores».[6]

Aqueles que acompanham outros a crescer devem ser pessoas de grandes horizontes, capazes de colocar juntos limites e esperança, ajudando assim a olhar sempre em perspetiva, numa prospetiva salvífica. Um educador «que não teme pôr limites e, ao mesmo tempo, se abandona à dinâmica da esperança expressa na sua confiança na ação do Senhor dos processos, é imagem de um homem forte, que guia aquilo que não lhe pertence, mas ao seu Senhor».[7] Não nos é lícito sufocar e impedir a força e a graça do possível, cuja realização esconde sempre uma semente de Vida nova e boa. Aprendemos a trabalhar e a confiar nos tempos de Deus, que são sempre maiores e mais sábios que as nossas míopes medidas. Ele não quer destruir ninguém, mas salvar a todos.

É urgente, por isso, encontrar um estilo de formação capaz de assumir de modo estrutural o facto de que a evangelização implica a participação plena, e de pleno direito, de cada batizado – com todas as suas potencialidades e os seus limites – e não apenas os assim chamados “atores qualificados” (cfr. Exort. ap. Evangelii gaudium, 120); uma participação em que o serviço, e o serviço ao mais pobre, seja o eixo portante que ajuda a manifestar e a testemunhar melhor nosso Senhor, «que não veio para ser servido, mas para servir e dar a própria vida em resgate de muitos» (Mt 20,28). Encorajo-vos a continuar a empenhar-vos em fazer das vossas casas um “laboratório eclesial” capaz de reconhecer, apreciar, estimular e encorajar os diversos chamamentos e missões na Igreja.[8]

Neste sentido, penso concretamente em duas presenças da vossa comunidade salesiana, que podem ajudar como elementos a partir dos quais confrontar o lugar que ocupam as diferentes vocações entre vós; duas presenças que constituem o “antídoto” contra todo o tipo de tendência clericalista e rigorista: o Irmão Coadjutor e as mulheres.

Os Irmãos Coadjutores são expressão da vida de gratuidade que o carisma vos convida a conservar. A vossa consagração é, antes de mais, sinal de um amor gratuito do Senhor e ao Senhor nos seus jovens que não se define principalmente como um ministério, uma função ou um serviço particular, mas através de uma presença. Antes ainda do que o que fazer, o salesiano é memória viva de uma presença em que a disponibilidade, a escuta, a alegria e a dedicação são as notas essenciais para suscitar processos. A gratuidade da presença salva a Congregação de todas as obsessões ativistas e de todos os reducionismos técnico-funcionais. O primeiro chamamento é ser uma presença alegre e gratuita entre os jovens.

Que seria de Valdocco sem a presença de Mãe Margarida? Teriam sido possíveis as vossas casas sem esta mulher de fé? Nalgumas regiões e lugares «há comunidades que se mantiveram e transmitiram a fé durante longo tempo, mesmo decénios, sem que algum sacerdote passasse por lá. Isto foi possível graças à presença de mulheres fortes e generosas, que batizaram, catequizaram, ensinaram a rezar, foram missionárias, certamente chamadas e impelidas pelo Espírito Santo. Durante séculos, as mulheres mantiveram a Igreja de pé nesses lugares com admirável dedicação e fé ardente» (Exort. ap. postsin. Querida Amazónia, 99). Sem uma presença real, efetiva e afetiva das mulheres, às vossas obras faltaria coragem e capacidade para declinar a presença como hospitalidade, como casa. Diante do rigor que exclui, é preciso aprender a gerar nova vida do

Evangelho. Convido-vos a levar por diante dinâmicas nas quais a voz da mulher, a sua visão e o seu agir – apreciado na sua singularidade – encontrem eco ao serem tomadas decisões; como um ator não auxiliar, mas constitutivo das vossas presenças.

 

A “opção Valdocco” na pluralidade das línguas

 

Como noutros tempos, o mito de Babel procura impor-se em nome da globalidade. Inteiros sistemas criam uma rede de comunicação global e digital capaz de interconectar os diferentes ângulos do planeta, com grave perigo de uniformizar monoliticamente as culturas, privando-as das suas caraterísticas essenciais e dos seus recursos. A presença universal da vossa família salesiana é um estímulo e um convite a guardar e preservar a riqueza de muitas culturas em que estais imersos sem procurar

“homogeneizá-las”. Por outro lado, esforçai-vos para que o cristianismo seja capaz de assumir a língua e a cultura das pessoas do lugar. É triste ver que em muitos lugares se sente ainda a presença cristã como uma presença estrangeira (sobretudo europeia): situação que se verifica também nos itinerários formativos e nos estilos de vida (cfr ibid., 90).[9] Pelo contrário, agiremos como nos inspira aquele episódio em que Dom Bosco, à pergunta sobre que língua gostava de falar, responde: “Aquela que me ensinou a minha mãe: é aquela com que posso comunicar mais facilmente”. Seguindo esta certeza, o salesiano é chamado a falar na língua materna de todas as culturas em que se encontra. A unidade e a comunhão da vossa família estão em condições de assumir e acentuar todas estas diferenças, que podem enriquecer todo o corpo numa sinergia de comunicação e interação em que cada um possa oferecer o melhor de si para o bem de todo o corpo. Assim a salesianidade, em vez de se perder na uniformidade das tonalidades, conquistará uma expressão mais bela e atrativa... saberá expressar-se “em dialeto” (cfr 2 Mac 7,26-27). 

Ao mesmo tempo, a irrupção da realidade virtual como linguagem dominante em muitos dos Países em que realizais a vossa missão, exige, em primeiro lugar, reconhecer todas as possibilidades e as coisas boas que produz, sem subvalorizar ou ignorar a incidência que possui para criar ligações, sobretudo afetivas. Disto não estamos imunes nem sequer nós adultos consagrados. As tão difundida (e necessária) “pastoral do monitor” pede-nos que habitemos a rede de forma inteligente reconhecendo-a como um espaço de missão[10] que requer, por sua vez, colocar todas as mediações necessárias para não permanecer prisioneiros da sua circularidade e da sua lógica particular (e dicotómica). Esta armadilha – mesmo em nome da missão – pode-nos fechar sobre nós próprios e isolar-nos numa virtualidade cómoda, supérflua, e pouco ou nada empenhada na vida dos jovens, dos irmãos da comunidade ou dos trabalhos apostólicos. A rede não é neutra e o poder que possui para criar cultura é muito alto. Sob o avatar da proximidade virtual podemos ficar cegos ou distantes da vida concreta das pessoas, sufocando ou empobrecendo o vigor missionário. O redobrarse individualista, tão difundido e proposto socialmente nesta cultura amplamente digitalizada, exige uma atenção especial não apenas no que se refere aos nossos modelos pedagógicos, mas também ao uso pessoal e comunitário do tempo, das nossas atividades e dos nossos bens.

 

A “opção Valdocco” e a capacidade de sonhar

 

Um dos “géneros literários” de Dom Bosco eram os sonhos. Com eles o Senhor fez-se caminho na sua vida e na vida de toda a vossa Congregação alargando a imaginação do possível. Os sonhos, longe de o adormecerem, ajudaram-no, como aconteceu a São José, a assumir uma outra espessura e uma outra medida de vida, que nascem das entranhas de compaixão de Deus. Era possível viver concretamente o Evangelho... sonhou-o e deu-lhe forma no Oratório.

Gostaria de vos oferecer estas palavras como as “boas noites” em toda a boa casa salesiana ao terminar o dia, convidando-vos a sonhar e a sonhar em grande. Sabeis que o resto vos será dado como acrescento. Sonhai casas abertas, fecundas e evangelizadoras, capazes de permitir ao Senhor mostrar a tantos jovens o seu amor incondicional, e a vós gozar a beleza a que fostes chamados. Sonhai... E não só para vós e para o bem da Congregação, mas para todos os jovens privados da força, da luz e do conforto da amizade com Jesus Cristo, privados de uma comunidade de fé que os sustenha, de um horizonte de sentido de vida (cfr Exort. ap. Evangelii gaudium, 49). Sonhai... e fazei sonhar! 

Roma, São João Latrão, 4 de março 2020

 


[1] Lema gravado a fogo nos primeiros missionários. Lembro-me da carta de Dom Giacomo Costamagna a Dom Bosco onde, depois de lhe contar as dificuldades da viagem e os vários fracassos que tiveram que enfrentar, concluiu dizendo: "Pedimos unânimes apenas uma coisa: poder ir logo para a Patagónia para salvar incontáveis almas". A consciência de ser enviado para procurar almas nos subúrbios e de permanecer superando qualquer aparente fracasso, é uma nota de identidade com base na qual se pode comparar e medir o carisma: "Da mihi animas, coetera tolle".

[2] Recordamos a advertência do Senhor: “Desprezando o mandamento de Deus, guardais a tradição dos homens” (Mc 7,8).

[3] Graças à ajuda do sábio Cafasso, Dom Bosco descobriu quem era aos olhos dos jovens presos; e aqueles jovens presos descobriram um novo rosto no olhar de Dom Bosco. Então, juntos descobriram o sonho de Deus, que precisa destes encontros para se manifestar. Dom Bosco não descobriu a sua missão diante de um espelho, mas na dor de ver jovens que não tinham futuro. O salesiano do século XXI não descobrirá a sua própria identidade, se não for capaz de sofrer com "a quantidade de jovens saudáveis e fortes, de espírito vivo, que estavam na prisão atormentados e completamente despojados de alimento espiritual e material... Neles estava representada a odiosidade da pátria, a desonra da família". (Memorie dell’Oratorio di san Francesco di Sales, 48); e nós poderemos acrescentar: da nossa própria Igreja.

[4] Hoje vemos como em muitas regiões os jovens são os primeiros a levantar-se, a organizar-se e a promover causas justas. As vossas casas salesianas, longe de impedir este despertar, são chamadas a tornar-se espaços que possam estimular esta consciência de cristãos e cidadãos. Recordemos o título do lema do Reitor-Mor deste ano: ”Bons cristãos e honestos cidadãos”.

[5] Convido-vos a ter sempre em mente todos aqueles que não participam nestas instâncias, mas que não podemos ignorar se não quisermos ser um grupo fechado.

[6] Super II Cor., cap. 2, lect. 2 (in fine). A passagem comentada por São Tomás é 2 Cor 2,6-7 onde, a respeito dos que o entristeceram, São Paulo escreve: «Deves usar da tua bondade e consolá-lo, para que não sucumba sob demasiada dor».

[7] J. M. BERGOGLIO, Meditazioni per religiosi, 105.

[8] Uma vocação eclesial, antes de ser um ato que diferencia ou complementa, é um convite a oferecer um dom particular em função do crescimento dos outros.

[9] Cfr Exort. ap. Evangelii gaudium, 116: «como podemos ver na história da Igreja, o cristianismo não dispõe de um único modelo cultural, mas permanecendo o que é, na fidelidade total ao anúncio evangélico e à tradição da Igreja, o cristianismo assumirá também o rosto das diversas culturas e dos vários povos onde for acolhido e se radicar».

[10] Hoje, de facto, «torna-se necessária uma evangelização que ilumine os novos modos de se relacionar com Deus, com os outros e com o ambiente, e que suscite os valores fundamentais. É necessário chegar aonde são concebidas as novas histórias e paradigmas» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 74).