MEMÓRIAS DO ORATÓRIO DE SÃO FRANCISCO DE SALES de 1815 a 1855
Indice
INTRODUÇÃO POR QUE AS MEMÓRIAS DEZ ANOS DE INFÂNCIA - MORTE DO PAI - PENÚRIAS FAMILIARES - A MÃE VIÚVA
UM SONHO
1 PRIMEIROS BRINQUEDOS COM OS MENINOS - PREGAÇÕES - O SALTIMBANCO - OS NINHOS
O ANO 1826
2 PRIMEIRA COMUNHÃO - PREGAÇÃO DA MISSÃO - O Padre CALOSSO - ESCOLA DE MURIALDO
3 OS LIVROS E A ENXADA - UMA NOTÍCIA MÁ E OUTRA BOA - MORTE DO PADRE CALOSSO
4 O PADRE CAFASSO - INCERTEZAS - DIVISÃO FRATERNA - ESCOLA DE CASTELNUOVO D’ASTI - A MÚSICA - O ALFAIATE
5 AULAS EM CHIERI - BONDADE DOS PROFESSORES - OS QUATRO PRIMEIROS CURSOS DE GRAMÁTICA
6 OS COLEGAS - SOCIEDADE DA ALEGRIA - DEVERES CRISTÃOS
7 BONS COMPANHEIROS E PRÁTICAS DE PIEDADE
8 HUMANIDADES E RETÓRICA - LUÍS COMOLLO
9 FAZENDO CAFÉ E LICORES - DIA ONOMÁSTICO - UMA DESGRAÇA
10 O JUDEU JONAS
11 JOGOS - PRESTÍGIOS - MAGIA - DANDO EXPLICAÇÕES
12 CORRIDA - SALTO - VARINHA MÁGICA - PONTA DA ÁRVORE
13 ESTUDO DOS CLÁSSICOS
14 PREPARAÇÃO À ESCOLHA DO ESTADO
1 VESTIDURA - PLANO DE VIDA
2 IDA PARA O SEMINÁRIO
3 A VIDA DO SEMINÁRIO
DIVERTIMENTOS E RECREIOS
4 AS FÉRIAS
5 BANQUETE NO CAMPO - O VIOLINO - A CAÇA
AMIZADE COM LUÍS COMOLLO
6 UM TRATO POUCO PRUDENTE
7 PRÊMIO - ENCARREGADO DA SACRISTIA - O TEÓLOGO JOÃO BOREL
8 ESTUDOS
9 ORDENAÇÕES SAGRADAS - SACERDÓCIO
10 PRIMÍCIAS DO SAGRADO MINISTÉRIO - SERMÃO EM LAVRIANO E JOÃO BRINA
11 COLÉGIO ECLESIÁSTICO DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS
12 FESTA DA IMACULADA CONCEIÇÃO E INÍCIO DO ORATÓRIO FESTIVO
13 O ORATÓRIO EM 1842
14 SAGRADO MINISTÉRIO - ESCOLHA DE UM CARGO NO REFÚGIO (setembro de 1844)
15 UM NOVO SONHO
16 TRANSFERÊNCIA DO ORATÓRIO PARA O REFÚGIO
17 O ORATÓRIO EM SÃO MARTINHO DOS MOINHOS -DIFICULDADES - A MÃO DO SENHOR
18 O ORATÓRIO EM SÃO PEDRO IN VINCULIS - A CRIADA DO CAPELÃO - UMA CARTA - UM TRISTE ACIDENTE
19 O ORATÓRIO NA CASA MORETTA , Torino e Don Bosco, II, p. 23).]
20 O ORATÓRIO NUM PRADO - PASSEIO A SUPERGA
21 O MARQUÊS CAVOUR E SUAS AMEAÇAS - NOVOS TRANSTORNOS PARA O ORATÓRIO
22 DESPEDIDA DO REFÚGIO - NOVA ACUSAÇÃO DE LOUCURA
23 TRANSFERÊNCIA PARA O ATUAL ORATÓRIO DE SÃO FRANCISCO DE SALE5 EM VALDOCCO
1 A NOVA IGREJA
2 CAVOUR, TRIBUNAL DE CONTAS, GUARDA CÍVICA
3 ESCOLAS DOMINICAIS - ESCOLAS NOTURNAS
4 DOENÇA, CURA, DECISÃO DE RESIDIR EM VALDOCCO
5 RESIDÊNCIA DEFINITIVA NO ORATÓRIO DE VALDOCCO
6 REGULAMENTO PARA OS ORATÓRIOS - COMPANHIA E FESTA DE SÃO LUÍS - VISITA DE DOM FRANSONI
7 INÍCIOS DO COLÉGIO - PRIMEIRA ACEITAÇÃO DE MENINOS
8 ORATÓRIO DE SÃO LUÍS - CASA MORETTA - TERRENO DO SEMINÁRIO
9 1848 AUMENTAM OS APRENDIZES - SEU REGIME DE VIDA - AS BOAS-NOITES - CONCESSÕES DO ARCEBISPO - EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS
10 PROGRESSOS NA MÚSICA - PROCISSÃO À CONSOLATA - PRÊMIO DA PREFEITURA E DA OBRA DA MENDICIDADE - A QUINTA-FEIRA SANTA - O LAVA-PÉS
11 O ANO 1849 - FECHAMENTO DOS SEMINÁRIOS - CASA PINARDI - ÓBOLO DE SÃO PEDRO; TERÇOS DE PIO IX - ORATÓRIO DO ANJO DA GUARDA - VISITA DOS DEPUTADOS
FESTAS NACIONAIS ; F. Motto, "L’azione mediatrice di Don Bosco nella questione delle sedi vacanti". In: P. Braido [ed.], Don Bosco nella Chiesa, p. 251-328; P. Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica, I, p. 106-107; II p. 75-96). ]
13 UM FATO CONCRETO
14 NOVAS DIFICULDADES - UMA CONSOLAÇÃO - O ABADE ROSMINI E O ARCIPRESTE PEDRO DE GAUDENZI
15 COMPRA DA CASA PINARDI E DA CASA BELEZA - O ANO DE 1850
16 IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE SALES
17 EXPLOSÃO DO PAIOL - GABRIEL FASCIO - BÊNÇÃO DA NOVA IGREJA
18 O ANO 1852
O ANO 1853
LEITURAS CATÓLICAS
O ANO 1854
O GRÍGIO
São João Bosco
MEMÓRIAS DO ORATÓRIO DE SÃO FRANCISCO DE SALES de 1815 a 1855
Tradução: Fausto Santa Catarina
Edição crítica aos cuidados de Antônio da Silva Ferreira
Editora Salesiana
1982 © Editora Salesiana
Título original: Memorie dell’Oratorio di San Francesco di Sales dal 1815 al 1855. Roma, Editrice SDB, 1979.
Direção geral: Ailton A. dos Santos
Direção administrativa: Essetino Andreazza
Coordenação editorial: Dimas A. Künsch
Assistentes: J. Augusto Nascimento
João Luis Fedel Gonçalves
Bianca Fincati
Revisão: Cristina Kapor
Projeto gráfico: Gledson Zifssak
Editoração eletrônica e capa: Luciene Cardoso
Secretaria editorial: Márcia de Moraes
Impressão e acabamento: Escolas Profissionais Salesianas
FICHA CATALOGRÁFICA1ª Edição: 1982
2ª Edição: 1999
3ª Edição: 2005
Todos os direitos reservados:
EDITORA SALESIANA
Rua Dom Bosco, 441 - Mooca
03105-020 São Paulo - SP
Fone: (11) 3277-3211 - Fax: (11) 3209-4084
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Como se chegou à presente edição
O manuscrito de Dom Bosco sobre as Memórias do Oratório foi publicado pela primeira vez pelo padre Eugenio Ceria. Ele já trabalhara na publicação de vários volumes das Memórias biográficas de Dom Bosco. Professor de literatura, o padre Ceria trouxe à luz um bom texto, embora cá e lá, cremos por razões literárias, se afastasse em alguns detalhes do texto original. Essa publicação foi feita em italiano: San Giovanni Bosco, Memorie dell’Oratorio di San Francesco di Sales dal 1815 al 1855 (Turim, Milão, Gênova, Parma, Roma, Catania, SEI [1946]). Foi traduzida para o francês, o espanhol, o português e o inglês. Do texto do padre Ceria se fez depois uma segunda edição em 1986.
Desejando o Instituto Histórico Salesiano de Roma publicar, em edição crítica, os diversos escritos pedagógicos de Dom Bosco, Antônio da Silva Ferreira assumiu o encargo de cuidar da edição crítica do manuscrito de Dom Bosco sobre as Memórias do Oratório. Nessa edição, além do texto cuidadosamente igual ao original, colocaram-se também as notas críticas, isto é, as correções e variações que o mesmo Dom Bosco introduziu no texto. Completaram a edição as notas de rodapé, com tipos diversos de material:
indicação de outros textos que ajudam a fazer conhecer melhor o conteúdo do manuscrito de Dom Bosco, o momento histórico em que Dom Bosco redigiu as Memórias do Oratório, ou o seu provável estado de alma no momento em que escrevia. Exemplo são as notas que se referem à polêmica de dom Gastaldi, arcebispo de Turim, contra o Colégio Eclesiástico, onde Dom Bosco estudara;
informações sobre lugares geográficos, igrejas, situações sociais do tempo a que se referem as Memórias do Oratório;
informações biográficas sobre as pessoas que aparecem nas Memórias do Oratório. No texto, várias vezes Dom Bosco modifica os nomes das pessoas, não sabemos por qual razão. Nas notas, procuramos dar o nome exato, após longas pesquisas de arquivos, bibliotecas e jornais.
Quando os nomes indicados por Dom Bosco não correspondem à realidade das pessoas, com base em fontes seguras indicamos na nota quer a biografia da pessoa indicada por Dom Bosco, quer a daquela pessoa a que se deveria referir o texto. Exemplo disso é a confusão entre Pedro Roppolo del Cappello e o Moncalvo. Quando não se têm fontes seguras, preferimos não intervir em nota, como no caso do padre Bini, da Companhia de Jesus.
Queremos enfim salientar que o trabalho das notas de rodapé foi feito a muitas mãos. Cerca de trinta párocos, muitos arquivistas e pessoas dedicadas ao estudo da história de sua terra natal colaboraram com boa vontade e seriedade na busca de dados. Foram cinco anos de trabalho intenso e minuciosa pesquisa.
Resultado de todo esse levantamento foi o livro Giovanni Bosco, Memorie dell’Oratorio di S. Francesco di Sales dal 1815 al 1855. Introduzione, note e texto critico a cura di Antonio da Silva Ferreira. Roma, LAS [1991].
Publicada a edição crítica, receberam-se alguns poucos pedidos de retificação de notas e sugestões de novos dados. Das notas críticas, desejava-se conservar apenas as que tinham um especial significado, como aquela de ganhar os jovens, no sonho dos 9 anos. Tudo foi realizado em Giovanni Bosco, Memorie dell’Oratorio di S. Francesco di Sales dal 1815 al 1855. Introduzione e note di Antonio da Silva Ferreira. Roma, LAS [1992].
No Brasil, tínhamos já uma excelente tradução da edição de Ceria, feita pelo padre Fausto Santa Catarina. A presente edição retoma essa tradução. Faz com que ela reproduza fielmente o texto do manuscrito de Dom Bosco. Aproveita as notas de rodapé da edição italiana de 1992 e uma ou outra nota das anteriores edições brasileiras. As notas no decorrer do texto são do manuscrito de Dom Bosco e conservam a numeração dada pelo Santo. As notas de rodapé têm numeração progressiva.
Nas questões controvertidas e ainda não suficientemente esclarecidas, prefere-se deixar a resposta em suspenso, como no caso da identidade do judeu Jonas. Deseja-se assim oferecer aos leitores não apenas um conhecimento mais aprofundado da vida e da prática pedagógica de Dom Bosco, mas também um instrumento válido para futuros trabalhos científicos sobre o argumento.
O Editor
abreviaturas
AAT Arquivo Arquiepiscopal de Turim
ASC Arquivo Salesiano Central
ASCT Arquivo Histórico da Cidade de Turim
AST Arquivo de Estado de Turim
BS Bibliofilo Cattolico ou Bollettino Salesiano mensuale e Bollettino Salesiano
E Epistolario di San Giovanni Bosco. Turim, SEI, vol. I: 1955; vol. II: 1956; vol. III: 1958; vol. IV: 1959.
FDB Arquivo Salesiano Central. Fondo Don Bosco, Microschedatura e descrizione. Roma, 1980. Pode ser encontrado no Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena (MG).
- Giraudi L´Oratorio di Don Bosco: inizio e progressivo sviluppo edilizio della casa madre dei salesiani a Torino. 2a ed. Turim, SEI, 1935.
- Barberis, Cronichetta ASC 0000103. G. Barberis, Cronichetta. Vez por vez se indica o caderno interessado.
- Bonetti, Annali ASC 0040602 - ASC A 0040604. G. Bonetti, Annali. São 3 cadernos.
- Bosco, Cenno storico
- Bosco. Cenno storico dell´Oratorio di San Francesco di Sales. Edição crítica aos cuidados de Pietro Braido. In: P. BRAIDO (ed.). Don Bosco educatore scritti e testimonianze. 2a ed. Roma, LAS,1992.
- Bosco, La forza della buona educazione
- BOSCO. La forza della buona educazione curioso episodio contemporaneo per cura del Sac. Bosco Giovanni. Turim, Tipografia Paravia e comp., 1855. In: OE VI, p. [275] – [386]. LC Leituras Católicas
MB Memorie biografiche di Don [del Venerabile - del Beato - di San] Giovanni Bosco. 20 vols. San Benigno Canavese-Turim, 1898-1948, edição extracomercial.
MO Memorie dell´Oratorio di San Francesco di Sales – dal 1815 al 1855
OE G. Bosco. Opere edite. Prima serie: Libri e opuscoli [reprodução anastática], 37 vols. Roma, LAS, 1976-1977. Seconda serie: Contributi su giornali e periodici, vol. XXXVIII. Roma, LAS [1987].
. P. Braido, Don Bosco educatore P. BRAIDO. Don Bosco educatore scritti e testimonianze. 2a ed. Roma, LAS [1992].
R1 R2 R3 R4 R5 ASCA 0080601 - A 0080605. D. Ruffino, Cronache dell´Oratrorio di San Francesco di Sales [1859-1864]. São 5 cadernos.
Regolamento per le scuole Regie patenti colle quali Sua Maestà approva l´annesso Regolamento per le scuole tanto comunali che pubbliche, e Regie. In data 23 luglio 1822. Turim, Tipografia Real.
RSS Ricerche Storiche Salesiane. Rivista semestrale di storia religiosa e civile. Roma, LAS.
- Caselle, Giovanni Bosco studente
- Caselle. Giovanni Bosco studente. Chieri 1831-1841: dieci anni che valgono una vita. [Turim], Edizioni Acclaim [1988].
- Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica, I-II
- Stella. Don Bosco nella storia della religiosità cattolica. Vol. I: Vita e opere. 2a ed. Roma, LAS, 1979. Vol. II: Mentalità religiosa e spirituale. 2a ed. Roma, LAS, 1981.
- Stella, Don Bosco nella storia economica e sociale
- Stella. Don Bosco nella storia economica e sociale (1815-1870). Roma, LAS [1980].
Storia ecclesiastica Storia ecclesiastica ad uso delle scuole utile per ogni ceto di persone. Dedicata all´Onorat.mo Signore F. Ervé de la Croix provinciale dei Fratelli D.I.D.S.C. Compilata dal sacerdote Giovanni Bosco. Turim, Tipografi Editori Speirani e Ferrero, 1845, OE I [160] - [556].
Storia sacra Storia sacra per uso delle scuole utile ad ogni stato di persone arricchita di analoghe incisioni. Compilata dal sacerdote Giovanni Bosco. Turim, Speirani e Ferrero, 1847, OE III [2-212].
1. INTRODUÇÃO POR QUE AS MEMÓRIAS
INTRODUÇÃO POR QUE AS MEMÓRIAS [1]
Em sua primeira viagem a Roma (1858), Dom Bosco expôs a Pio IX de que modo havia surgido a obra do Oratório festivo. Intuindo nela a presença de elementos sobrenaturais, o pontífice quis inteirar-se de tudo e recomendou ao santo que, voltando para Turim, escrevesse circunstanciadamente os sonhos e tudo o mais. O escrito deveria conservar-se como patrimônio da Congregação, para estímulo e orientação de seus filhos.
Não obstante, Dom Bosco deixou passar nove anos sem executar a recomendação.
Quando, em 1867, voltou a visitar o Papa, este, recordando o que lhe dissera da primeira vez, quis saber se havia sido atendido. Dom Bosco respondeu que as muitas ocupações não lhe haviam permitido fazê-lo. O Papa insistiu.
– Pois bem, se é assim, deixe de lado qualquer ocupação e escreva. Esta vez não é apenas um conselho, mas uma ordem. Não pode compreender por inteiro o bem que disto derivará para seus filhos.
Dom Bosco obedeceu. Não logo, porém. Preocupações de toda espécie, viagens inadiáveis e, por fim, grave e prolongada doença tiraram-lhe a possibilidade de levar a termo a vontade de Pio IX.
Em 1873, tratava-se da aprovação definitiva das Constituições da Sociedade de São Francisco de Sales. Para ajudá-lo no trabalho da redação final do texto que se devia apresentar em Roma, Dom Bosco chamou o padre Júlio Barberis. Tomaram todos os documentos de que tinham necessidade e se retiraram para a vila da benemérita condessa Gabriela Pelletta Corsi, em Nizza Monferrato, onde se puseram a trabalhar. Nessa ocasião, Dom Bosco dedicou-se à redação das Memórias do Oratório de São Francisco de Sales.
O trabalho, qual o temos hoje, compreende três cadernos distintos. Em 1873, Dom Bosco escreveu somente os dois primeiros, encerrando seu trabalho no dia 21 de outubro daquele ano. A narração chegava até 1845, no momento em que o Oratório se instala na obra da marquesa Barolo. E foi esse o texto que levou a Roma para apresentar ao Papa Pio IX.
No texto, Dom Bosco determinava: “Escrevo para os meus caríssimos filhos salesianos, com proibição de dar publicidade a estas coisas, tanto antes como depois da minha morte”. A proibição de Dom Bosco significava que seu escrito não devia sair de dentro de casa. Nas Memórias ele fala de si, de acontecimentos e fatos pessoais cujo conhecimento podia ser muito útil para seus filhos, mas que não se destinavam ao grande público. Dentro das paredes domésticas, um pai pode abrir-se em confidências, que devem naturalmente ficar entre os íntimos.
A evolução da Congregação levou Dom Bosco a tomar uma atitude diferente. Em 2 de fevereiro de 1876, lembrou aos diretores de suas casas as origens remotas da Congregação Salesiana, insistindo na necessidade de coligir os fatos que pudessem servir para escrever-lhe a história completa. E dizia: “Há necessidade, para a maior glória de Deus, para a salvação das almas e para o incremento da Congregação, que muitas coisas se tornem conhecidas”. E, como a prevenir a necessidade inevitável de falar de si e a impressão que isso pudesse causar a pessoas sérias, declarou:
“Neste ponto já não se deve ter consideração com Dom Bosco nem com ninguém. Vejo que a vida de Dom Bosco se confunde inteiramente com a vida da Congregação: então falemos dele. Julgo bem deixar de lado o homem. Que me importa que dele se fale bem ou mal? Digam ou falem o que quiserem, pouco me interessa: não serei nunca nem maior nem menor do que sou perante Deus. Mas é necessário que as obras de Deus se manifestem”.
Passou então a escrever o terceiro caderno de suas Memórias, com o título “3º Memórias do Oratório exclusivamente para os Sócios Salesianos – de 1845 a 1855”. O fato de que o Boletim Salesiano se sirva progressivamente deste caderno nos anos de 1879 a 1882 para a publicação da História do Oratório de São Francisco de Sales nos faz supor que, à medida que se necessitava de material para a publicação, Dom Bosco ia finalizando as partes deste terceiro caderno.
Se tais razões eram válidas a partir de 1876, muito mais o são hoje, quando a obra de Dom Bosco, isto é, de Deus, está espalhada pelo mundo e seu instrumento imediato deixou de ser um simples mortal. Nada, pois, poderia impedir-nos de retirar a luz de sob o leito, expondo aos olhos de todos as páginas serenas e luminosas que Dom Bosco nos legou.
[1] Da Introdução do padre Eugenio Ceria à edição de 1946.
O conteúdo
Nas Memórias Dom Bosco conta as origens distantes e atribuladas do oratório salesiano. A narrativa situa-se entre a autobiografia e a história da Congregação Salesiana. [2] Focaliza em primeiro plano o oratório, fruto da caridade pastoral que já se mostrava como em embrião no apostolado do pastorzinho dos Becchi, do estudante de Chieri ou do jovem sacerdote na igreja de São Francisco de Assis, em Turim.
Após penosa peregrinação, encontrou por fim uma sede estável na casa Pinardi. Então Dom Bosco pôs-se logo a construir a igreja de São Francisco de Sales e a casa do oratório, a princípio simples residência e, depois, colégio e escola profissional.
Dificuldades sem conta que, numa visão humana, pareciam insuperáveis, não conseguiram sufocar nem em seu nascedouro nem em seu desenvolvimento uma obra que era, evidentemente, de Deus.
[2] Nas notas procuraremos apresentar os documentos de que Dom Bosco se serviu para escrever as Memórias, bem como apresentar pessoas e fatos a que o texto se refere.
O oratório festivo
Dom Bosco não inventou o oratório. [3] Conservando o nome, que lhe era simpático, introduziu nos oratórios de seu tempo duas modificações. Os oratórios costumavam reunir a juventude somente numa determinada hora do domingo, pela manhã ou à tarde; o oratório de Dom Bosco, ao invés, devia ocupar os meninos o dia inteiro nos domingos e festas de guarda, com um intervalo para o almoço. Foi por isso que acrescentou festivo, para indicar precisamente os domingos e festas de guarda, que os italianos chamam de dias festivos, incluindo neles os feriados nacionais. Além disso, o oratório não seria exclusivamente paroquial, mas devia receber meninos de qualquer paróquia.
Ambas as inovações atendiam à necessidade dos tempos. No seu oratório aberto (os oratórios tradicionais só recebiam meninos de boa conduta), Dom Bosco acolhia três classes de jovens: meninos abandonados, que ficavam a vagar por ruas e praças, desocupados, sem escola, sem vontade de aprender nem de trabalhar; meninos que saíam da cadeia, e haveriam de perverter-se ainda mais caso ninguém se interessasse por eles; rapazes que vinham do interior (explodia a era industrial) pela grande oferta de mão-de-obra. Perdidos na capital, achavam-se expostos a muitos perigos. Para Dom Bosco, o oratório festivo era a “paróquia” dos meninos abandonados.
O santo quis explicitamente que onde houvesse uma obra salesiana houvesse também um oratório festivo. Em 1885 afirmou: “Vejo sempre mais claramente o futuro glorioso preparado para a nossa Congregação. Mas tenha-se como base que o nosso escopo principal são os oratórios festivos”. Ainda hoje os salesianos olham para o oratório como para a “obra primeira e típica” da Congregação. Porque as demais obras salesianas não são mais que desdobramentos dessa grande intuição de Dom Bosco. É com um “coração oratoriano” – expressão do Reitor-Mor dos salesianos no período 1977-1995, padre Egídio Viganó, a indicar precisamente o espírito que animava os primeiros tempos – que os salesianos de Dom Bosco procuram prolongar a presença educativa do santo fundador.
[3] Em Turim, o primeiro Oratório festivo a ser fundado foi o Oratório do Anjo da Guarda, fundado em 1840 pelo padre João Cocchi, no bairro do Moschino, e depois transferido para o bairro de Vanchiglia.
4. O que são as Memórias do Oratório
O que são as Memórias do Oratório [4]
Não se trata de uma biografia histórica de Dom Bosco. A finalidade com que escreveu estas páginas está bem expressa por ele mesmo:
“Para que servirá então este trabalho? Servirá de norma para superar as dificuldades futuras, aprendendo as lições do passado; servirá para dar a conhecer como o próprio Deus conduziu todas as coisas a cada momento; servirá de ameno entretenimento para meus filhos quando lerem as aventuras em que andou metido seu pai; e haverão de lê-las com mais gosto quando, chamado por Deus a prestar conta dos meus atos, já não estiver entre eles. (…) Meus filhos, quando lerdes estas memórias depois de minha morte lembrai-vos que tivestes um pai afeiçoado, que antes de abandonar o mundo deixou estas memórias como penhor de seu carinho paterno”.
Pode-se facilmente pensar que o Fundador tem em vista dar à instituição, juntamente com uma situação estável, segurança, elã e uma orientação ideal mais acentuada. O escopo dominante não é pois a fidelidade à história, mas uma finalidade moral, edificante, programática mesma, caso se levem em conta as orientações espirituais e pedagógicas que o autor difunde intencionalmente.
Se damos em nota os documentos de que Dom Bosco se serviu para compor as Memórias do Oratório, não é com o fim de criticar o texto, mas de levar os leitores a compreenderem melhor como Dom Bosco redigia suas obras.
Radicalmente, as Memórias orientam o futuro. A evocação histórica quer ser apenas um sinal e garantia de que o projeto do oratório – e depois da Sociedade Salesiana – é desejado, incrementado e sustentado por Deus.
Tal assistência de Deus emerge dos fatos, sobretudo, por três aspectos: Dom Bosco é ensinado pelo Alto em seus sonhos, é visivelmente defendido com a punição de seus opositores e, terceiro, mostra-se um “vidente” realista em seu projeto de oratório e de congregação. Dom Bosco procura recrear e alegrar para confortar e confirmar.
São as Memórias do Oratório talvez o livro mais rico de conteúdos e orientações “preventivas” que ele escreveu. Um verdadeiro manual de pedagogia e de espiritualidade, “contada” em clara perspectiva de pedagogia oratoriana. É uma pedagogia cheia de fantasia e vivaz, que se opõe à pedagogia mais “colegial” do opúsculo sobre O Sistema Preventivo na educação da juventude.
Braido resume em alguns pontos as lições das Memórias do Oratório:
1.A tarefa de educar cristãmente se origina numa vocação divina, que supõe propensão inata e inclinação para dedicar-se aos jovens, sobretudo aos menos assistidos.
2.O eixo da presença benéfica e educativa entre os jovens é o oratório, instituição juvenil aberta, atraente, onde se mesclam “devoção, brinquedos e passeios”. É mais uma experiência que uma instituição.
3.Acena-se ao surgir de uma segunda presença educativa, o pensionato, que aos poucos se transforma em internato com oficinas e aulas próprias.
4.A ação benéfica global se resume na assistência-presença. Como finalidade e conteúdo, a assistência oferece aos jovens tudo o que é necessário para a alma e para o corpo; como método e meio disciplinar, manifesta-se como vigilância e presença (estar com os jovens).
5.Idealmente, e em certa medida também efetivamente, o cuidado com os jovens abandonados quer ser uma resposta a todas as suas necessidades: alimentação, roupa, alojamento, possibilidade de trabalho, oportunidade de estudo, plena ocupação do tempo livre e, no cume, a conduta moral e a religião. Assim se constrói o “bom cristão e honesto cidadão”.
6.Na prática, afirma-se com força o papel fundamental da religião. Ocupam um lugar central os sacramentos, especialmente a Confissão e a Comunhão. No horizonte da piedade e da vida, Dom Bosco quer dar um lugar privilegiado a Maria Santíssima, que ele vê presente nas principais etapas de seu oratório.
7.Reserva ainda um lugar central à catequese, razão primária da criação de suas instituições juvenis. Recorda-se também explicitamente o associacionismo juvenil, manifestado na Companhia de São Luís.
8.As práticas de piedade e, sobretudo, a freqüência dos sacramentos são estreitamente ligadas à vida cotidiana e à moralidade, entendida não apenas como castidade, mas também como obediência e disciplina.
9.O método, mais que enunciado em formas, atravessa toda a narração. É todo pleno de caridade e de amor afetivo e efetivo. Não por nada Dom Bosco coloca no início das Memórias o sonho dos 9 anos: “Não é com pancadas, mas com a mansidão e a caridade que deverás ganhar esses teus amigos. Põe-te imediatamente a instruí-los sobre a fealdade do pecado e a preciosidade da virtude”.
10.Desde os inícios o desconforto do jovem (a solidão, o fastio) se encontra com a bondade acolhedora e alegre. A experiência se repete depois em Chieri e em Turim. O oratório é identificado com esse tipo de encontro.
11.Viver para os jovens, segundo Dom Bosco, significa não apenas oferecer coisas sérias para a vida deles, mas empenhar-se por responder à necessidade inata da alegria. Nas diversas fases do oratório sempre a parte religiosa está unida à parte recreativa. Iniciar o oratório quer dizer fazer festa. Isso exige de forma indivisível celebrações religiosas, entretenimento sob diversas formas e – para um público pobre e com grande apetite – mais que desjejum, que nunca pode faltar.
12.Afetividade e alegria criam o elemento conectivo da relação educativa. É o que se pode constatar nos dois modelos de educador propostos por Dom Bosco: o padre Calosso e o professor Banaudi.
13.Concluindo
As Memórias do Oratório têm o mérito e a vantagem de oferecer a versão mais imprevisível e simpática do sistema educativo de Dom Bosco. E o faz não em forma acadêmica, mas por meio de situações, de fatos, de pessoas, plenos de intuições e de significados, que tornam tal versão extremamente acessível em meio à contínua variação das condições históricas e às novas exigências da condição juvenil. [5]
[4] Cf. Pietro Braido, "Memorie del futuro", RSS 20 (1992), p. 97-127.
[5] Como aumenta sensivelmente em diversas universidades e faculdades o número de teses de mestrado e doutorado que tratam de Dom Bosco ou de argumentos salesianos, indicamos em nota também as fontes e outros instrumentos para pesquisa, a fim de facilitar a pesquisa a quem se dedicar a esses trabalhos.
5. MEMÓRIAS PARA O ORATÓRIO E PARA A CONGREGAÇÃO SALESIANA
MEMÓRIAS PARA O ORATÓRIO E PARA A CONGREGAÇÃO SALESIANA
Mais de uma vez me pediram que pusesse por escrito as memórias do Oratório de São Francisco de Sales.
Conquanto não pudesse desatender à autoridade de quem me aconselhava, relutei em meter mãos à obra, sobretudo porque deveria falar de mim com demasiada freqüência.
Ao conselho juntou agora, a alta autoridade, [6] uma ordem que não admite maiores delongas.
Por isso é que aqui estou a relatar detalhadamente confidências de família. Poderão servir de luz e proveito à instituição que à Sociedade de São Francisco de Sales dignou-se confiar a Providência divina.
Escrevo – previno logo de início – para os meus muito amados filhos salesianos, proibindo que, assim antes como depois da minha morte, se dê publicidade aos assuntos aqui apresentados.
Para que servirá então este trabalho? Servirá de norma para superar as dificuldades futuras, aprendendo as lições do passado; servirá para dar a conhecer como o próprio Deus conduziu todas as coisas a cada momento; servirá de ameno entretenimento para meus filhos quando lerem as aventuras em que andou metido seu pai; e haverão de lê-las com mais gosto quando, chamado por Deus a prestar conta dos meus atos, já não estiver entre eles. Perdoai-me quando encontrardes fatos expostos talvez com muita complacência e mesmo aparência de vanglória. Trata-se de um pai que tem a satisfação de falar de suas coisas a seus amados filhos, que, por sua vez, ficam satisfeitos de saber as pequenas aventuras de quem tanto os amou, e que, nas coisas pequenas como nas grandes, sempre se empenhou em trabalhar em seu benefício espiritual e temporal.
Apresento estas memórias divididas em décadas, ou períodos de dez anos, porque em cada uma delas se produziu um notável e sensível desenvolvimento de nossa instituição.
Meus filhos, quando lerdes estas memórias depois de minha morte, lembrai-vos que tivestes um pai afeiçoado, que antes de abandonar o mundo deixou estas memórias como penhor de seu carinho paterno; e ao vos recordardes de mim, rezai a Deus pelo repouso eterno da minha alma.
[6] A "alta autoridade" é o Papa Pio IX.
6. DEZ ANOS DE INFÂNCIA - MORTE DO PAI - PENÚRIAS FAMILIARES - A MÃE VIÚVA
DEZ ANOS DE INFÂNCIA - MORTE DO PAI - PENÚRIAS FAMILIARES - A MÃE VIÚVA
Nasci no dia consagrado à Assunção de Nossa Senhora ao Céu, [7] no ano 1815, em Murialdo, distrito de Castelnuovo d’Asti. [8] Minha mãe chamava-se Margarida Occhiena de Capriglio, [9] e meu pai, Francisco. Eram camponeses que com trabalho e economia ganhavam honestamente o pão de cada dia. Meu bom pai, quase unicamente com seus suores, proporcionava sustento à vovó septuagenária e cheia de achaques; a três meninos, o maior dos quais, Antônio, filho do primeiro matrimônio; o segundo era José; o mais moço, João, que sou eu; havia ainda dois empregados no campo.
Não tinha eu ainda 2 anos quando Deus misericordioso nos atingiu com uma grave desgraça. Um dia, o amado pai, cheio de saúde, na flor da idade, todo preocupado em educar cristãmente os filhos, de volta do trabalho, ensopado de suor, entrou imprudentemente na adega, subterrânea e fria. O resfriado manifestou-se à noitinha com violenta febre, precursora de forte pneumonia. Inúteis todos os cuidados. Em poucos dias encontrou-se às portas da morte. Munido de todos os confortos religiosos, recomendou à minha mãe que tivesse confiança em Deus, e faleceu na bela idade de 34 anos, em 12 de maio de 1817.
Não sei o que aconteceu comigo em tão triste circunstância. Lembro apenas, e é o primeiro fato de minha vida que guardo na memória, que todos saíam do quarto do falecido e eu queria ficar lá a todo o custo.
– Vem, João, vem comigo – insistia minha aflita mãe.
– Se papai não vem, eu também não vou – retorqui.
– Pobre filho – continuou mamãe –, vem comigo, já não tens pai.
Ditas essas palavras, prorrompeu em soluços, tomou-me pela mão e levou-me para fora, ao passo que eu chorava porque a via chorar. Naquela idade não podia evidentemente compreender a grande desgraça que é a perda de um pai.
O acontecimento deixou a família profundamente consternada. Devia-se manter cinco pessoas; as colheitas do ano, nosso único recurso, falharam por causa de terrível seca; os comestíveis chegaram a preços fabulosos. O trigo chegou a custar 25 francos a hemina, [10] o milho, 16. Algumas testemunhas contemporâneas me afirmam que os mendigos pediam com sofreguidão um pouco de farelo para completar o cozido de grão-de-bico ou de feijão e se alimentarem. Nos prados foram encontradas pessoas mortas, com a boca cheia de capim, com o qual haviam tentado saciar a fome canina.
Mamãe contou-me várias vezes que alimentou a família enquanto pôde. Depois deu dinheiro a um vizinho chamado Bernardo Cavallo, [11] para que fosse à procura de comestíveis. O amigo percorreu diversos mercados e nada encontrou, mesmo a preços exorbitantes. Voltou dois dias depois, pelo anoitecer, ansiosamente aguardado por todos. Quando comunicou que só trazia o dinheiro de volta, o medo se apoderou de todos, porque como se haviam alimentado muito mal nesse dia, eram de temer as funestas conseqüências da fome naquela noite.
Sem perder a coragem, mamãe foi pedir emprestado aos vizinhos algo para comer, e não encontrou quem a pudesse ajudar.
– Meu marido – comentou – disse-me ao morrer que tivesse confiança em Deus. Venham aqui, vamo-nos ajoelhar e rezar.
Depois de breve oração levantou-se e disse:
– Em casos extremos deve-se empregar meios extremos.
Foi então ao estábulo juntamente com o senhor Cavallo, matou um bezerro e, fazendo cozinhar a toda pressa uma parte, pôde satisfazer a fome da família extenuada. Dias mais tarde foi possível encontrar cereais, a preços muito elevados, trazidos de povoados distantes. [12]
É fácil imaginar quanto deve ter sofrido e labutado minha mãe naquele ano calamitoso. Entretanto, com um trabalho incansável, persistente economia, especulando sobre as pequeninas coisas, e com alguma ajuda deveras providencial foi possível superar a crise de víveres. Tais fatos contou-nos diversas vezes mamãe e confirmaram-nos parentes e amigos.
Passada a terrível penúria e melhorada a situação econômica, mamãe recebeu vantajosa proposta de casamento. Contudo, respondeu invariavelmente:
– Deus me deu um marido e mo tirou; ao morrer, deixou-me três filhos, e eu seria uma mãe cruel se os abandonasse justamente quando mais precisam de mim.
Insistiram dizendo que os filhos seriam confiados a um bom tutor, que havia de cuidar muito bem deles.
– Um tutor – respondeu a generosa mulher – é um amigo, ao passo que eu sou a mãe dos meus filhos. Não os abandonarei jamais, ainda que me oferecessem todo o ouro do mundo.
Seu maior cuidado foi instruir os filhos na religião, torná-los obedientes e ocupá-los em coisas compatíveis com a idade. Quando eu era pequenino, ela mesma me ensinou as orações; quando pude juntar-me aos meus irmãos, fazia-me ajoelhar com eles de manhã e de noite, e juntos rezávamos as orações e o terço. Lembro-me de que ela mesma me preparou para a primeira confissão: acompanhou-me à igreja, confessou-se antes de mim, recomendou-me ao confessor e depois ajudou-me a fazer a ação de graças. Continuou a ajudar-me até julgar-me capaz de sozinho confessar-me dignamente.
Assim cheguei aos 9 anos de idade. Mamãe queria enviar-me à escola, mas preocupava-se com a distância, já que estávamos a 5 quilômetros do povoado de Castelnuovo. Meu irmão Antônio opunha-se à minha ida ao colégio. Chegou-se então a uma solução. Durante o inverno iria à escola do pequeno povoado de Capriglio, onde pude aprender a ler e a escrever. Meu professor era um sacerdote muito piedoso, chamado José Delacqua. [13] Foi muito atencioso para comigo, interessando-se de bom grado pela minha instrução e mais ainda pela minha educação cristã. Durante o verão contentaria meu irmão, trabalhando no campo.
[7] Dom Bosco sempre acreditou ter nascido a 15 de agosto. Só após sua morte, descobriu-se a verdade, ao consultar seu atestado de Batismo. Quando no Oratório se começou a comemorar seu aniversário, Mamãe Margarida, que poderia corrigir o erro, já havia falecido. Podemos ainda observar que no Piemonte diz-se muitas vezes que aconteceu na "Madonna d’agosto" algo ocorrido pouco antes ou pouco depois do dia 15. Se desde pequenino Dom Bosco ouviu dizer que nasceu na "Madonna d’agosto", é natural que no dia 15 comemorasse seu aniversário.
[8] Castelnuovo d’Asti (a partir de 14/2/1930, Castelnuovo Don Bosco) é um município com cerca de 4 mil habitantes, a 28 quilômetros de Turim. Ao redor do núcleo central, situam-se quatro aldeias (entre as quais Murialdo), onde se encontram os Becchi, pequeno grupo de casas rústicas (o nome Becchi deve-se a uma família que aí morou). A topografia dos Becchi mudou sensivelmente. Para construir a série de edifícios que honram o berço do Fundador, foi preciso remover muita terra. O lugar é conhecido hoje como Colle Don Bosco. Nele se ergue o Instituto Bernardi Semeria, cuja construção tem um curioso antecedente num dos costumeiros sonhos de Dom Bosco. Em 1886 sonhou que Mamãe Margarida o levava até uma elevação a pouca distância de casa, donde mãe e filho puseram-se a contemplar a planície circunstante, falando do bem que se poderia fazer a essas terras… Estavam a conversar quando Dom Bosco acordou. No dia seguinte contou o sonho e disse que o lugar parecia-lhe muito acertado para urna grande fundação salesiana, por estar situado num ponto central de muitas aldeias privadas de igreja. Pois bem, um dia o Reitor-Mor padre Pedro Ricaldone e o ecônomo geral, padre Fedele Giraudi, puseram-se a procurar um lugar para instalar urna obra à qual Bernardi Semeria generosamente oferecia os recursos, e, sem absolutamente lembrar o sonho, escolheram precisamente a colina indicada por Dom Bosco. (O sonho encontra-se nas MB XIX, p. 382-383.)
[9] Capriglio, pequeno povoado a 7 quilômetros de Murialdo. A igreja paroquial, estruturada sobre a preexistente igreja do castelo, é dedicada a São Martinho. Aí nasceu Margarida Occhiena (1788-1856). Tendo-a conhecido, Francisco Bosco (1784-1817), que era viúvo e que tinha um filho do primeiro casamento - chamado Antônio (1808-1849) -, casou-se com ela em segundas núpcias. De Margarida Occhiena e Francisco Bosco nasceram José, a 8 de abril de 1813, e João Bosco.
[10] Hemina é uma velha medida de capacidade piemontesa. Variava de lugar para lugar. Na região de Asti era de 23 litros.
[11] A pequena casa dos Becchi estava construída atrás da casa dos Cavallo e da casa dos Graglia, beneficiando-se de um muro que as dividia.
[12] "O abaixo-assinado declara ter recebido £ 37,50, digo, trinta e sete liras e cinqüenta centavos, de João Zucca, tutor da família do falecido Francisco Bosco, por quatro heminas de trigo, deixadas para a dita família, em fé do que faço a quitação, no dia 6 de julho de 1817. Padre Amadei, capelão." (Quitação citada por S. Caselle, Cascinali e contadini in Monferrato, p. 103, mas original do Colle Don Bosco, Arquivo do Reitor do Santuário. Contabilidade mantida pelos tutores dos órfãos Bosco.)
[13] O padre José Lacqua (1764-1847) foi professor primário em Covagno-Casale (1817-1820), Capriglio, Viale Ponzano (1839) e capelão em Goj, onde Dom Bosco foi visitá-lo (cf. E I, p. 20). Mariana Occhiena, tia de Dom Bosco, era a empregada do padre Lacqua.
UM SONHO
Nessa idade tive um sonho, [14] que me ficou profundamente impresso na mente por toda a vida. Pareceu-me estar perto de casa, numa área bastante espaçosa, onde uma multidão de meninos estava a brincar. [15] Alguns riam, outros divertiam-se, não poucos blasfemavam. Ao ouvir as blasfêmias, lancei-me de pronto no meio deles, tentando, com socos e palavras, fazê-los calar. Nesse momento apareceu um homem venerando, de aspecto varonil, nobremente vestido. Um manto branco cobria-lhe o corpo; seu rosto, porém, era tão luminoso que eu não conseguia fitá-lo. Chamou-me pelo nome e mandou que me pusesse à frente daqueles meninos, acrescentando estas palavras:
– Não é com pancadas mas com a mansidão e a caridade que deverás ganhar [16] esses teus amigos. Põe-te imediatamente a instruí-los sobre a fealdade do pecado e a preciosidade da virtude.
Confuso e assustado repliquei que eu era um menino pobre e ignorante, incapaz de lhes falar de religião. Senão quando aqueles meninos, parando de brigar, de gritar e blasfemar, juntaram-se ao redor do personagem que estava a falar. Quase sem saber o que dizer, acrescentei:
– Quem sois vós que me ordenais coisas impossíveis?
– Justamente porque te parecem impossíveis, deves torná-las possíveis com a obediência e a aquisição da ciência.
– Onde, com que meios poderei adquirir a ciência?
– Eu te darei a mestra, sob cuja orientação poderás tornar-te sábio, e sem a qual toda sabedoria se converte em estultice.
– Mas quem sois vós que assim falais?
– Sou o filho daquela que tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao dia.
– Minha mãe diz que sem sua licença não devo estar com gente que não conheço; dizei-me, pois, vosso nome.
– Pergunta-o a minha mãe.
Nesse momento vi a seu lado uma senhora de aspecto majestoso, vestida de um manto todo resplandecente, como se cada uma de suas partes fosse fulgidíssima estrela. Percebendo-me cada vez mais confuso em minhas perguntas e respostas, acenou para que me aproximasse e, tomando-me com bondade pela mão, disse:
– Olha.
Vi então que todos os meninos haviam fugido, e em lugar deles estava uma multidão de cabritos, cães, gatos, ursos e outros animais.
– Eis o teu campo, onde deves trabalhar. Torna-te humilde, forte, robusto; [17] e o que agora vês acontecer a esses animais, deves fazê-lo aos meus filhos.
Tornei então a olhar, e em vez de animais ferozes apareceram mansos cordeirinhos que, saltitando e balindo, corriam ao redor daquele homem e daquela senhora, como a fazer-lhes festa.
Neste ponto, sempre no sonho, desatei a chorar, e pedi que falassem de maneira que pudesse compreender, porque não sabia o que significava tudo aquilo. A senhora descansou a mão em minha cabeça, dizendo:
– A seu tempo tudo compreenderás.
Após essas palavras, um ruído qualquer me acordou, e tudo desapareceu.
Fiquei transtornado. Parecia-me ter as mãos doloridas pelos socos que desferira e doer-me o rosto pelos tapas recebidos; além disso, aquele personagem, a senhora, as coisas ditas e ouvidas de tal modo me encheram a cabeça que naquela noite não pude mais conciliar o sono.
De manhãzinha contei logo o sonho, primeiro aos meus irmãos, que se puseram a rir, depois à mamãe e à vovó. Cada um dava o seu palpite. O irmão José dizia: “Vais ser pastor de cabras, de ovelhas e de outros animais”. Mamãe: “Quem sabe se um dia não serás sacerdote”. Antônio, secamente: “Chefe de bandidos, isso sim”. Mas a avó que, de todo analfabeta, entendia muito de teologia, deu a sentença definitiva: “Não se deve fazer caso dos sonhos”.
Eu era do parecer de minha avó, [18] todavia não pude nunca tirar aquele sonho da minha cabeça. O que vou doravante expor dará a isso alguma explicação. Mantive-me sempre calado; meus parentes não lhe deram importância. Mas quando, em 1858, fui a Roma para falar com o Papa sobre a Congregação Salesiana, ele me fez contar pormenorizadamente tudo quanto tivesse ainda que só a aparência de sobrenatural. Contei então pela primeira vez o sonho que tive na idade de 9 a 10 anos. O Papa mandou-me escrevê-lo literalmente e com pormenores, e deixá-lo como estímulo aos filhos da Congregação, a qual era precisamente o objetivo de minha viagem a Roma.
[14] Escreve Lemoyne (MB I, p. 254-256): "A palavra sonho e Dom Bosco são correlativos. É deveras admirável a repetição desse fenômeno durante setenta anos (…). A bondade do Senhor serviu-se dos sonhos no Antigo e no Novo Testamento, bem como na vida de muitos santos, para confortar, aconselhar e mandar; por meio deles fez ouvir sua voz profética, ora de ameaça, ora de esperança, ora de prêmio para os indivíduos ou para as nações (…). A vida de Dom Bosco é uma trama de sonhos tão maravilhosos, que não se compreende sem a assistência divina direta. Fica, pois, de todo em todo excluída a idéia de que houvesse sido um estulto, um iludido, um enganador ou um vaidoso. Os que viveram a seu lado durante trinta, quarenta anos, jamais viram nele o menor sinal de querer conquistar o apreço dos seus, fazendo-se passar por um privilegiado com dotes sobrenaturais. Dom Bosco era humilde, e a humildade aborrece a mentira".
[15] Em Notizie varie dei primi tempi dellŽOratorio su Don Bosco ecc… (ASC A 0030112, FDB 892 A 8), conta-se que dia 30 de outubro de 1875 José Turco, colega de escola de Dom Bosco, foi ao oratório e assim apresentou este sonho: "Um dia vimos que ele, fora do costume, corria e saltava todo alegre pela nossa vinha e todo em festa apresentou-se a meu pai. - Que há, Joãozinho, que você está tão alegre, quando de um tempo para cá via você todo triste? - Boas notícias, boas notícias. Esta noite tive um sonho em que vi que eu teria continuado os estudos, ter-me-ia feito padre, e me encontraria à frente de muitos jovens de cuja educação me ocuparia pelo resto de minha vida. Eia! Agora está tudo pronto, eu poderei ser padre. - Mas isso não é mais que um sonho, depois, entre o dizer e o acontecer… - Oh! O resto é nada, eu serei padre e estarei à frente de tantos jovens, a quem farei muito bem. E assim dizendo, todo alegre e contente, foi, como de costume, ler e estudar e vigiar a uva".
[16] Num primeiro momento, Dom Bosco havia escrito "têm de ser acalmados". A seguir corrigiu para "deverás ganhar". Nesta frase se vê toda a essência de seu sistema educativo: ganhar os corações dos jovens.
[17] Inicialmente Dom Bosco havia escrito: "Torna-te sadio, forte, robusto".
[18] Em 1885, Dom Bosco escrevia a dom Cagliero: "Recomendo ainda que não se dê grande importância aos sonhos etc. Se eles ajudam a compreender as coisas morais ou das nossas regras, está bem, se conservem. De outra forma, não se dê nenhuma importância a eles" (cf. E IV, p. 314, carta Bosco-Cagliero, 10/2/1885).
PRIMEIRA DÉCADA: 1825-1835 1 PRIMEIROS BRINQUEDOS COM OS MENINOS - PREGAÇÕES - O SALTIMBANCO - OS NINHOS
Por diversas vezes me perguntastes em que idade comecei a preocupar-me com os meninos. Aos 10 anos fazia o que era compatível com essa idade: uma espécie de Oratório festivo. Ouvi. Eu era ainda muito pequenino, e já estudava o caráter dos meus companheiros. Olhando para o rosto de um deles, quase sempre descobria os propósitos que lhe iam no coração. Era por isso muito querido e respeitado pelos da minha idade. Todos me escolhiam como juiz ou amigo. De minha parte fazia o bem a quem podia, e o mal a ninguém. Os companheiros me queriam com eles, para que os defendesse em caso de briga. Porque, embora pequeno de estatura, possuía força e coragem para incutir medo nos companheiros de idade bem maior. A tal ponto que surgindo brigas, discussões, rixas de qualquer espécie, era eu o árbitro dos contendores, e todos aceitavam de bom grado a sentença que eu ditasse.
Mas o que os reunia ao meu redor e os arrebatava até à loucura, eram as estórias que lhes contava. Os exemplos ouvidos nas pregações ou no catecismo, a leitura de Os pares de França, Guerino Meschino, Bertoldo e Bertoldino [19] fornecia-me bastante material. Nem bem me viam, os colegas corriam em tropel para que lhes contasse alguma coisa, eu que mal começava a compreender o que lia. Juntaram-se a eles alguns adultos, e, algumas vezes, indo a Castelnuovo ou de lá voltando, outras, num campo ou num prado, via-me rodeado de centenas de pessoas, que acorriam para escutar um pobre menino que, salvo um pouco de memória, era jejuno na ciência, embora passasse entre eles por um grande doutor. No país dos cegos, quem tem um olho é rei (monoculus rex in regno caecorum).
Durante a estação invernal, queriam-me no estábulo para que lhes contasse algumas historietas. Reunia-se ali gente de toda idade e condição, e todos gostavam de passar a tarde inteira, cinco ou mesmo seis horas, a ouvir imóveis a leitura de Os pares de França, que o pobre orador fazia, de pé sobre um banco, a fim de ser ouvido e visto por todos. Como, porém, diziam que vinham para ouvir a pregação, fazíamos todos o sinal-da-cruz e rezávamos uma Ave-Maria antes e depois das minhas narrativas.
[19] Os pares de França… Guerino Meschino… Bertoldo. Os dois primeiros são títulos de romances épicos carolíngios, compilados em prosa vulgar por Andrea da Barberino (séculos XIV-XV) e extraídos de fontes toscanas ou franco-vênetas. Tais compilações deram origem a novelas de natureza popular muito difundidas. A mesma sorte coube ao Bertoldo, do bolonhês Giulio Cesare Croce (século XVI), que com esse título descreveu a figura de um camponês desengonçado, mas esperto, que entrou nas graças do rei Albuíno e tornou-se seu confidente. O autor continuou as aventuras de Bertoldo, narrando as do seu filho Bertoldino. Mais tarde, o monge de Bolonha, Adriano Banchieri, acrescentou-lhe as de Cacasenno (séculos XVI-XVII).
O ANO 1826
Na primavera, especialmente nos domingos e dias santos de guarda, reuniam-se os da vizinhança e muitos outros de fora. Então a coisa assumia um caráter mais sério. Proporcionava a todos um entretenimento com alguns brinquedos que eu havia aprendido de outros. Nos mercados e nas feiras, apresentavam-se freqüentemente charlatões e saltimbancos, que eu ia ver. Observando atentamente as mínimas proezas, voltava para casa e exercitava-me até conseguir reproduzi-las. Imaginai os encontrões, batidas, tombos e trambolhões a que me expunha a cada momento. [20], caderno 2, 1861 1862 1863, p. 128, FDB 1208 E 12.] Havíeis de acreditar? Aos 11 anos fazia jogos de prestidigitação, dava saltos mortais, imitava a andorinha, [21] andava com as mãos, caminhava, saltava e dançava na corda como um saltimbanco profissional.
Pelo que se fazia nos dias de festa, pode-se compreender o que se fazia nos outros.
Havia nos Becchi um prado, onde cresciam então algumas árvores, das quais resta ainda uma pereira, que naquele tempo muito me ajudou. [22], caderno 2, 1861 1862 1863, p. 129, FDB 1209 A 1.] Amarrava a essa árvore uma corda, que depois prendia em outra, a alguma distância. Numa mesinha colocava a bolsa; depois estendia um tapete por terra para os saltos. Quando tudo estava preparado e o público ansioso para ver as novidades, convidava-os todos a rezar o terço, depois do qual se entoava um canto sacro. Subia então a uma cadeira, fazia o sermão, ou melhor, repetia o que lembrava da explicação do Evangelho ouvida pela manhã na igreja, ou contava fatos e exemplos ouvidos ou lidos em algum livro. Terminado o sermão, rezava-se um pouco e passava-se logo ao entretenimento.
Poderíeis agora ver o orador, como disse antes, transformar-se num charlatão de profissão. Imitar a andorinha, dar o salto mortal, caminhar sobre as mãos de pernas para o ar, depois colocar o alforge aos ombros, engolir moedas para em seguida recobrá-las na ponta do nariz deste ou daquele espectador; mais: multiplicar bolinhas, ovos, mudar água em vinho, matar e reduzir a pedaços um frango e depois fazê-lo ressuscitar e cantar melhor do que antes, eram diversões ordinárias. Caminhava sobre a corda como por um caminho; saltava, dançava, pendurava-me ora com um pé ora com dois, com ambas as mãos ou com uma só. Depois de algumas horas de diversão, quando ficava bastante cansado, cessavam os jogos, fazia-se breve oração e cada um voltava aos seus afazeres. Ficavam excluídos dessas reuniões os que houvessem blasfemado, tido más conversas, ou se recusado a tomar parte nas práticas religiosas.
Neste ponto, haveis de perguntar: “Para ir à feira, aos mercados, com o fito de assistir aos charlatões, preparar o necessário para os divertimentos, era preciso dinheiro. De onde saía?”. Podia consegui-lo de diversas maneiras. Todas as moedas que mamãe ou outras pessoas me davam para compras ou gulodices, as pequenas gorjetas, os presentes, tudo eu guardava para essa finalidade. Além do mais, eu tinha grande habilidade em caçar passarinhos com arapuca, alçapão, visgo ou laços; era também muito entendido em ninhos. Juntando uma quantidade suficiente de tais objetos, sabia vendê-los muito bem. Os cogumelos, as ervas colorantes, a torga eram também fonte de renda.
Perguntareis se mamãe gostava que eu levasse uma vida tão folgada e gastasse tempo bancando o charlatão. Deveis saber que ela me queria muito bem. Eu depositava nela ilimitada confiança, e sem seu consentimento não havia de mover um dedo. Ela tudo sabia, tudo observava e me deixava agir. Antes, havendo necessidade de alguma coisa, dava-me com gosto. Os próprios coleguinhas e, em geral, todos os espectadores davam-me com satisfação quando fosse necessário para proporcionar-lhes os ambicionados passatempos.
[20] Cf. ASC A 0080605 D. Ruffino, Cronache dellŽOratorio di San Francesco di Sales [1859-1864
[21] O brinquedo da andorinha é um exercício atlético difícil. Crava-se verticalmente no chão uma vara; o ginasta segura-a fortemente com a mão esquerda, à altura do peito, ao passo que com a direita agarra-a uns 30 centímetros mais abaixo, pondo o cotovelo sobre as cadeiras, tendo assim um ponto de apoio para as pernas, que se projetam para fora, unidas ou separadas (cauda da andorinha), e em ângulo reto com a vara. O corpo conserva-se rigidamente estendido em perfeita linha horizontal. Então o ginasta, separando os pés, imprime ao corpo um impulso que lhe permite dar duas ou três voltas ao redor da vara.
[22] Cf. ASC A 0080605 D. Ruffino, Cronache dellŽOratorio di San Francesco di Sales [1859-1864
10. 2 PRIMEIRA COMUNHÃO - PREGAÇÃO DA MISSÃO - O Padre CALOSSO - ESCOLA DE MURIALDO
2 PRIMEIRA COMUNHÃO - PREGAÇÃO DA MISSÃO - O Padre CALOSSO - ESCOLA DE MURIALDO
Aos 11 anos fui admitido à Primeira Comunhão. Sabia todo o pequeno catecismo, mas na maioria dos casos ninguém era admitido à comunhão antes dos 12 anos. [23] Como eu morava longe da igreja, o pároco não me conhecia, e assim devia limitar-me exclusivamente à instrução religiosa de minha boa mãe. Não querendo, porém, que eu crescesse em idade sem praticar esse grande ato da nossa santa religião, empenhou-se ela própria em preparar-me como melhor podia e sabia. Durante a quaresma fez-me ir todos os dias ao catecismo. Fui depois examinado, aprovado, e marcou-se o dia em que todos os meninos deviam fazer a páscoa.
Era impossível evitar a distração no meio de muita gente. Mamãe assistiu-me vários dias, e durante a quaresma levou-me três vezes para confessar-me.
– Meu João – disse repetidas vezes –, Deus está preparando um grande presente para ti, mas procura preparar-te bem, confessar, não calar nada na confissão. Confessa tudo, arrepende-te de tudo, e promete a Deus ser melhor para o futuro.
Tudo prometi; se depois fui fiel, Deus é quem sabe.
Em casa fazia-me rezar, ler um bom livro, dando-me os conselhos que uma mãe industriosa julga oportunos para seus filhos.
Naquela manhã não me deixou falar com ninguém, acompanhou-me à sagrada mesa e fez comigo a preparação e a ação de graças, que o vigário forâneo, chamado Sismondi, [24] com muito zelo dirigia, alternando com todos em voz alta. Não quis que nesse dia me ocupasse em nenhum trabalho material, mas o passasse a ler e a rezar. Entre muitas outras coisas, mamãe repetiu-me várias vezes estas palavras:
– Meu filho, este foi um grande dia para ti. Estou certa de que Deus tomou realmente posse do teu coração. Promete-lhe agora que farás o que puderes para te conservares bom até o fim da vida. Para o futuro, comunga freqüentemente, mas jamais cometas sacrilégio. Diz sempre tudo na confissão. Sê sempre obediente, vai de boa vontade à doutrina e aos sermões, mas, por amor de Deus, foge como da peste dos que têm más conversas.
Guardei as recomendações de minha piedosa mãe e esforcei-me por praticá-las, e parece-me que desde esse dia houve alguma melhora em minha vida, especialmente na obediência e submissão aos outros, o que antes me custava muito, pois queria sempre fazer minhas objeções pueris a quem me dava alguma ordem ou conselho.
Muito me preocupava a falta de uma igreja ou capela aonde ir cantar e rezar com meus colegas. Para ouvir um sermão ou uma aula de catecismo, era preciso andar cerca de 10 quilômetros, entre ida e volta, até Castelnuovo ou o vizinho povoado de Buttigliera. [25] Por isso é que vinham com muito gosto ouvir as pregações do saltimbanco.
Houve naquele ano (1826) uma solene missão em Buttigliera, [26] proporcionando-me a oportunidade de ouvir diversas práticas. A fama dos pregadores atraía gente de toda a parte. Eu ia também junto com muitos outros. Depois de uma instrução e uma meditação ao cair da tarde, os ouvintes podiam regressar livremente às próprias casas.
Numa dessas tardes de abril, voltava eu para casa misturado à multidão, e junto conosco achava-se certo padre Calosso, [27] de Chieri, homem de muita piedade. Apesar de já entrado em anos, percorria também ele a longa estrada para ouvir os missionários. Era capelão de Murialdo. Chamou-lhe a atenção o menino de pequena estatura, cabeça descoberta, cabelos crespos e encaracolados, a caminhar no meio dos outros. E entrou a falar comigo.
– De onde vens, meu filho? Por acaso foste também à missão?
– Sim, senhor, fui ouvir a pregação dos missionários.
– Será que entendestes alguma coisa? Tua mãe, quem sabe, faria para ti uma prática mais oportuna, não achas?
– É verdade, mamãe faz-me muitas vezes bons sermões; mas vou também com gosto ouvir os dos missionários, e parece-me havê-los entendido.
– Se fores capaz de repetir quatro frases das práticas de hoje, dou-te 4 soldos.
– O senhor quer frases da primeira ou da segunda pregação?
– Como quiseres, contanto que me digas quatro frases. És capaz de lembrar de que é que se falou na primeira pregação?
– Na primeira pregação falou-se da necessidade de dar-se logo a Deus e não deixar a conversão para mais tarde. [28]
– E que foi que o padre disse no sermão? – acrescentou o venerando ancião um tanto maravilhado.
– Lembro-me muito bem, e se quiser recito todo o sermão.
E sem mais delongas comecei a expor o exórdio, depois os três pontos, isto é, que quem adia a conversão corre grande perigo de que lhe falte o tempo, a graça ou a vontade. Ele deixou-me prosseguir por mais de meia hora, no meio da multidão. Em seguida perguntou:
– Como te chamas? Quem são teus pais? Estudaste muito?
– Chamo-me João Bosco; meu pai morreu quando eu era criança. Minha mãe é viúva e tem cinco bocas para alimentar. Aprendi a ler e também a escrever um pouquinho.
– Não estudaste o Donato, [29] a gramática?
– Nem sei o que é isso.
– Gostarias de estudar?
– Muito, mesmo.
– Que é que te impede?
– Meu irmão Antônio.
– Por que é que Antônio não te deixa estudar?
– Porque como ele não quis ir à escola, diz que não quer que outros percam tempo em estudar como ele perdeu. Mas se eu pudesse ir, bem que estudaria e não havia de perder tempo.
– E para que é que gostaria de estudar?
– Para abraçar o estado eclesiástico.
– E por que motivo quererias abraçar esse estado?
– Para atrair a mim os meninos, falar-lhes, ensinar a religião a tantos companheiros meus, que não são maus, mas se tornarão tais porque ninguém cuida deles.
Esse meu modo de falar franco e, diria, atrevido, causou grande impressão naquele santo sacerdote, que enquanto eu falava não despegou os olhos de mim. Quando chegamos à altura do caminho onde era forçoso separar-nos, deixou-me com estas palavras:
– Coragem. Vou pensar em ti e em teus estudos. Vem ver-me domingo com tua mãe, e combinaremos tudo.
No domingo seguinte fui, de fato, com mamãe, e ficou combinado que ele próprio me daria diariamente uma aula, e eu empregaria o resto do dia trabalhando no campo, para contentar o irmão Antônio. Antônio mostrou-se satisfeito, porque a coisa devia começar depois do verão, quando já não há muito trabalho no campo.
Coloquei-me logo nas mãos do padre Calosso, que havia poucos meses chegara àquela capelania. Abri-me inteiramente com ele. Manifestava-lhe prontamente qualquer palavra, pensamento e ação. Isso muito lhe agradou, porque dessa maneira podia orientar-me com segurança no espiritual e no temporal.
Fiquei sabendo assim quanto vale um guia estável, um fiel amigo da alma, que até então não tivera. Entre outras coisas, proibiu-me logo uma penitência que eu costumava fazer e que não era apropriada à minha idade e condição. Animou-me a freqüentar a confissão e a comunhão, e ensinou-me a fazer todos os dias uma breve meditação, ou melhor, uma pequena leitura espiritual. Passava com ele todo o tempo que podia nos dias santificados. Nos dias de semana, quando possível, ia ajudar-lhe a santa missa. A partir desse tempo comecei a perceber o que é a vida espiritual, pois antes agia de maneira um tanto material, qual máquina que faz uma coisa sem saber por quê.
Em meados de setembro comecei regularmente o estudo da gramática italiana, que em pouco tempo pude concluir e exercitar com oportunas redações. No Natal comecei o Donato; na Páscoa, traduções do latim para o italiano e vice-versa. Durante todo esse tempo não abandonei nunca os entretenimentos dominicais no prado, ou no estábulo durante o inverno. Qualquer fato, sentença e mesmo qualquer palavra do mestre servia para entreter meus ouvintes.
Reputava-me feliz por haver satisfeito os meus desejos, mas uma nova provação, antes um grave infortúnio deitou por terra minhas esperanças.
[23] "As crianças, que completarem 12 anos de idade, se souberem os rudimentos da fé, não sejam proibidas de receber a Eucaristia somente por causa da idade. A mesma não deve ser negada aos que estejam gravemente doentes, embora estejam longe da sobredita idade, desde que tenham o uso da razão, e saibam conhecer pela fé a Cristo Senhor escondido sob as espécies sacramentais." Tais eram as prescrições sinodais em vigor naqueles anos em Turim (Prima dioecesana Synodus taurinensis celebrata XII e XI Kalendas Majas MDCCLV ab Excellentissimo et Reverendissimo Domino D. Joanne Baptista Rotario… Turim, Zappata e Avondi, XX, p. 3).
[24] O padre José Sismondi (1771-1826), pároco de Castelnuovo d’Asti de 1812 até à sua morte.
[25] Buttigliera d’Asti, 3 quilômetros ao sul de Castelnuovo.
[26] Tratava-se do Jubileu que, tendo sido celebrado em Roma em 1825, Leão XII estendera a todo o mundo em 1826. Na arquidiocese de Turim, a indulgência do Jubileu se podia adquirir de 12 de março a 12 de setembro. Para a ocasião foi composto um livrinho: Inni ed orazioni precritte dallŽIllmo e Revrmo. Monsignor Colombano Arcivescovo di Torino da recitarsi nelle Processioni di penitenza visitando le quattro Chiese per lŽacquinsto del Santo Giubileo com aggiunta de alcune preghiere per la Confessione e Comunione (Turim, Stamperia Reale, s/d). Depois desse Jubileu, não houve uma outra missão em Buttigliera naqueles anos.
[27] O padre João Melquior Calosso (1760-1830), que foi pároco de Bruino, de 1791 a 1813 e de 1819 a 1824, esteve auxiliando seu irmão, o padre Carlos Vicente Calosso, pároco de Berzano San Pietro. Foi capelão de Murialdo somente no período de 1829-1830. Dom Bosco nem sempre é exato nas datas destas suas Memórias. Escreveu-as ao correr da pena para seus filhos, sem se preocupar demasiadamente com uma precisão cronológica. Apresenta-se aqui um caso bem claro. Está demonstrado documentadamente que o padre João Calosso assumiu a capelania de Murialdo em outubro de 1829, e que o primeiro dia da missão em Buttigliera (a meio caminho entre os Becchi e Castelnuovo, para a direita) foi a 5 de novembro de 1829 (cf. J. Klein - E. Valentini, "Una rettificazione cronologica delle Memorie di san Giovanni Bosco", Salesianum 17 (1955), p. 581-610). A diferença de datas talvez se deva ao fato que a narração das MO não inclui o período que João Bosco passou trabalhando como empregado do campo em Villa Moglia. Servindo-nos dessa "retificação cronológica", corrigimos as datas em nota, citando também outras que não constam nas Memórias, mas podem ser úteis ao leitor interessado.
[28] Pela crônica do padre Ruffino, citada acima e por outras fontes se sabe que o argumento do sermão era o encontro da alma com o corpo no juízo universal. Fiel aos objetivos das MO, Dom Bosco substitui esta pregação com este texto, que tem por fonte O jovem instruído na prática de seus deveres religiosos, talvez com a mediação de ASC A 225 Prediche - Conferenze - Discorsi, FDB 84 B 5.
[29] Hélio Donato, gramático latino do século IV. Donato passou a ser sinônimo de gramática latina.
11. 3 OS LIVROS E A ENXADA - UMA NOTÍCIA MÁ E OUTRA BOA - MORTE DO PADRE CALOSSO
3 OS LIVROS E A ENXADA - UMA NOTÍCIA MÁ E OUTRA BOA - MORTE DO PADRE CALOSSO
Pelo tempo que durou o inverno e os trabalhos do campo não exigiam maiores cuidados, o irmão Antônio deixava-me à vontade para estudar. Quando, porém, chegou a primavera, começou a queixar-se, dizendo que ele devia matar-se em trabalhos pesados, ao passo que eu perdia o tempo bancando o senhorzinho. Depois de vivas discussões comigo e com mamãe, resolveu-se, para conservar a paz em casa, que eu iria de manhã cedinho à escola e o resto do dia atenderia aos trabalhos materiais. Mas como estudar as lições? Como fazer as traduções?
Ouvi. A ida e a volta da escola proporcionavam-me algum tempo para estudar. Chegado em casa, segurava a enxada numa das mãos e na outra a gramática. Pelo caminho estudava qui, quae, quod etc. [30] até chegar ao lugar do trabalho; aí, lançando um olhar saudoso à gramática, punha-a num canto e começava a capinar, a ancinhar ou a recolher o capim com os outros, conforme a necessidade.
Na hora em que os outros costumavam merendar, punha-me de parte e comia, com o pão em uma das mãos, e estudava, com o livro na outra. De volta para casa repetia a mesma operação. O único tempo de que dispunha era na hora do almoço, da ceia e no que roubava ao repouso.
Não obstante tanto trabalho e boa vontade, o irmão Antônio não estava satisfeito. Disse um dia, em tom imperativo, à mamãe e depois ao meu irmão José:
– Já chega. Vou acabar com essa gramática. Fiquei forte e gordo e nunca vi um livro. [31].]
Dominado pela aflição e pela raiva, respondi o que não devia:
– Não estás certo. Não sabes que o nosso burro é maior do que tu e nunca foi à escola? Queres parecer-te com ele?
Ao ouvir tais palavras, subiu à serra, e foi graças às minhas boas pernas que pude fugir e subtrair-me a uma chuva de pancadas e pescoções.
Mamãe estava muito aflita. Eu chorava. O capelão sentia pena. Informado das complicações de minha família, [32] o digno ministro de Deus chamou-me um dia e disse-me:
– Joãozinho, puseste em mim tua confiança, e não quero que isso seja inútil. Deixa, pois, esse irmão malvado, vem comigo e terás um pai amoroso.
Comuniquei imediatamente à mamãe o caridoso convite, e foi uma festa em casa. No mês de abril passei a conviver com o capelão, voltando para casa somente à noitinha para dormir. Ninguém pode imaginar minha grande alegria. O padre Calosso tornou-se um ídolo para mim. Era um prazer imenso trabalhar para ele e até dar a vida por algo que fosse do seu agrado. Fazia mais progresso num dia com o capelão, que numa semana em casa. O homem de Deus afeiçoara-se tanto a mim que chegou a dizer-me por diversas vezes:
– Não te preocupes com o teu futuro. Enquanto eu estiver vivo, nada te faltará. Se morrer, haverei de providenciar da mesma forma.
Minha vida andava mesmo de vento em popa. Julgava-me plenamente feliz, nada havia que ainda pudesse desejar, quando um desastre veio truncar todas as minhas esperanças.
Certa manhã de abril de 1828, [33] o padre Calosso mandou-me dar um recado a meus parentes. Mal cheguei em casa, uma pessoa, correndo, ofegante, veio avisar-me que corresse imediatamente para junto do padre Calosso, que fora acometido de um grave mal e perguntava por mim. Não corri, voei para junto do meu benfeitor, que lamentavelmente encontrei de cama, sem fala. Sofrera um ataque apoplético. Reconheceu-me, queria falar, mas já não podia articular palavra. Deu-me a chave do dinheiro, fazendo gestos como para indicar que não a entregasse a ninguém. Após dois dias de agonia, o pobre padre Calosso voava ao seio do Criador. [34] Com ele morriam minhas esperanças todas.
Rezei sempre e enquanto viver não deixarei de rezar todas as manhãs por este meu insigne benfeitor.
Chegaram os herdeiros do padre Calosso e entreguei-lhes a chave e tudo o mais. [35]
[30] Qui, quae, quod etc. é uma reminiscência da velha sintaxe latina, que condensava, para ajudar a memória, em pequena estrofe de octonários a concordância do pronome relativo com o seu antecedente. Era formulada assim: "Qui, quae, quod quando é colocado - Depois do nome que o antecede - Lhe consente pôr-se de acordo - só quanto ao número e ao gênero".
[31] "Ele fará como eu fiz; eu nunca fui à escola e fiquei grande e gordo como os outros", diz o pai de Pedro em G. Bosco, La forza della buona educazione… Turim, Tipografia Paravia e comp., 1855, p. 7; OE VI [281
[32] Dom Bosco silenciou neste capítulo o maior dos seus conflitos. Os maus-tratos do irmão de criação e o perigo de piores conseqüências forçaram a mãe a tomar a gravíssima decisão de fazer João deixar a casa e trabalhar como empregado numa casa de campo. A penosa situação durou quase dois anos, de fevereiro de 1828 até novembro de 1829. Sobre isso escreve Lemoyne (MB I, p. 190): "Tinha João inteligência e coração grandes; era obediente por virtude, mas não se submetia por inclinação natural. O mais pobre sente-se senhor na própria casa, como o rei no seu trono. E Deus fará com ele o que fez com Moisés (…). João está preparado por longo exercício de heróica humildade, tem que sair da própria casa e servir em casa alheia durante dois anos; e ele era de condição tal que sentia todo o peso da humilhação".
[33] Em novembro de 1830.
[34] Cf. ASC A 103031 FDB 558 A 9. Atestado de óbito na paróquia de Santo André em Castelnuovo d’Asti: "Padre João Calosso, de Chieri, capelão de Murialdo, morreu neste município e paróquia de Catelnuovo d’Asti, dia 21 de novembro de 1837, tendo a idade de 75 anos. Para fé: Castelnuovo, 7 de novembro de 1894. Padre Miguel Vianjone. Timbre da paróquia".
[35] "Entreguei-lhes a chave e tudo o mais", frase genérica, mais eloqüente do que a expressão real: tudo o que estava debaixo daquela chave. Eram umas 6 mil liras. Todo um capital para o pobre filho de Mamãe Margarida. Este lacônico parágrafo merecia figurar ao lado de muitas expressões simples e sublimes que passaram à história.
4 O PADRE CAFASSO - INCERTEZAS - DIVISÃO FRATERNA - ESCOLA DE CASTELNUOVO D’ASTI - A MÚSICA - O ALFAIATE
Nesse mesmo ano, a divina Providência fez-me encontrar um novo benfeitor, o padre José Cafasso, de Castelnuovo d’Asti. [36]
Era o segundo domingo de outubro (1827) [37] e os habitantes de Murialdo festejavam a Maternidade de Nossa Senhora, para eles a solenidade principal. Muitos andavam atarefados em casa ou na igreja, enquanto outros mantinham-se como espectadores ou tomavam parte em jogos ou brinquedos diversos.
Só vi uma pessoa longe de qualquer espetáculo. [38] - 367].] Era um clérigo de pequena estatura, olhos cintilantes, aparência afável, rosto angélico. Apoiava-se à porta da igreja. Fiquei como fascinado pela sua figura, e apesar de ter apenas 12 anos, movido pelo desejo de falar-lhe, aproximei-me e dirigi-lhe estas palavras:
– Senhor cura, quer ver algum espetáculo da nossa festa? Eu o levo com muito gosto aonde desejar.
Ele fez gentilmente um sinal para que me aproximasse e começou a perguntar sobre minha idade, sobre o estudo, se já havia recebido a sagrada Comunhão, com que freqüência me confessava, aonde ia ao catecismo e coisas assim. Fiquei encantado por aquela maneira edificante de falar, respondi com satisfação a todas as perguntas e depois, como para agradecer-lhe a afabilidade, renovei o oferecimento de acompanhá-lo para ver algum espetáculo ou novidade.
– Meu caro amigo – replicou –, os espetáculos dos padres são as funções de igreja, quanto mais devotamente se celebrarem, tanto mais agradáveis serão. Nossas novidades são as práticas da religião, que são sempre novas e, por isso, deve-se freqüentá-las com assiduidade. Estou só esperando que se abra a igreja para poder entrar.
Criei coragem para continuar a conversa e acrescentei:
– É verdade tudo quanto me diz. Mas há tempo para tudo: tempo para ir à igreja e tempo para divertir-se.
Ele se pôs a rir e concluiu com estas memoráveis palavras, que foram como o programa de toda a sua vida:
– Quem abraça o estado eclesiástico entrega-se ao Senhor, e nada do mundo deve interessá-lo, a não ser o que pode redundar em maior glória de Deus e proveito das almas.
Muito impressionado, quis saber o nome do clérigo, cujas palavras e porte manifestavam em elevado grau o espírito do Senhor. Soube que era o clérigo José Cafasso, estudante do 1º ano de teologia, de quem em diversas ocasiões já ouvira falar como de um modelo de virtude.
A morte do padre Calosso foi para mim um desastre irreparável. Eu chorava desconsolado o benfeitor falecido. Acordado, pensava nele, dormindo, com ele sonhava; as coisas chegaram a um tal ponto que mamãe, temendo pela minha saúde, mandou-me passar uma temporada com meu avô em Capriglio. [39]
Tive nesse tempo outro sonho, no qual fui asperamente repreendido por haver posto minha esperança nos homens e não na bondade do Pai do Céu.
Entretanto acompanhava-me sempre a idéia de progredir nos estudos. Via alguns bons padres trabalhar no sagrado ministério, mas não podia contrair com eles nenhuma familiaridade. Aconteceu encontrar-me muitas vezes pelo caminho com o pároco [40] e seu coadjutor. Cumprimentava-os de longe, e quando mais de perto fazia também uma inclinação. Eles, contudo, retribuíam sérios e corteses a saudação e continuavam andando. Repetidas vezes, chorando, disse de mim para mim e também a outros:
– Se eu fosse padre, agiria de outro jeito. Gostaria de aproximar-me dos meninos, dizer-lhes uma boa palavra, dar-lhes bons conselhos. Como seria feliz se pudesse falar um pouco com o meu vigário. Com o padre Calosso tinha essa satisfação. Não terei nova oportunidade?
Mamãe, vendo-me sempre aflito pelas dificuldades que se antepunham aos meus estudos e perdendo a esperança de conseguir o consentimento de Antônio, que já passava dos 20 anos, decidiu dividir os bens paternos. Havia uma grande dificuldade, porque sendo eu e José ainda menores, era preciso percorrer muitos trâmites e enfrentar pesadas despesas. Apesar disso, a decisão foi mantida.
Dessa maneira nossa família ficou reduzida a mamãe e a meu irmão José, que quis viver comigo sem dividir as partes. Vovó falecera alguns anos antes. [41]
É verdade que a partilha tirava-me uma pedra do estômago e proporcionava-me plena liberdade de prosseguir os estudos. Não obstante, para atender às formalidades das leis foram precisos meses, e eu só pude freqüentar as escolas públicas de Castelnuovo por volta do Natal desse ano de 1828, quando eu já vivia meus 13 anos de idade. [42]
A entrada para uma escola pública, com professor novo, depois dos estudos feitos em particular, foi para mim um transtorno, pois quase tive de começar a gramática italiana para depois passar à latina. Por algum tempo ia todos os dias de casa à escola no povoado, mas no rigor do inverno isso era quase impossível. Entre duas idas e voltas somavam-se 20 quilômetros de caminho por dia. Passei então a ser pensionista de um bom homem chamado Roberto Gioanni, alfaiate e entusiasta do canto gregoriano e da música vocal. Como eu tinha uma voz razoável, dediquei-me com muito entusiasmo à arte musical, e em poucos meses pude fazer parte do coro e cantar solos com êxito. Mais: desejando empregar em alguma outra coisa as horas livres, pus-me a trabalhar como alfaiate. Em muito pouco tempo tornei-me capaz de pregar botões, coser bainhas, fazer costuras simples e duplas. Aprendi também a cortar ceroulas, coletes, calças, paletós. Tinha a impressão de haver-me tornado excelente mestre de alfaiataria.
Vendo-me progredir tanto no ofício, meu patrão fez-me propostas assaz vantajosas para que eu ficasse definitivamente com ele. Meus planos, porém, eram outros: queria progredir nos estudos. Se para evitar a ociosidade me ocupava em muitas coisas, fazia todos os esforços possíveis para atingir o objetivo principal.
Nesse ano corri algum perigo por parte de certos colegas. Queriam induzir-me a jogar durante o tempo das aulas. Como desculpa, disse que não tinha dinheiro, e então sugeriram-me a maneira de arranjá-lo, roubando-o ao meu patrão ou à minha mãe. Para animar-me, dizia um colega:
– Meu amigo, já é tempo de acordar, é preciso aprender a viver no mundo. Quem conserva os olhos vendados não vê por onde caminha. Vamos, arranja dinheiro e desfrutarás também tu os prazeres dos teus colegas.
Lembra-me a resposta:
– Não chego a compreender o que queres dizer, todavia pelas tuas palavras parece-me que me aconselhas a jogar e a roubar. Não dizes todos os dias nas orações: sétimo, não furtar? Depois, quem rouba é ladrão, e os ladrões acabam mal. Por outro lado, minha mãe me quer muito bem; se lhe pedir dinheiro para coisas lícitas, ela me dá; nunca fiz nada sem sua licença, e não quero começar agora a desobedecer-lhe. Se teus colegas agem assim, não são boa coisa. Se não fazem, mas aconselham a outros, são malandros e malvados.
Estas palavras correram de boca em boca, e ninguém mais se atreveu a fazer-me propostas indignas. A resposta chegou até aos ouvidos do professor, que se tornou ainda mais afeiçoado a mim. Chegou também aos de muitos pais de meninos ricos que por isso exortavam os filhos a estarem comigo. Pude destarte escolher com facilidade um grupo de amigos que me queriam bem e obedeciam como os de Murialdo.
As coisas iam-se encaminhando muito bem, quando novo incidente veio transtorná-las. O padre Virano, [43] meu professor, foi nomeado pároco de Mondônio, diocese de Asti. E assim, em abril desse ano de 1830, [44] nosso querido professor tomava posse da sua paróquia. Foi substituído por outro [45] que, incapaz de manter a disciplina, quase deitou a perder quanto eu havia aprendido nos meses anteriores.
[36] O padre José Cafasso (1811-1860), sacerdote em 1833, entrou no Colégio Eclesiástico em 1834. Repetidor de moral desde 1837, em 1843 assumiu a responsabilidade das conferências cotidianas, privada e pública. Desenvolveu uma vasta atividade como moralista, confessor, formador de sacerdotes e de leigos. Lembra-se ainda a assistência aos encarcerados, especialmente aos condenados à morte. Quando via que a pastoral da diocese, rigidamente ligada ao esquema paroquial, não respondia a alguma exigência nova dos tempos, procurava algum aluno que tivesse queda para aquele tipo de trabalho e o encaminhava nesse sentido. Deu um válido apoio à obra da catequese e dos Oratórios (cf. L. Nicolis de Robilant, San Giuseppe Cafasso, cofondatore del Convitto ecclesiastico di Torino. 2ª ed. Turim, Edizioni Santuario della Consolata, 1960).
[37] Provavelmente, em 1830.
[38] Cf. Rimembranza storico-funebre dei giovani dellŽOratorio di San Francesco di Sales verso il sacerdote Cafasso Giuseppe loro insigne benefattore pel sacerdote Bosco Giovanni. Turim, Tip. Paravia e Comp., 1860, p. 18-20; OE XII [365
[39] Melquior Occhiena (1752-1844).
[40] De 1827 a 1834 foi pároco de Castelnuovo d’Asti o padre Bartolomeu Dassano (1796-1854). Foi depois para Cavour, onde investiu os frutos de seu patrimônio e do benefício eclesiástico em obras de caridade. Fundou em Cavour o asilo e o subsidiou; construiu também uma nova sacristia. "Morreu pobre de substâncias, riquíssimo de méritos" (cf. ASC A 1060104 FDB 572 D 11, testemunho do padre Ughetti). Nos atestados de Batismo desse tempo se encontra: "Batizado pelo padre Campra, vigário cooperador".
[41] Dia 11 de fevereiro de 1826.
[42] Em 1830, aos 15 anos.
[43] O padre Manoel Virano (1797 - ?) nascido em Poirino. Foi pároco em Mondônio, de 1831 a 1834.
[44] Ano 1831.
[45] O padre Nicolau Moglia (1755 - ?).
13. 5 AULAS EM CHIERI - BONDADE DOS PROFESSORES - OS QUATRO PRIMEIROS CURSOS DE GRAMÁTICA
5 AULAS EM CHIERI - BONDADE DOS PROFESSORES - OS QUATRO PRIMEIROS CURSOS DE GRAMÁTICA
Depois de tanto tempo perdido, ficou resolvido que eu iria para Chieri, a fim de aplicar-me com seriedade ao estudo. Era o ano de 1830. [46] Para quem foi criado na roça e só conheceu um ou outro povoado do interior, qualquer novidadezinha causa grande impressão. Hospedei-me na casa de uma conterrânea, Lúcia Matta, [47], Edições Acclaim [1988].] viúva com um só filho, que se mudara para aquela cidade a fim de o assistir e vigiar.
A primeira pessoa que fiquei conhecendo foi o padre Valimberti, [48] de saudosa memória. Deu-me oportunos conselhos para manter-me longe dos perigos; convidava-me a ajudar-lhe a missa, e isso oferecia-lhe o ensejo de dar-me sempre alguma boa sugestão. Levou-me ele próprio ao prefeito das escolas [49] e apresentou-me aos demais professores. Como os estudos feitos até então consistiam num pouco de tudo, vindo a dar em nada, aconselharam-me a entrar para a sexta classe que corresponderia hoje ao curso preparatório para o 1º ginasial. [50]
O professor de então, o teólogo Pugnetti, [51] também de grata memória, usou de muita caridade para comigo. Atendia-me na escola, convidava-me para ir à sua casa e, compadecido de minha idade e boa vontade, tudo fazia para ajudar-me.
Minha idade e corpulência faziam-me parecer uma alta coluna no meio dos pequenos colegas. Ansiava por sair dessa situação. Submetido a exame, [52] fui promovido à quinta classe, porque, depois de dois meses na sexta, havia tirado o primeiro lugar. Entrei com muita satisfação para a nova classe, porque os condiscípulos eram maiorzinhos e, além disso, tinha como professor a pessoa querida do padre Valimberti. Conquistando várias vezes o primeiro lugar, fui, dois meses depois, admitido por via excepcional a outro exame, passando então para a quarta, que corresponde ao sexto ano.
O professor dessa classe era José Cima. [53] Homem exigente na disciplina. Ao ver aparecer em sua aula, na metade do ano, um aluno alto e encorpado como ele, disse brincando em plena aula:
– Aí está uma enorme toupeira ou um grande talento. Que acha?
Confuso ante a figura severa do professor, respondi:
– Uma coisa média. É um pobre rapaz, que tem boa vontade de cumprir com seu dever e progredir nos estudos.
Agradaram-lhe tais palavras, e com desusada afabilidade acrescentou:
– Se tem boa vontade, está em boas mãos; não o deixarei sem trabalho. Coragem, e se encontrar alguma dificuldade, diga-me logo, que eu a resolverei.
Agradeci de coração.
Estava havia dois meses nessa classe quando um pequeno incidente fez falar de mim. O professor estava explicando a vida de Agesilau, escrita por Cornélio Nepos. Naquele dia eu não havia trazido o livro, e para disfarçar o esquecimento conservava aberto à minha frente o Donato. Os companheiros perceberam. Riu o primeiro, continuou o segundo, e a desordem generalizou-se.
– Que é que há? – disse o preceptor –. Que é que há?
Como os olhares de todos convergiam para mim, mandou-me fazer a construção e repetir sua explicação. Levantei-me então, e segurando sempre o Donato nas mãos, repeti de cor o texto, a construção e a explicação. Os companheiros instintivamente, entre gritos de admiração, bateram palmas. Nem é preciso dizer a que ponto o professor se enfureceu, porque era a primeira vez que, na sua opinião, não conseguia manter a disciplina. Deu-me um safanão, que evitei baixando a cabeça; depois, pondo a mão sobre o meu Donato, pediu explicações da desordem aos vizinhos. Disseram:
– Bosco teve sempre o Donato nas mãos, e leu e explicou como se fosse o livro de Cornélio.
O professor pegou do Donato, fez-me continuar ainda dois períodos e depois acrescentou:
– Pela sua feliz memória [54] perdôo-lhe o esquecimento. Tem sorte. Procure servir-se bem dela.
Ao final daquele ano escolar (1830-1831) [55] passei com boas notas para a terceira de gramática, ou seja o 3º ginasial.
[46] No dia 3 de novembro de 1831.
[47] Lúcia Matta (1783-1851), filha de João Pianta, esposa de José Matta, morava com o marido em Murialdo. Ficando viúva, transferiu-se para Chieri, onde subalugava alguns quartos da casa Marchisio, talvez no bairro Giraldo. Seu filho, João Batista Matta (1809-1878) foi prefeito de Castelnuovo (cf. S. Casella, Giovanni Bosco studente a Chieri 1831-41: dieci anni che valgono una vita. [Turim
[48] O padre Plácido Valimberti (1802-1848), professor da 5ª série de latinidade a partir de outubro de 1830.
[49] "Ao prefeito dos estudos será confiada a observância da boa ordem nas escolas, e na Congregação, e o exato cumprimento de quanto é prescrito tanto aos professores, e mestres, quanto aos estudantes todos da cidade de sua residência, e também aos reitores dos pensionatos, ou internatos que alguém fosse autorizado a manter na mesma" (Regulamento para as escolas, Título terceiro, capítulo terceiro, parágrafo 1º, artigo 102).
[50] Quanto à numeração das classes cumpre notar que então faziam-na em ordem decrescente: 6ª, 5ª, 4ª etc., isto é, o que hoje chamamos 4ª, 5ª, 6ª séries etc. João Bosco, aos 16 anos completos, foi, no princípio do curso, colocado entre meninos de 9 ou 10, o que decerto provocava alguma brincadeira dos seus pequenos colegas. Dizia o Regulamento para as escolas, no título terceiro, capítulo segundo, parágrafo II, artigo 69: "Serão seis as séries de latinidade (…), isto é: 6ª, 5ª, 4ª, gramática, humanidades e retórica".
[51] O teólogo Valeriano Pugnetti (1807-1868). Teve em Chieri vários cargos: capelão reitor do Santuário da Anunciação, reitor do internato, diretor espiritual no seminário, administrador da escola de educação infantil. Foi pároco de Casalgrasso de 1854 em diante. Morreu em Chieri.
[52] "As promoções da classe inferior para a superior não poderão ordinariamente ter lugar se não no fim do ano escolar, ou na primeira metade de novembro para as classes inferiores à terceira; se acontecer algum caso extraordinário, espere-se a decisão do Magistrado, ou da Comissão encarregada dos estudos… (Regulamento para as escolas, título quarto, capítulo terceiro, parágrafo IV, artigo 191).
[53] O clérigo Vicente Cima (1810 - ?) nasceu em Cambiano. No dia 28 de outubro de 1831 era nomeado professor da quarta classe com o estipêndio de 450 liras anuais (veja Archivio Storico del Comune di Chieri, Registro degli Ordinati, anno 1831, p. 253). Em 1838 compôs o Hino a Nossa Senhora das Graças para a festa da santa em Chieri. Em 1845, já sacerdote, publicava a pregação quaresmal do padre Melquior Sclaverani na colegiada de Chieri. Recordamos que no Reino da Sardenha, para ser professor, devia-se pelo menos ter recebido a tonsura e ser clérigo. Assim todo o ensino oficial estava nas mãos da Igreja.
[54] Dom Bosco teve sempre uma memória felicíssima. Já o havia demonstrado com o sermão recitado para o padre Calosso. Dizia que para ele ler e reter eram a mesma coisa. Em idade avançada, divertia por vezes os secretários, após longas horas de audiência, recitando-lhes cantos de Dante ou de Tasso. Poucos meses antes de morrer, indo de carro com o padre Rua e conversando sobre ponto da história sagrada, no qual se havia inspirado Metastásio, repetiu cenas inteiras do poeta, que, certamente não havia tornado a ler desde os tempos de Chieri. Nas MB (I, p. 395, 423, 432-434 etc.), outras provas de memória extraordinária.
[55] Em 1831-1832. Como se pode ver do atestado dos resultados escolares de João Bosco (ASC A 0200908 FDB 64 A 1) o ano de gramática foi feito em 1832-1833.
14. 6 OS COLEGAS - SOCIEDADE DA ALEGRIA - DEVERES CRISTÃOS
6 OS COLEGAS - SOCIEDADE DA ALEGRIA - DEVERES CRISTÃOS
Durante as primeiras quatro classes tive de aprender por minha conta como tratar os colegas. Dividira-os em três categorias: bons, indiferentes, maus. [56] alguns deles são maus, outros não são maus, mas não muito bons, e outros são verdadeiramente bons. Deve-se absolutamente evitar os primeiros, com os segundos tratar só quando haja necessidade, mas sem criar nenhuma familiaridade, e deve-se freqüentar os últimos, e estes são aqueles com os quais se obtém a utilidade espiritual e temporal" (Cenni storici sulla vita del chierico Luigi Comollo […] scritti da un suo collega. Turim, Speirani e Ferrero, 1844, p. 63-64; OE [63]-[64].] Estes últimos devia evitá-los absolutamente e sempre, assim que os conhecesse. Com os indiferentes havia de entreter-me por delicadeza e por necessidade. Com os bons podia travar amizade, quando fossem verdadeiramente tais. Como não conhecia ninguém na cidade, resolvi não contrair familiaridade com ninguém. Tive entretanto de lutar e muito com os que não conhecia bem. Alguns queriam levar-me ao teatro, outros a disputar uma partida, outros a nadar. [57] Houve até quem quisesse induzir-me a roubar frutas dos pomares e nos campos. Um deles foi tão descarado que me aconselhou a roubar da minha patroa um objeto de valor para comprarmos caramelos. Livrei-me dessa caterva de infelizes fugindo rigorosamente de sua companhia, à medida que os ia descobrindo. De ordinário respondia que minha mãe me havia confiado à dona da casa onde estava hospedado, e que pelo amor que lhe tinha não queria ir a lugar algum nem nada fazer sem o consentimento da boa dona Lúcia.
Minha firme obediência à boa senhora foi-me útil também materialmente, pois com muita satisfação confiou-me seu filho único,(*) de temperamento muito vivo, grande amigo do brinquedo, pouquíssimo do estudo. Encarregou-me de repassar-lhe as lições, embora estivesse numa classe superior à minha. Cuidei dele como de um irmão. Com jeito, pequenos presentes, entretenimentos caseiros, e levando-o às práticas religiosas, tornei-o dócil, obediente e estudioso, a tal ponto que depois de seis meses havia-se tornado bastante bom e aplicado, satisfazendo o professor e conseguindo lugares de honra na sua classe. A mãe ficou muito contente e em retribuição perdoou-me toda a pensão mensal.
( *) João Batista Matta de Castelnuovo foi por muitos anos prefeito da sua terra, onde agora tem um bazar.
Como os companheiros que me queriam levar às desordens eram os mais desleixados nos deveres escolares, começaram também a recorrer a mim para que lhes fizesse o favor de lhes emprestar ou ditar o tema da aula. Isso desagradou ao professor, porque minha mal-entendida benevolência favorecia-lhes a preguiça, e me proibiu de ajudá-los. Recorri então a um meio menos prejudicial, isto é, explicar as dificuldades e ajudar os mais atrasados. Dessa maneira agradava a todos e conquistava o afeto e a estima dos colegas. Começaram a vir para brincar, depois para ouvir fatos e fazer a tarefa de aula, e, por fim, sem motivo algum, como os de Murialdo e de Castelnuovo.
Para dar um nome essas reuniões, costumávamos chamar-lhe Sociedade da Alegria. [58] O nome vinha a calhar, porque cada sócio tinha a obrigação estrita de arranjar livros e provocar assuntos e brinquedos que pudessem contribuir para estarmos alegres. Tudo o que pudesse ocasionar tristeza, especialmente as coisas contrárias às leis do Senhor, estava proibido. Assim, quem houvesse blasfemado ou tomado o nome do Senhor em vão, ou tido más conversas, era imediatamente expulso da sociedade.
Encontrando-me desse modo à testa de uma multidão de companheiros, assentamos de comum acordo estas bases: [59] primeiro, todo membro da Sociedade da Alegria deve evitar qualquer conversa ou ação que desdiga de um bom cristão; segundo, exatidão no cumprimento dos deveres escolares e religiosos.
Isso contribuiu para granjear-me a estima dos colegas, a ponto de, em 1832, ser respeitado por eles como o capitão de um pequeno exército. Por toda a parte era convidado para organizar entretenimentos, assistir alunos em suas próprias casas e também dar aulas de repetição a domicílio. Por meio disso a divina Providência facilitava-me a aquisição de quanto me era necessário, como roupas, objetos escolares e outros, sem causar nenhum incômodo à minha família.
[56] "[…
[57] "Fica rigorosamente proibido aos estudantes a natação, o ingresso nos teatros, nos jogos de truco, o usar máscaras ou ir a bailes mediante convite, qualquer jogo nas ruas, bares e cafés e outros lugares públicos, almoçar, comer ou beber nos hotéis, ou restaurantes, parar ou fazer rodinhas, ou ficar conversando nos cafés, e recitar em teatros domésticos sem a licença do Prefeito dos estudos" (Regulamento para as escolas, título terceiro, capítulo primeiro, parágrafo 2º, artigo 42).
[58] Na organização da Sociedade da Alegria, da qual era presidente nato, muito embora nunca se tenha falado de presidência, transparecem as suas qualidades características: zelo apostólico vivo e sagaz, gênio organizador e, sobretudo o espírito que lhe animará depois a obra educativa. Numa palavra, os germes do homem futuro. Ao contemplar o jovem estudante à frente daquele grupo de colegas, Henri Gheón escreve em seu Saint Jean Bosco (Paris, "Les grands coeurs", p. 73: "Calçou as sandálias do apóstolo, só lhe faltava a túnica; depois, nada o deterá".
[59] Num primeiro momento Dom Bosco escrevera: "foi colocado como base de nossa amizade".
15. 7 BONS COMPANHEIROS E PRÁTICAS DE PIEDADE
7 BONS COMPANHEIROS E PRÁTICAS DE PIEDADE
Entre os que compunham a Sociedade da Alegria, pude descobrir alguns elementos verdadeiramente exemplares. Merecem ser nomeados Guilherme Garigliano, de Poirino, e Paulo Braia de Chieri. [60] Participavam com gosto da honesta recreação, mas colocavam sempre, em primeiro lugar os deveres escolares. Ambos apreciavam o recolhimento e a piedade, e constantemente me davam bons conselhos. Nos dias santos, após a reunião regulamentar do colégio, íamos à igreja de Santo Antônio, [61] onde os jesuítas explicavam estupendamente a doutrina, enriquecida de exemplos que ainda recordo.
Durante a semana a Sociedade da Alegria reunia-se na casa de algum sócio para falar de religião. À reunião ia livremente quem queria. Garigliano e Braia eram dos mais assíduos. Por algum tempo entretínhamo-nos em amena recreação, em piedosas conversas, leituras religiosas, em orações, dando-nos bons conselhos e avisando-nos dos defeitos pessoais que alguém houvesse notado ou ouvido falar por outros. Sem que então o soubesse, estávamos pondo em prática o sublime aviso: “Feliz de quem tem um monitor”. É o que dizia Pitágoras: “Se não tendes um amigo que vos corrija os defeitos, pagai um inimigo para que vos preste esse serviço”. Além dos amistosos entretenimentos, íamos ouvir pregações, confessar-nos e fazer a santa Comunhão.
Neste ponto é bom lembrar que naqueles tempo a religião formava parte fundamental da educação. Um professor, [62], deixando de vestir o hábito clerical, serão inabilitados para continuar no emprego de professor ou mestre, nem terão direito à aposentadoria pelo serviço prestado" (Regulamento para as escolas, título terceiro, capítulo terceiro, parágrafo IV, artigo 125).] que mesmo por brincadeira pronunciasse uma palavra indecorosa ou irreligiosa, era imediatamente destituído do cargo. Se assim acontecia com os professores, imaginar a severidade que se usava com os alunos indisciplinados ou escandalosos! [63]
Nas manhãs dos dias de semana, ouvíamos a santa missa. [64]. 135. Deverá cada estudante ter seu livro de devoção, e lê-lo enquanto se celebra o santo sacrifício, estando de joelhos com o devido recolhimento" (Regulamento para as escolas, título IV, capítulo primeiro, parágrafo I, artigos 134 e 135).] No começo da aula, recitava-se devotamente o Actiones com a Ave-Maria. Depois, dizia-se o Agimus com a Ave-Maria. [65]. A aula depois do almoço começará com a recitação do Actiones nostras, e terminará com as orações da noite" (Regulamento para as escolas, título segundo: "Das escolas municipais", artigo 12).]
Nos dias santos, os alunos reuniam-se todos na igreja da congregação. [66]. "Na congregação da manhã se observe a seguinte ordem: 1º leitura espiritual durante o quarto de hora de entrada; 2º canto do Veni Creator; 3º o noturno com as lições, e o hino ambrosiano segundo os vários tempos, do ofício da Bem-aventurada Virgem Maria; 4º missa; 5º canto das ladainhas da Bem-aventurada Virgem para dar tempo à oportuna ação de graças do celebrante diretor e dos que comungaram; 6º instrução; 7º salmo Laudate Dominum omnes etc., com o versículo e oração pela Sagrada Real Majestade. Na congregação da tarde se observará a seguinte ordem: 1º leitura espiritual durante o quarto de hora da entrada; 2º canto das costumeiras preces com a récita dos atos de fé, esperança, caridade e contrição; 3º catequese por três quartos de hora, o bedel avisará a hora de terminar a catequese" (Regulamento para as escolas, título IV, capítulo I, parágrafo I, artigo 139, e parágrafo segundo, artigos 158 e 159). ] Durante a entrada dos jovens fazia-se uma leitura espiritual, à qual se seguia o canto do ofício de Nossa Senhora; em seguida, a missa, e, depois, a explicação do Evangelho. À tarde, catecismo, vésperas, instrução. Todos deviam receber os santos sacramentos e, para impedir o descuido desses importantes deveres, eram obrigados a apresentar uma vez ao mês o bilhete de confissão. [67] Quem não houvesse cumprido esse dever não era admitido aos exames do fim do ano, mesmo que fosse dos melhores no estudo. Essa disciplina severa produzia efeitos maravilhosos. Passavam-se anos sem que se ouvisse uma blasfêmia ou má conversa. Os alunos eram dóceis e respeitosos tanto na escola como em casa. E sucedia muitas vezes que em classes numerosíssimas todos eram aprovados no fim do ano para a classe superior. Meus condiscípulos da terceira, humanidades e retórica, foram sempre todos eles aprovados.
Para mim, o acontecimento mais importante foi a escolha de um confessor estável na pessoa do teólogo Malória, [68] cônego da colegiada de Chieri. Acolhia-me sempre com grande bondade toda vez que o procurava. Antes, animava-me a confessar e comungar com a maior freqüência. Era muito raro encontrar quem estimulasse à freqüência dos sacramentos. Não me lembra que algum dos meus mestres me tenha aconselhado isso. Quem ia confessar-se e comungar mais de uma vez ao mês era tido como dos mais virtuosos, e muitos confessores não o permitiam. Eu, porém, creio que devo ao meu confessor não ter sido arrastado pelos colegas a certas desordens, que os jovens inexperientes têm infelizmente que lamentar nos grandes colégios.
Nesses dois anos jamais esqueci os meus amigos de Murialdo. Conservei-me sempre em relação com eles e de quando em quando, na quinta-feira, fazia-lhes uma visita. Nas férias de outono, assim que sabiam da minha chegada, corriam de longe a encontrar-me e faziam sempre uma autêntica festa. Formou-se também entre eles a Sociedade da Alegria, à qual eram admitidos os que durante o ano se haviam distinguido pelo bom procedimento, e eliminados os que se haviam portado mal, mormente se houvessem blasfemado ou mantido más conversas.
[60] O padre Guilherme Garigliano (1819-1902), sacerdote em 1842, ficou no Colégio Eclesiástico até 1846. Foi mestre-escola em Aramegna em 1850. Em Poirino foi capelão da Companhia do Sufrágio, com sede na igreja da Santa Cruz. Um seu sobrinho-neto, dom João Batista Garigliano, foi bispo de Biella. Paulo Victor Braia (1820-1832).
[61] A igreja de Santo Antônio foi construída em 1763. O projeto é de F. Juvarra. O campanário é porém do século XIII. Nela fazia a catequese o padre Isaías Carminati (1798-1851), da Companhia de Jesus. Nascido em Bérgamo (Itália) fez o noviciado em Roma, em 1814. Em 1831 foi transferido para a província de Turim. Ensinava letras aos pós-noviços da casa de Santo Antônio, em Chieri, e foi também prefeito da catequese até 1836. Vice-reitor em Novara, trabalhou depois no Colégio Albertino de Gênova e em Turim. Em 1849, lecionava direito no Colégio Romano.
[62] "Os candidatos ao emprego de professor ou mestre nas escolas régias, deverão ser eclesiásticos. Na falta destes, poderão nomear-se clérigos com a obrigação de obter também do bispo da diocese a que serão destinados, a confirmação de poder vestir o hábito clerical […
[63] "Os estudantes sem religião, de costumes corrompidos, incorrigíveis, os culpados por resistência obstinada e escandalosa às ordens dos superiores, ou réus de delito, serão exemplarmente expulsos das escolas" (Regulamento para as escolas, título terceiro, capítulo primeiro, parágrafo segundo, artigo 46).
[64] "134. Todos os estudantes nos dias de aula assistirão à santa missa […
[65] "Começarão de manhã pela recitação das orações da manhã, e terminarão com o Agimus tibi gratias […
[66] "Nos domingos e outras festas marcadas no calendário, todos os estudantes indistintamente tomarão parte na congregação" […
[67] "37. Todos deverão aproximar-se uma vez por mês do sacramento da Penitência,e fazer constar que cumpriram este seu dever, e do preceito pascal, apresentando ao final de cada mês os bilhetes de confissão, e a seu tempo o do preceito pascal ao prefeito dos estudos, e em falta deste ao mestre, ou professor. Será qualidade do jovem morigerado aproximar-se com freqüência do sacramento da Eucaristia. 38. Os estudantes que sem ter sido impedidos por doença não fizessem constar, dentro de quinze dias do término do mês, o cumprimento do dito dever, serão excluídos da escola; serão também excluídos os que ousassem apresentar um certificado falso" (Regulamento para as escolas, título terceiro, capítulo primeiro, parágrafo II, artigos 37 e 38).
[68] O cônego José Malória (1802-1857) tinha a prebenda de Santa Maria de Suisson e de São Pedro in vinculis. No primeiro ano de teologia, o clérigo Bosco se confessava com ele cada quinze dias, em seguida, o fazia cada semana (cf. S. Casella, Giovanni Bosco studente, p. 65; ASC A 1030328 FDB B 559 A 5).
16. 8 HUMANIDADES E RETÓRICA - LUÍS COMOLLO
8 HUMANIDADES E RETÓRICA - LUÍS COMOLLO [69]
Terminados os cursos básicos, recebemos a visita do Magistrado da Reforma, [70] na pessoa do advogado professor padre José Gazzani, homem de elevados méritos. Foi muito bondoso para comigo, e eu fiquei-lhe agradecido, conservando dele agradável lembrança, ao ponto de estarmos depois sempre em estreito e amigável relacionamento. Esse honesto sacerdote vive ainda em Moltedo Superiore, [71] perto de Oneglia, sua terra natal, e entre suas muitas obras de caridade concedeu uma bolsa de estudo no nosso colégio de Alassio para um menino que desejasse seguir a carreira eclesiástica.
Os exames foram muito rigorosos. Mesmo assim meus colegas, 45, foram todos aprovados para a classe superior, que corresponde ao nosso 4º ginasial. Corri então grande perigo de ser suspenso, por haver deixado copiar o trabalho a um colega. Se fui aprovado, devo-o à proteção do meu venerando professor padre Giusiana, [72] dominicano, que conseguiu um novo tema para mim. Saí-me tão bem que fui aprovado com nota máxima.
Havia nesse tempo um louvável costume. Pelo menos um de cada curso era dispensado pela prefeitura da matrícula de 12 francos, a título de prêmio. Para conseguir tal dispensa era preciso tirar nota máxima nos exames e no procedimento. A sorte sempre me favoreceu e fui, em todos os cursos, dispensado do pagamento.
Perdi naquele ano um dos meus mais queridos colegas. O jovem Paulo Braia, querido e íntimo amigo, verdadeiro modelo de piedade, de resignação e viva fé, morria, após longa doença, no dia… ano…, [73] indo assim juntar-se a São Luís, do qual se mostrou em toda a sua vida fiel seguidor. Todo o colégio sentiu muito sua morte; os colegas participaram juntos no seu enterro. E por longo tempo, muitos costumavam, em dia de folga, fazer a sagrada Comunhão, rezar o ofício de Nossa Senhora ou o terço pela alma do amigo falecido. Deus, porém, dignou-se compensar essa perda com outro colega igualmente virtuoso, mas ainda mais notável por suas obras. Foi Luís Comollo, do qual daqui a pouco haverei de falar.
Terminei então o ano de humanidades, saindo-me muito bem, por sinal que meus professores, de modo especial o doutor Pedro Banaudi, [74] me aconselharam a solicitar o exame para passar à Filosofia; fui, de fato, aprovado. Todavia, como gostava do estudo das letras, pareceu-me bem continuar regularmente as classes e fazer o curso de retórica no ano 1833-1834. [75]
Foi justamente nesse ano que se iniciou meu relacionamento com Comollo. A vida desse precioso companheiro foi escrita à parte e todos a podem ler quando quiserem. [76] Vou assinalar aqui um fato que me proporcionou a oportunidade de conhecê-lo, entre os estudantes de humanidades.
Dizia-se então entre os estudantes de retórica que naquele ano devia vir um aluno santo, que se dizia ser sobrinho do pároco de Cinzano, sacerdote adiantado em anos, mas conhecido por sua santa vida. [77] Eu desejava conhecê-lo, mas ignorava-lhe o nome. Um episódio fez com que eu pudesse conhecê-lo. Já naquele tempo costumava-se brincar de carniça [78] na hora de entrar para a aula. Os mais relaxados e menos interessados pelo estudo são os que mais gostam do brinquedo e de ordinário os que mais se destacam.
Já havia alguns dias que se observava um modesto jovem de seus 15 anos, o qual, assim que chegava ao colégio, sentava-se no seu lugar e sem se preocupar com a gritaria dos demais punha-se a ler ou estudar. Um colega insolente aproximou-se dele, pegou-o por um braço, a fim de obrigá-lo a tomar parte do brinquedo.
– Não sei, respondia o outro, muito humilde e mortificado. Não sei, nunca brinquei assim.
– Quero que venhas do mesmo jeito; se não, vou fazer-te vir a poder de pontapés e bofetões.
– Podes bater como quiseres, mas eu não sei, não posso, não quero.
O colega ruim e mal-educado, puxou-o por um braço, empurrou-o e deu-lhe duas bofetadas, que ecoaram por toda a sala. Diante disso senti ferver o sangue nas veias e esperava que o ofendido se vingasse à altura; tanto mais que era muito superior ao outro em força e idade. Qual não foi, porém, meu espanto, quando o bom jovem com o rosto vermelho e quase arroxeado, lançando um olhar de compaixão ao mau colega, disse apenas:
– Se isto basta para satisfazer-te, vai em paz, eu já te perdoei.
Esse ato heróico despertou em mim o desejo de saber-lhe o nome, que era justamente Luís Comollo, sobrinho do pároco de Cinzano, de quem se faziam tantos elogios. A partir de então tive-o sempre como íntimo amigo, e posso dizer que dele aprendi a viver como cristão. Depositei nele plena confiança, e ele em mim; precisávamos um do outro. Eu de ajuda espiritual, ele de ajuda corporal. Porque, extremamente tímido, não ousava sequer tentar a defesa contra os insultos dos valentões, ao passo que eu, dada a minha coragem e força física, era temido por todos os companheiros, mesmo pelos mais velhos e de maior estatura. Isso tornou-se evidente um dia com alguns que queriam desprezar e bater em Comollo e noutro rapaz chamado Antônio Candelo, modelo de bonomia. Quis intervir em favor deles, mas não me davam atenção. Vendo então aqueles colegas inofensivos serem maltratados, disse em voz alta:
– Ai de quem maltratar ainda um deles.
Bom número dos mais altos e desavergonhados puseram-se em atitude de defesa e ameaça contra mim, enquanto duas sonoras bofetadas caíam no rosto de Comollo. Nesse momento perdi as estribeiras e recorrendo não à razão mas à minha força brutal, não tendo à mão nem uma cadeira nem um bastão, segurei com as mãos um colega pelos ombros e servi-me dele como bastão para bater nos adversários. Quatro deles rolaram por terra, os outros fugiram gritando e pedindo piedade. Mas… ai! naquele momento o professor chegou à classe e ao ver braços e pernas pelo ar em meio a uma barulheira do outro mundo, pôs-se a gritar e a distribuir tapas a torto e a direito. A tempestade estava para cair sobre mim. Mas, informado da causa de toda aquela desordem, quis que se repetisse a cena, ou melhor, minha demonstração de força. Todos riram, professor e alunos, e ante a expressão de maravilha de todos, não se pensou mais no castigo que eu havia merecido.
Bem outras lições dava-me Comollo. Disse-me:
– Meu amigo, tua força me espanta; lembra-te, porém, que Deus não a deu para massacrar os colegas. Ele quer que nos amemos, que perdoemos, que façamos o bem a quem nos faz o mal.
Admirado da caridade do colega, pus-me inteiramente em suas mãos, deixando-me guiar para onde e como lhe aprouvesse. De acordo com o amigo Garigliano, íamos juntos confessar, comungar, fazer a meditação, a leitura espiritual, a visita ao Santíssimo Sacramento, ajudar à santa missa. Sabia convidar-nos com tamanha bondade, doçura e delicadeza que era impossível escusar-nos.
Lembro-me que um dia, conversando com um colega, passei diante de uma igreja sem descobrir a cabeça. Disse-me logo, com muito bons modos:
– João, andas tão entretido em conversar com os homens, que até esqueces a casa do Senhor.
[69] Luís Comollo (1817-1839).
[70] Magistrado da Reforma: corpo de oficiais públicos encarregado de superintender aos estudos (rei litterariae moderatores); era o que hoje chamamos Conselho Superior da Instrução Pública.
[71] Moltedo Superiore é hoje um distrito de Impéria, município este constituído em 1923 pela união de Oneglia e de Porto Maurício, na riviera lígure ocidental a 114 quilômetros de Gênova.
[72] O padre Jacinto dos Condes Giussiana (1774-1844), nascido em Cúneo, entrou em jovem idade no convento de Chieri. Apenas ordenado sacerdote, por causa da supressão da Ordem Dominicana, foi para Parma e Colorno. Voltando a Chieri, foi professor de gramática superior por bem vinte e seis anos. Sendo encarregado da igreja de São Domingos desde 1817, obteve que em 1821 fosse aí restabelecida a Ordem de São Domingos (cf. G. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 70).
[73] No dia 10 de julho de 1832.
[74] O padre Pedro Banaudi (1802-1885), nascido em Briga Marittima, então Itália, hoje La Brigue, França, em 1824 deixou a diocese de Nice e, por razões de emprego, incardinou-se na de Turim. Desde 1833 substituiu o teólogo João Bosco no ensino de retórica em Chieri. Em 1873 estava em Turim, onde veio a falecer.
[75] Em 1834-1835.
[76] A vida de Comollo está traduzida em português: São João Bosco, Vida do clérigo Luiz Comollo. Niterói, Escolas Profissionais Salesianas, 1940 (Leituras Católicas, ano 50, fasc. 7, n. 682).
[77] O padre José Comollo (1768-1843), nascido e morto em Cinzano.
[78] Carniça (mão-na-mula ou pula-sela): os meninos saltam um depois do outro sobre as costas do colega que lhe fica à frente, inclinado à guisa de cavalo.
17. 9 FAZENDO CAFÉ E LICORES - DIA ONOMÁSTICO - UMA DESGRAÇA
9 FAZENDO CAFÉ E LICORES - DIA ONOMÁSTICO - UMA DESGRAÇA
Depois desse olhar sobre a vida colegial, vou contar alguns fatos particulares, que podem servir de amena distração.
No ano de humanidades mudei de pensão para estar mais perto do meu professor, padre Banaudi, e também para atender a um amigo de família chamado Gioanni Pianta, [79] que naquele ano ia abrir um café na cidade de Chieri. Essa pensão era por certo muito perigosa, [80] mas vivendo com bons cristãos e continuando o relacionamento com companheiros exemplares, pude continuar sem prejuízos morais. Como os deveres escolares me deixassem muito tempo livre, costumava empregá-lo parte na leitura dos clássicos italianos ou latinos, parte confeccionando licores e doces. Na metade daquele ano estava habilitado a preparar café, chocolate; dominava segredos e receitas para fazer toda espécie de doces, licores, sorvetes e refrescos. Meu patrão começou dando-me hospedagem grátis, e considerando que eu poderia ser útil ao seu negócio, fez-me vantajosas propostas, contanto que deixasse as outras ocupações para dedicar-me inteiramente ao ofício. Eu, porém, fazia esses trabalhos somente por divertimento e gosto, e minha intenção era continuar os estudos.
O professor Banaudi era um verdadeiro modelo de professor. Sem jamais infligir castigo, fizera-se respeitar e amar por todos os seus alunos. Ele os amava a todos quais filhos, e eles o amavam qual carinhoso pai.
Como demonstração de apreço para com ele, decidimos dar-lhe um presente no seu dia onomástico. [81] Para isso combinamos preparar composições em verso e em prosa, e arranjar alguma coisa que julgássemos ser de seu agrado.
A festa saiu esplêndida. O professor ficou contentíssimo, e para mostrar sua satisfação levou-nos a almoçar no campo. O dia foi muito agradável. Entre professor e alunos havia um só coração, e todos procuravam a maneira de exprimir a própria alegria. Na volta, antes de chegar à cidade de Chieri, o professor encontrou um forasteiro, ao qual teve de fazer companhia, deixando-nos sós por breve trecho de estrada. Foi quando chegaram alguns colegas de classes superiores, que nos convidaram a tomar banho num lugar denominado La Fontana Rossa, a cerca de dois quilômetros e meio de Chieri. [82] Eu e mais alguns colegas nos opusemos, mas em vão. Alguns vieram comigo para casa, outros foram nadar. Triste decisão. Poucas horas depois de nossa chegada em casa, veio correndo um companheiro, depois outro, assustados e ofegantes, para dizer-nos:
– Oh! Se soubésseis, se soubésseis! Filipe N., [83] que tanto insistiu por que fôssemos nadar, afogou-se.
– Como? – perguntamos todos – se tinha fama de bom nadador!
– Que quereis? – continuou o outro. – Para animar-nos a lançar-nos na água, confiando na própria habilidade e não conhecendo os redemoinhos da perigosa Fontana Rossa, atirou-se por primeiro. Esperávamos que voltasse à tona, mas ficamos desapontados. Pusemo-nos a gritar, veio gente, empregaram-se todos os recursos e foi com risco de outros que, hora e meia depois, foi possível retirar o cadáver.
A desgraça causou em todos profunda tristeza. Nem naquele ano, nem no ano seguinte (1834) [84] ouviu-se dizer que alguém tenha sequer manifestado a idéia de ir nadar. Algum tempo faz, encontrei-me com alguns desses antigos amigos e recordamos com verdadeira dor a desgraça que aconteceu com o infortunado colega no redemoinho da Fontana Rossa.
[79] João Pianta, irmão de Lúcia Matta, permaneceu em Chieri apenas um ano, transferindo-se depois com a família para outro lugar (cf. S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 84).
[80] A hospedagem no café Pianta era perigosa por causa da clientela. A 10 de maio de 1888 os padres salesianos Bonetti, Francesia e Berto encontraram-se em Chieri com João Pianta, o qual declarou-lhes quanto segue e que eles imediatamente anotaram: "Era impossível encontrar outro jovem melhor que João Bosco. Todas as manhãs, bem cedo, ia à igreja de Santo Antônio para ajudar em várias missas. Era de uma caridade admirável para com minha mãe, que, velha e cheia de achaques, vivia conosco. Muitas vezes passava a noite em claro, estudando. Encontrava o pela manhã com a luz acesa, lendo e escrevendo". Pianta nada disse, porém, do lindo aposento onde João passava as noites. O padre Lemoyne (MB I, p. 289) no-lo descreve assim: "Um desvão estreito em cima de pequeno forno, construído para cozinhar doces, e ao qual se subia por uma escadinha, era seu dormitório; por pouco que se estirasse no pequeno leito, os pés assomavam não só fora do incômodo colchão, mas do próprio desvão". A 22 de abril de 1934 colocou-se uma lápide comemorativa dos sacrifícios do heróico jovem. Nela é lembrado também o outro inquilino, Blanchar, vendedor de frutas, que às vezes lhe saciava a fome.
[81] O padre Pedro Banaudi nascera no dia 14 de maio de 1802 (cf. Archives Historiques du Diocèse de Nice, Stato nominativo di tutti i signori ecclesiastici della Diocesi di Nizza). Dia 19 de maio celebrava-se a memória de São Pedro Celestino.
[82] Próximo à antiga igreja construída sobre o Tépice, a meio quilômetro de Chieri, nascia a Fontana Rossa, com a capacidade de cerca de 300 litros por hora.
[83] Provavelmente Filipe Camandona, morto dia 19 de maio de 1834, perto da festa da Ascensão (cf. S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 117).
[84] Em 1835.
10 O JUDEU JONAS [85]
No ano de humanidades, morando ainda no café do amigo Gioanni Pianta, travei amizade com um jovem judeu chamado Jonas. Tinha lá seus 18 anos. De muito bonito aspecto, cantava com voz de rara beleza. Jogava bilhar muito bem, e como nos conhecíamos de encontros na loja do livreiro Elias, [86] apenas chegava ao bar perguntava logo por mim. Tinha-lhe grande afeto e ele uma amizade louca por mim. Mal encontrava um momento livre, vinha passá-lo em meu quarto; ficávamos a cantar, a tocar piano, a ler, ouvindo com gosto mil historietas que lhe ia contando. Sucedeu-lhe um dia uma encrenca, seguida de briga, que podia acarretar-lhe tristes conseqüências. Veio aconselhar-se comigo.
– Se tu, caro Jonas, fosses cristão – disse-lhe –, levar-te-ia logo a confessar; mas isso não te é possível.
– Mas também nós, se quisermos, vamos confessar-nos.
– Sim, mas vosso confessor não está obrigado ao segredo, não tem poder de perdoar os pecados nem pode administrar nenhum sacramento.
– Se me levas, irei confessar-me com um padre.
– Podia levar-te, mas é preciso preparar-se bem.
– Como?
– Deves saber que a Confissão perdoa os pecados cometidos depois do Batismo; por isso, se quiseres receber algum sacramento, é preciso que antes de qualquer outra coisa recebas o Batismo.
– Que devo fazer para receber o Batismo?
– Instruir-te na religião cristã, acreditar em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Isto feito, podes receber o Batismo.
– Que vantagens me daria o Batismo?
O Batismo cancela o pecado original e também os pecados atuais, abre caminho à recepção de outros sacramentos, faz-te, numa palavra, filho de Deus e herdeiro do céu.
– Nós, judeus, não podemos salvar-nos?
– Não, meu caro Jonas; depois da vinda de Jesus Cristo, os judeus não se podem salvar sem crer nele. [87]
– Se minha mãe vier a saber que eu quero tornar-me cristão, pobre de mim!
– Não tenhas medo; Deus é senhor dos corações, e se ele te chama para seres cristão, fará com que tua mãe se conforme, ou haverá de prover de outra maneira o bem de tua alma.
– Mas tu que gostas tanto de mim, que farias se estivesses no meu lugar?
– Começaria por instruir-me na religião cristã. Entrementes Deus indicaria o que se deveria fazer no futuro. Para isso toma o pequeno catecismo, e começa a estudá-lo. Reza para que Deus te ilumine e te faça conhecer a verdade.
A partir desse dia começou a afeiçoar-se ao estudo da fé cristã. Vinha ao café e, assim que terminava uma partida de bilhar, procurava logo por mim a fim de conversar sobre religião e catecismo.
No espaço de poucos meses aprendeu a fazer o sinal-da-cruz, o Pai-nosso, Ave-Maria, o Credo, e as verdades principais da fé. Ele estava felicíssimo, e a cada dia melhorava na maneira de proceder e conversar.
Ainda menino perdera o pai. [88] A mãe, chamada Raquel, já tinha farejado alguma coisa, mas nada sabia de concreto. A coisa foi descoberta assim. Um dia, ao fazer-lhe a cama, encontrou o catecismo, que o filho inadvertidamente havia esquecido entre os colchões. Pôs-se então a gritar pela casa afora, levou o catecismo ao rabino, e suspeitando do que realmente estava acontecendo, correu desabaladamente ao encontro de Bosco, de quem havia ouvido muitas vezes falar ao próprio filho.
Imaginai o tipo da fealdade e tereis uma idéia da mãe de Jonas. Era cega de um olho, surda de ambos os ouvidos; nariz avantajado; quase sem dentes, lábios exorbitantes, boca torta, queixo longo e agudo, voz semelhante a um grunhido. Os judeus costumavam chamar-lhe Maga Lili, nome com que indicam a coisa mais feia da sua nação. Seu aparecimento me assustou, e, sem dar tempo para que me recompusesse, pôs-se a falar assim:
– Saiba o senhor que está completamente errado; o senhor arruinou o meu Jonas; o desonrou diante de todos; eu não sei o que será dele. Receio que acaba fazendo-se cristão; e o senhor será o culpado.
Compreendi então quem era e de que falava. Com toda a calma expliquei que ela devia até mostrar-se contente e agradecer a quem fazia o bem ao seu filho.
– Que bem é esse? Será um bem fazer renegar a própria religião?
– Acalme-se, boa senhora – disse-lhe –, e ouça. Eu não procurei seu filho Jonas; encontramo-nos na loja do livreiro Elias. Tornamo-nos amigos sem saber como. Ele me estima e eu também o estimo muito, e como verdadeiro amigo desejo que salve a própria alma e possa conhecer a religião fora da qual ninguém poderá salvar-se. Note bem que eu dei um livro a seu filho, dizendo-lhe apenas que se instruísse na religião e que caso se fizesse cristão não havia de abandonar a religião hebraica, mas a aperfeiçoaria.
– Se por desgraça ele se fizer cristão, deverá abandonar os nossos profetas, porque os cristãos não crêem em Abraão, Isaque e Jacó, nem em Moisés, nem nos profetas.
– Ao contrário, nós cremos em todos os santos patriarcas e em todos os profetas da Bíblia. Seus escritos, ditos e profecias formam os fundamentos da fé cristã.
– Se por acaso aqui estivesse o nosso rabino, bem saberia como responder. Eu não sei nem o Mishná nem o Gemara (as duas partes do Talmude); mas que será do meu pobre Jonas?
Dito isto, foi-se embora. Seria longo contar aqui as muitas ofensas que me dirigiram a mãe, o rabino, os parentes de Jonas. Não houve ameaça, violência que não se empregasse contra o corajoso jovem. Ele tudo suportou e continuou a instruir-se na fé. Já não se sentindo seguro em família, viu-se obrigado a abandonar sua casa e a viver quase de esmola. Muitos, porém, o ajudaram. [89] E para que tudo transcorresse com a devida prudência, recomendei meu amigo a um douto sacerdote, que usou para com ele de atenções paternas. Quando bem instruído na religião e impaciente por fazer-se cristão, celebrou-se uma grande festa, que foi de edificação para toda a cidade e de estímulo para outros judeus, alguns dos quais abraçaram mais tarde o cristianismo.
Foram padrinho e madrinha os cônjuges Carlos e Otávia Bertinetti. [90] Providenciaram tudo o que era preciso para o neófito que, tornando-se cristão, pôde ganhar honestamente o pão com seu trabalho. Passou a chamar-se Luís.[91]
[85] Talvez se trate de Jacó Levi (1816 - ?), tintureiro e tecelão. Recebido o Batismo, assumiu o sobrenome Bólmida, do padrinho, e foi habitar na casa do casal Bertinetti. Casou-se em 1840 e em segundas núpcias em 1860. Transferiu-se para Turim depois de 1865 (cf. S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 110-114). Não sabemos se se trata de Luís Bólmida, tintureiro de Chieri, que faleceu em Turim dia 13 de julho de 1870.
[86] Elias Foa, negociante de tecidos no varejo.
[87] Sem muitas distinções, Dom Bosco reproduz a conversa que, jovem estudante de 19 anos, manteve com o colega Jonas. Escrevendo para seus salesianos, estava convencido de que saberiam compreender-lhe o pensamento, durante toda a sua vida sempre fiel à mais pura doutrina católica. Nos seus vários documentos, o Concílio esclarece o pensamento da Igreja. No n. 42 da Lumen Gentium, assim se manifesta: "Os que ainda não receberam o Evangelho se ordenam por diversos modos ao Povo de Deus. Em primeiro lugar aquele povo a quem foram dados os testamentos e as promessas e do qual nasceu Cristo segundo a carne (cf. Rm 9,4-5). Por causa dos patriarcas, é um povo caríssimo segundo a eleição, pois os dons e a vocação de Deus são irreversíveis (cf. Rm 11,28-29)". O Decreto Ad Gentes (n. 7) é explícito: "-Deus quer que todos os homens sejam salvos e venham ao conhecimento da verdade. Porque um é Deus, um também o mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus, que se entregou para redenção de todos (1Tm 2,4-5). -E em nenhum outro há salvação (At 4-12). É necessário que pela pregação da Igreja todos o reconheçam e a ele se convertam e pelo Batismo sejam incorporados nele e na Igreja, seu Corpo. Cristo mesmo por sua vez -inculcando com palavras expressas a necessidade da fé e do Batismo, ao mesmo tempo confirmou a necessidade da Igreja, na qual os homens entram pelo Batismo como por uma porta. Por isso não podem salvar-se aqueles que, sabendo que a Igreja Católica foi fundada por Deus por meio de Jesus Cristo como instituição necessária, apesar disto não quiseram nela entrar ou nela perseverar (LG 14)".
[88] O pai de Jacó Levi se chamava Lázaro e sua mãe Bella Pavia (cf. S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 108 e 113).
[89] A Irmandade do Espírito Santo, fundada em 1576 em Chieri, tinha especial cuidado no preparar ao Batismo e assistir aqueles poucos catecúmenos que do hebraísmo passavam à religião católica (cf. S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 113).
[90] Carlos Bertinetti faleceu em Chieri, em 1868, com a idade de 75 anos. Otávia Maria Debernardi Bertinetti o seguiu em 1869, aos 72 anos. Do registro paroquial de Santa Maria da Scala, onde consta o Batismo, resulta, porém, que foram padrinhos o senhor Jacinto Bólmida e a senhora Otávia Maria Bertinetti (cf. S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 113-114). O neófito tomou os nomes de Luís Jacinto Lourenço Otávio Maria Bólmida (cf. S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 113-114).
[91] Segundo uma tradição, o convertido viveu como bom cristão e conservou sempre amizade e gratidão pelo amigo. Até 1880 visitava Dom Bosco no oratório. Talvez a força dos argumentos não tenha por si só surtido efeito; não obstante, as virtudes de modo admirável praticadas por seu querido conterrâneo acabaram por convencê-lo. O leitor, porém, veja a nota 85, sobre Luís Bólmida. O casal Bertinetti fez Dom Bosco seu herdeiro universal, surgindo então a obra salesiana de Chieri.
19. 11 JOGOS - PRESTÍGIOS - MAGIA - DANDO EXPLICAÇÕES
11 JOGOS - PRESTÍGIOS - MAGIA - DANDO EXPLICAÇÕES
Junto com meus estudos e entretenimentos diversos como canto, piano, declamação, teatro, aos quais me entregava com grande entusiasmo, havia aprendido também diversos outros jogos. Baralho, bolinhas, malhas, perna de pau, saltos e corrida eram divertimentos muito gostosos nos quais, se não era especialista, não era por certo medíocre. Muitos deles aprendera-os em Murialdo, outros em Chieri; e se nos prados de Murialdo era simples aprendiz, naquele ano havia-me tornado razoável mestre. Isso causava muita admiração, porque naquele tempo tais jogos eram pouco conhecidos e pareciam coisas do outro mundo. Que dizer então dos prestígios? Costumava dar muitas vezes espetáculos públicos e privados. Como muito me ajudasse a memória, sabia de cor grande parte dos clássicos, sobretudo poetas. Dante, Petrarca, Tasso, Parini, Monti e outros muitos eram-me tão familiares que deles me podia servir a meu bel-prazer, como coisa minha. Por esse motivo tinha grande facilidade de improvisar sobre qualquer argumento. Nesses entretenimentos, nesses espetáculos, algumas vezes cantava, outras tocava ou compunha versos que eram julgados obras-primas, mas que na realidade não eram senão trechos de autores adaptados ao tema proposto. Por esse motivo nunca dei minhas composições a outros. Alguma que cheguei a escrever, procurei lançá-la ao fogo.[92]
A maravilha subia de ponto nos jogos de prestidigitação. Ver sair de um pequeno copo bolas e mais bolas, todas elas maiores do que ele, tirar de um pequeno bolso ovos e mais ovos eram coisas de fazer cair das nuvens. Quando então viam-me extrair grandes bolas da ponta do nariz dos presentes, adivinhar o dinheiro dos bolsos alheios; quando com o simples toque dos dedos moedas de qualquer metal eram reduzidas a pó, ou fazia-se todo o auditório aparecer de aspecto horrível e até sem cabeças, então começaram alguns a pensar se eu não seria um bruxo, já que não podia fazer tais coisas sem a intervenção de algum diabo.
Contribuiu para aumentar essa fama o dono de minha casa, Tomás Cumino.[93] Era ele um fervoroso cristão, que gostava muito de brincadeiras, e eu sabia aproveitar-me do seu caráter e, diria, ingenuidade, para pregar-lhe toda a espécie de peças. Um dia com grande cuidado havia ele preparado um frango coberto com geléia para presentear alguns pensionistas no dia do onomástico deles. Levou o prato à mesa, mas ao descobri-lo, pulou para fora um galo a esvoaçar e cacarejar em todos os tons. De outra feita preparou uma panela de macarrão e depois de havê-lo feito cozer por muito tempo, ao despejá-lo no prato viu que a massa estava inteiramente crua. Várias vezes enchia a garrafa de vinho e ao deitá-lo no copo encontrava água pura; se depois decidia beber água, via o copo cheio de vinho. Doces mudados em fatias de pão, dinheiro da bolsa transformado em inúteis e enferrujados pedacinhos de lata, o chapéu convertido em gorro, nozes e avelãs mudadas em saquinhos de minúsculos seixos eram coisas assaz freqüentes.
O bom Tomás já não sabia o que dizer: “Os homens – dizia com seus botões – não podem fazer essas coisas. Deus não perde tempo em coisas inúteis; logo é o demônio que faz tudo isso”. Não se atrevendo a falar com os de casa, aconselhou-se com sacerdote vizinho, o padre Bertinetti.[94] E como este suspeitasse também de magia branca em tudo aquilo, resolveu levar o caso ao delegado das escolas, que naquele tempo era um respeitável eclesiástico, o cônego Búrzio,[95] arcipreste e cura da catedral.
O cônego era uma pessoa muito instruída, piedosa e prudente, e sem falar com ninguém, chamou-me “para as devidas explicações”. Cheguei à sua casa no instante em que rezava o breviário e, olhando-me com um sorriso, fez sinal para que aguardasse um pouco. Por fim disse-me que o seguisse a um escritório, e lá, com palavras corteses mas rosto severo, começou a interrogar-me assim:
– Meu caro, estou muito contente com teus estudos e procedimentos até agora. Mas acontece que andam contando por aí muitas coisas a teu respeito… Dizem que conheces os pensamentos dos outros, advinhas o dinheiro que têm no bolso, fazes ver branco o que é preto, sabes das coisas antes que aconteçam, e por aí afora. Isso dá que falar de ti, e houve quem suspeitasse que te serves da magia, podendo haver nesses fatos uma intervenção do diabo. Dize-me, pois: quem te ensinou esta ciência? Onde a aprendeste? Dize-me tudo de maneira confidencial. Garanto que não me servirei disto senão para fazer-te o bem.
Sem perder a compostura, pedi-lhe 5 minutos de tempo para responder, e convidei-o a dizer-me a hora exata. Pôs a mão no bolso e não encontrou o relógio.
– Se não tem relógio – acrescentei –, dê-me uma moeda de 5 soldos.
Rebuscou os bolsos, mas não encontrou o porta-moedas.
– Malandro – começou, encolerizado –, ou tu serves ao demônio ou o demônio é que te serve a ti. Roubaste-me porta-moedas e relógio. Já não posso calar, sou obrigado a denunciar-te. Não sei como consigo ter-me sem dar-te uma sonora tunda.
Vendo-me, todavia, calmo e sorridente, pareceu acalmar-se um pouco e prosseguiu:
– Vamos levar a coisa com calma: explica-me estes mistérios. Como foi possível que porta-moedas e relógio saíssem dos meus bolsos sem que eu percebesse? Onde diabo foram parar esses objetos?
– Senhor arcipreste – comecei a dizer respeitosamente –, explico tudo em poucas palavras. Trata-se de habilidade manual, intuição, ou coisa preparada.
– Que intuição pode haver no caso do meu relógio e do meu porta-moedas?
– Explico tudo em duas palavras. Quando cheguei à sua casa, o senhor estava dando uma esmola a um pobre, e depois deixou o porta-moedas sobre um genuflexório. Indo depois deste para outro quarto, deixou o relógio sobre esta mesinha. Eu os escondi e o senhor pensava que trazia esses objetos consigo, ao passo que estavam debaixo deste abajur.
Assim dizendo, levantei o abajur, debaixo do qual estavam os objetos que segundo ele o demônio havia levado para outro lugar.
Riu o bom cônego a valer; fez-me dar algumas demonstrações de destreza, e quando viu como fazer aparecer e desaparecer as coisas ficou muito satisfeito, deu-me um pequeno presente e concluiu:
– Vai dizer a todos os teus amigos que ignorantia est magistra admirationis.[96]
[92] Esqueceu todavia de queimar algumas de suas composições. Temos uma sua caderneta intitulada Códice contenente sonetti ed altre poesie varie. Começou essa coleção a 27 de maio de 1835. Com várias coisas de autores e colegas, há também algumas suas, entre elas um soneto intitulado "Constância de Pio VII oprimido por Napoleão". Na capa, um hexâmetro: "Quidquid agunt homines, intentio iudicat omnes" ("O verdadeiro juízo sobre ações humanas depende da intenção de quem as faz"). Mais acima lê-se: "Entregue, morrendo, ao padre Lemoyne". Letra de Lemoyne (cf. ASC A 226 caderno 2 FDB 67 E 11 a 69 A 2).
[93] Durante o curso de 1834-1835, o vigário de Castelnuovo havia colocado João como pensionista, por 8 liras mensais, na casa dos Cumino, que viviam a pouca distância da igreja de Santo Antônio. O dono, alfaiate, colocou-o para dormir numa sua cocheira, com a obrigação de trabalhar um pouco na vinha e cuidar de um jumento. O padre Cafasso, que também esteve ali por quatro anos, alcançou para João melhores condições alguns meses depois. S. Casella, Giovanni Bosco studente, p. 121-123 narra as vicissitudes dessa casa que depois pertenceu a Luís Bertinetti.
[94] O padre Luís Bertinetti (1791-1845) era irmão de Carlos.
[95] O cônego Máximo Búrzio (1777-1847), cônego da colegiada de Chieri desde 1818; desde 1823, cantor, e de 1833 em diante, arcipreste daquela colegiada.
[96] "a ignorância é a mestra da admiração".
20. 12 CORRIDA - SALTO - VARINHA MÁGICA - PONTA DA ÁRVORE
12 CORRIDA - SALTO - VARINHA MÁGICA - PONTA DA ÁRVORE
Uma vez demonstrado que nos meus divertimentos não havia magia branca, pus-me de novo a reunir os colegas e a entretê-los como antes. Aconteceu nessa ocasião que alguns punham nas nuvens um saltimbanco que havia dado um espetáculo público com uma corrida a pé, atravessando a cidade de Chieri de uma extremidade a outra em dois minutos e meio, quase o tempo empregado por um trem a grande velocidade. Sem medir as conseqüências de minhas palavras, disse que gostaria de competir com o saltimbanco. Um colega imprudente foi logo contar ao saltimbanco, e assim vi-me comprometido num desafio: um estudante desafia um corredor profissional!
O lugar escolhido foi a avenida de Porta Torinese. A aposta era de 20 francos. Como eu não dispusesse desse dinheiro, vários amigos pertencentes à Sociedade da Alegria vieram em minha ajuda. Juntou-se uma multidão de gente para assistir. Começa a corrida e o rival ganhou alguns passos à frente; porém, recuperando o terreno, deixei-o tão atrás de mim que ele, no meio da corrida, parou e deu a competição por perdida.
– Desafio-te a saltar – disse-me, mas quero apostar 40 francos, e até mais, se quiseres.
Aceitamos o desafio, e cabendo a ele a escolha do lugar, determinou que se devia saltar um canal até o parapeito de uma pequena ponte. Ele saltou por primeiro e colocou o pé bem perto do murinho, de maneira que não era possível saltar mais do que isso. Desse jeito eu podia perder, não, porém, ganhar. Tive uma idéia que me ajudou. Dei o mesmo salto, mas apoiei as mãos no parapeito da ponte e fui cair além do murinho e do canal. Aplausos gerais.
– Quero fazer ainda um desafio. Escolhe qualquer jogo de destreza.
Aceitei e escolhi o da varinha mágica,[97] com a aposta de 80 francos. Tomei, pois, uma varinha, coloquei um chapéu numa ponta e apoiei a outra na palma de uma das mãos. Depois, sem tocá-la com a outra, fi-la saltar para a ponta do dedo mínimo, do anular, do médio, do indicador, do polegar; depois sobre o pulso, o cotovelo, os ombros, o queixo, os lábios, o nariz, a fronte; em seguida, refazendo o mesmo caminho, ela voltou à palma da mão.
– Não tenho medo de perder – disse o rival –, esse é o meu jogo preferido.
Tomou a mesma varinha e com maravilhosa habilidade fê-la caminhar até os lábios, onde esbarrou no nariz um tanto comprido e perdeu o equilíbrio, sendo então forçado a pegá-la com a mão para não deixá-la cair ao chão.
Vendo arrasado seu pecúlio, o pobre homem exclamou quase furioso:
– Prefiro qualquer outra humilhação à de ter sido derrotado por um estudante. Tenho ainda 100 francos e aposto esse dinheiro, ganha-o quem conseguir colocar os pés mais perto da ponta dessa árvore.
Referia-se a um olmeiro, na avenida. Aceitamos também desta vez: de certo modo até gostaríamos que ele ganhasse, porque tínhamos pena dele e não queríamos arruiná-lo.
Trepou por primeiro no olmo e colocou os pés a tal altura que, por pouco mais que subisse, a árvore teria vergado, derrubando-o por terra. Todos concordavam em que não era possível subir mais alto. Fiz a minha tentativa. Subi até onde era possível, sem curvar a planta; depois, segurando-me à árvore com ambas as mãos, ergui o corpo e coloquei os pés cerca de 1 metro mais alto que o meu contendor.
Quem poderia descrever os aplausos da multidão, a alegria dos colegas, a fúria do saltimbanco, e o meu orgulho por ter saído vencedor não dos meus condiscípulos, mas de um campeão de charlatões? Em meio, porém, à sua grande desolação, quisemos proporcionar-lhe um conforto.Compadecidos da tristeza do pobrezinho, dissemos-lhe que lhe restituíamos o dinheiro caso aceitasse uma condição, isto é, que nos pagasse um almoço no albergue do Muretto.[98] Aceitou agradecido. Fomos 22, tantos eram os meus partidários. O almoço custou 25 francos, de modo que pôde recuperar 215 francos.
Foi na verdade uma quinta-feira muito alegre. Eu me cobri de glória por haver superado em habilidade um charlatão. Contentíssimos ficaram os colegas, que se divertiram a mais não poder com risos e um bom almoço. Contente também deve ter ficado o saltimbanco, que conseguiu reaver quase todo o seu dinheiro e saboreou um bom almoço. Ao separar-se agradeceu a todos, dizendo:
– Restituindo-me este dinheiro evitais minha ruína. Agradeço-vos de todo o coração. Conservarei de vós boas recordações, mas não farei mais apostas com estudantes.
[97] A grande destreza alcançada por Dom Bosco em seus verdes anos no manejo da varinha mágica pode inferir-se de que aos 70 anos, em 1885, já muito acabado de saúde, repetiu a proeza de um modo impecável com um bastãozinho (cf. MB I, p. 315).
[98] O albergue não era chamado Muretto, mas Muletto, e estava situado no fundo da praça São Bernardino, ao longo da via Maestra, a poucos metros do café Pianta. Era propriedade de Marcos Balbiano, de Andezeno (cf. S. Casella, Giovanni Bosco studente, p. 106).
13 ESTUDO DOS CLÁSSICOS
Vendo-me passar assim o tempo em tantas distrações, direis que devia forçosamente descurar os estudos. Não nego que poderia ter estudado mais: deveis, todavia, saber que me bastava prestar atenção na aula para aprender quanto era necessário. Tanto mais que naquele tempo eu não fazia distinção entre ler e estudar, e com facilidade podia repetir a matéria de um livro que eu lesse ou ouvisse ler a outro. Mais, acostumado por minha mãe a dormir muito pouco, podia empregar dois terços da noite em ler à vontade e dedicar quase todo o dia a ocupações de livre escolha, como repasses, aulas particulares. Embora o fizesse por caridade ou amizade, alguns, todavia, me pagavam o trabalho.
Havia então em Chieri um livreiro judeu, chamado Elias, com o qual entrei em contato, associando-me à leitura dos clássicos italianos. Um soldo cada volume, que devolvia após haver lido. Lia cada dia um volume da Biblioteca popular.[99] Empreguei o ano do 4º ginasial na leitura dos autores italianos. No ano de retórica pus-me a estudar os clássicos latinos,[100] e comecei a ler Cornélio Nepos, Cícero, Salústio, Quinto Cúrcio, Tito Lívio, Cornélio Tácito, Ovídio,Virgílio, Horácio Flacco e outros. Lia esses livros por divertimento e saboreava-os como se os houvesse compreendido inteiramente. Somente mais tarde percebi que não era verdade, porque, ordenado sacerdote, pondo-me a explicar a outros aquelas celebridades clássicas, percebi que só com grande estudo e muita preparação conseguia penetrar-lhes o verdadeiro sentido e beleza.
Mas os deveres escolares, as aulas particulares, muita leitura, ocupavam o dia e parte notável da noite. Várias vezes sucedeu chegar a hora de levantar e eu tinha ainda em mãos as décadas de Tito Lívio, do qual havia iniciado a leitura na noite anterior. Isso arruinou-me de tal modo a saúde, que por vários anos minha vida parecia à beira da tumba. Por isso é que aconselharei sempre a fazer o que se pode e não mais. A noite é feita para descansar e, exceto em caso de necessidade, ninguém após a ceia deve aplicar-se aos estudos. Um homem robusto resistirá até certo ponto, mas acabará por prejudicar em maior ou menor grau sua saúde.[101], p. 207).]
[99] A Biblioteca popular moral e religiosa, iniciada em 1825, por José Pomba.
[100] No que respeita ao domínio do latim por parte do santo, lembramos este episódio. Em 1882, o cardeal Nina, secretário de Estado, elogiou-o por um escrito latino apresentado à Santa Sé e perguntou-lhe se havia cursado estudos literários. Dom Bosco respondeu que havia lido todos os clássicos latinos, com os melhores comentários e começou a citar nomes de autores e títulos de obras, até que o prelado o interrompeu, dizendo que falaria disso ao Papa, porque Leão XIII, pouco antes, tinha lido e julgado elegante aquele latim, e achava impossível que fosse de Dom Bosco, a quem reputava alheio aos estudos clássicos (cf. MB XV, p. 430).
[101] Em 1875, Dom Bosco deixará como recordação aos missionários que partiam para a Argentina: "Tenham cuidado da saúde. Trabalhem, mas só o quanto as próprias forças comportam" (J. Borrego, "Recuerdos de San Juan Bosco a los primeros misioneros", RSS 3 [1984
22. 14 PREPARAÇÃO À ESCOLHA DO ESTADO
14 PREPARAÇÃO À ESCOLHA DO ESTADO
Ia-se aproximando o fim do ano de retórica época na qual os estudantes costumam decidir a própria vocação. O sonho de Murialdo estava gravado em minha memória; havia-se até renovado de maneira muito mais clara, e assim, se lhe quisesse dar fé, devia optar pelo estado eclesiástico, ao qual justamente me sentia inclinado. Porém, a pouca fé nos sonhos, meu estilo de vida, certos hábitos do meu coração e a falta absoluta das virtudes necessárias para esse estado tornavam duvidosa e bastante difícil a decisão nesse sentido.
Oh! Tivesse então um guia que se interessasse pela minha vocação! Seria para mim um grande tesouro; faltava-me, porém, tal tesouro! Tinha um bom confessor, que pensava em fazer de mim um bom cristão mas não quis nunca imiscuir-se na questão da vocação.
Aconselhando-me comigo mesmo, depois de ler algum livro que tratava da escolha do estado, decidi-me a entrar na Ordem Franciscana.[102] “Se me faço sacerdote secular – dizia de mim para mim – a minha vocação corre grande perigo de naufrágio. Abraçarei o estado eclesiástico, renunciarei ao mundo, entrarei para o claustro, entregar-me-ei ao estudo, à meditação, e assim na solidão poderei combater as paixões, especialmente a soberba, que deitou profundas raízes no meu coração.” Apresentei o pedido aos conventuais reformados, prestei o exame correspondente, fui aceito, e assim tudo estava preparado para entrar no convento da Paz, em Chieri.
Poucos dias antes do tempo marcado para a entrada, tive um sonho bastante estranho. Pareceu-me ver uma multidão daqueles religiosos com os hábitos rasgados, correndo em sentido contrário uns dos outros. Um deles veio dizer-me: “Procuras a paz, e aqui não haverás de encontrá-la. Observa a atitude dos teus irmãos. Deus te prepara outro lugar, outra messe”.
Queria fazer algumas perguntas àquele religioso, mas um ruído me despertou e não vi mais nada. Expus tudo ao meu confessor, que não quis ouvir falar de sonhos nem de frades. “Neste assunto – respondeu –, é preciso que cada um siga as próprias propensões, e não os conselhos dos outros.”
Sucedeu entretanto um caso, que me pôs na impossibilidade de executar o meu projeto. Como os obstáculos eram muitos e permanentes, resolvi expor tudo ao amigo Comollo. Aconselhou-me a fazer uma novena, durante a qual escreveria ao tio pároco. No último dia da novena, em companhia do inolvidável amigo, fiz a confissão e a comunhão, depois ouvi uma missa e ajudei outra no altar de Nossa Senhora das Graças,[103] De volta para casa encontramos uma carta do padre Comollo vazada nestes termos: “Considerando atentamente o exposto, aconselharia teu colega a desistir de entrar num convento. Vista o hábito clerical e enquanto prosseguir nos estudos haverá de conhecer melhor o que Deus dele quer. Não tenha medo de perder a vocação, porque com o recolhimento e as práticas de piedade ele superará todos os obstáculos”.
Segui o sábio conselho e apliquei-me seriamente a quanto pudesse ajudar-me na preparação para a vestidura. Depois do exame de retórica, fiz o da tomada de hábito em Chieri, precisamente nos atuais quartos da casa de Carlos Bertinetti, que ao morrer nos deixou por herança,[104] e que haviam sido tomados em aluguel pelo arcipreste cônego Búrzio. Naquele ano o exame não foi em Turim como de costume, por causa do cólera-morbo que ameaçava os nossos povoados.
Quero notar aqui uma coisa que dá a conhecer claramente até que ponto se cultivava o espírito de piedade no colégio de Chieri. Durante os quatro anos em que freqüentei aquelas escolas, não lembro de haver ouvido uma conversa ou uma única palavra contra os bons costumes ou contra a religião. Terminado o curso de retórica, dos 25 alunos que compunham a classe, 21 abraçaram o estado eclesiástico; 3 tornaram-se médicos e 1, comerciante.
Indo a casa para as férias,[105] deixei de fazer-me de saltimbanco e dediquei-me às boas leituras que, digo-o para vergonha minha, havia até então descuidado. Continuei, porém, a ocupar-me com os meninos, entretendo-os com contos, agradáveis distrações, cantos sacros; mais, observando que muitos já estavam crescidos, mas continuavam ignorantes nas verdades da fé, apressei-me em ensinar-lhes também as orações cotidianas e outras coisas importantes naquela idade. Era uma espécie de oratório, ao qual acudiam uns 50 meninos que me amavam e obedeciam como se eu lhes fora pai.
[102] Fez o pedido de entrar para o convento franciscano em março de 1834. Apresentou-se ao exame de vocação em Turim, no convento de Santa Maria dos Anjos, a 18 de abril, e foi aceito a 28 do mesmo mês, conforme consta do registro dos postulantes onde se afirma ter ele todos os requisitos e ter sido admitido por unanimidade.
[103] A capela votiva de Nossa Senhora das Graças, construída de 1757 a 1759, é do arquiteto Bernardo Vittone.
[104] Para a herança Bertinetti (Carlos, Otávia, Jacinta), veja-se ASC A 101 FDB 545 C 1.
[105] "João - escreve Lemoyne - foi despedir-se dos superiores do colégio. O doutor teólogo Bosco e outros conspícuos personagens contaram-nos que foi algo maravilhoso ver como João havia sabido conquistar não só o coração dos colegas, mas também do prefeito dos estudos, do diretor espiritual e de cada um dos professores, os quais tinham por ele grande afeição e sempre quiseram tê-lo como amigo e confidente. Seu professor de retórica (o já mencionado homônimo João Bosco, doutor em letras e professor na Universidade de Turim) quis, ao terminar o curso, que João fosse seu amigo e o tuteasse. Basta isso para demonstrar o apreço que dispensavam ao pobre camponês dos Becchi, apreço provocado por sua virtude e algo que transparecia em todas as suas ações e o tornavam ainda mais amável. Embora ativo e empreendedor, era calmo e ponderado no agir; rico de idéias e de grande facilidade para comunicá-las em tempo oportuno, era parco em palavras, especialmente com os superiores. Assim o conhecemos durante muitos anos e assim era quando ainda jovem" (MB I, p. 364ss).
23. SEGUNDA DÉCADA: 1835-1845 1 VESTIDURA - PLANO DE VIDA
SEGUNDA DÉCADA: 1835-1845 1 VESTIDURA - PLANO DE VIDA
Tomada a decisão de abraçar o estado eclesiástico e prestado o respectivo exame, ia-me preparando para aquele dia tão importante, pois estava persuadido que da escolha do estado depende ordinariamente a salvação eterna ou a eterna perdição.
Pedi a vários amigos que rezassem por mim; fiz uma novena, e no dia de São Miguel (outubro de 1934)[106] aproximei-me dos santos sacramentos. O teólogo Cinzano,[107] pároco e vigário forâneo da minha terra natal, benzeu a batina e procedeu à vestidura antes da missa solene.
Quando me mandou depor as vestes seculares com as palavras: “Exuat te Dominus veterem hominem cum actibus suis”,[108] disse no meu coração: “Oh! quanta coisa velha há que tirar! Meu Deus, destruí em mim todos os maus hábitos”.
Quando, ao entregar-me o colarinho, acrescentou: “Induat te Dominus novum hominem, qui secundum Deum creatus est in iustitia et sanctitate veritatis”,[109] senti-me profundamente comovido e acrescentei de mim para mim: “Sim, meu Deus, fazei que neste momento eu me revista de um novo homem, isto é, que a partir de agora eu comece uma vida nova, toda conforme à divina vontade, e que a justiça e a santidade sejam o objeto constante dos meus pensamentos, das minhas palavras e das minhas obras. Assim seja. Ó Maria, sede a minha salvação”.
Terminada a função na igreja, meu pároco quis promover outra inteiramente profana: levar-me à festa de São Miguel que se celebrava em Bardella, povoado de Castelnuovo. Queria assim manifestar-me benevolência, mas não era coisa oportuna para mim. Iria parecer um boneco de roupa nova, que se apresentava ao público para ser visto. Além do mais, depois de várias semanas de preparação para o dia suspirado, como sentir-me à vontade e almoçar no meio de gente de toda condição e sexo, reunida para rir, tagarelar, comer, beber e divertir-se; gente que na maioria ia em busca de divertimentos, danças e disputas de todo o gênero? Que companhia poderia fazer essa gente a quem na manhã do mesmo dia havia vestido o santo hábito para entregar-se totalmente ao Senhor?
O pároco tudo observou, e na volta para casa perguntou-me por que num dia de alegria geral me havia mostrado tão retraído e pensativo. Com toda a sinceridade respondi que a função da manhã não concordava nem em gênero, nem em número, nem em caso com a da tarde. “Mais ainda – acrescentei –, ver padres bancarem os palhaços no meio dos convidados, já um tanto altos pelo vinho, quase despertou em mim aversão à minha vocação. Soubesse que havia de ser um desses padres, preferiria deixar este hábito e viver como um pobre leigo, mas bom cristão.”
– O mundo é assim – respondeu-me o pároco –, e é preciso tomá-lo como é. É preciso ver o mal para o conhecer e evitar. Ninguém se torna valente guerreiro sem aprender a manejar as armas. Assim devemos fazer nós, empenhados que estamos num contínuo combate contra os inimigos das almas.
Calei então, mas disse no meu coração:
– Não mais irei a festejos públicos, a menos que seja obrigado por funções religiosas.
Depois daquele dia devia cuidar de mim mesmo. A vida levada até então devia ser radicalmente reformada. Nos anos passados não havia sido propriamente mau, mas dispersivo, vaidoso, dado a partidas, jogos, saltos, brinquedos e coisas assim, que alegravam no momento mas não satisfaziam o coração.
Para traçar um teor de vida estável e não o esquecer, escrevi os seguintes propósitos:
1 No futuro não participarei de espetáculos públicos em feiras e mercados; nem assistirei a bailes ou teatros; e na medida do possível não participarei dos almoços que se costumam dar em tais ocasiões.
2 Não farei mais exibições de “bussolotti”, de prestidigitador, saltimbanco, malabarismo, corda; não tocarei violino, não irei mais à caça. Essas coisas todas considero-as contrárias à gravidade e ao espírito eclesiástico.
3 Procurarei amar e praticar o retiro, a temperança no comer e no beber; para repouso tomarei apenas as horas estritamente necessárias à saúde.
4 Como no passado servi o mundo com leituras profanas, assim no futuro procurarei servir a Deus com leituras religiosas.
5 Combaterei com todas as forças qualquer leitura, pensamento, conversa, palavras e obras contrárias à virtude da castidade. Pelo contrário, farei tudo o que contribuir para a conservação dessa virtude, por insignificante que seja.
6 Além das práticas ordinárias de piedade não deixarei de fazer todos os dias um pouco de meditação e de leitura espiritual.
7 Contarei todos os dias algum exemplo ou máxima que aproveite à alma do próximo, Assim farei com os companheiros, com os amigos com os parentes, e quando não puder fazê-lo com outros, fá-lo-ei com minha mãe.
Estas as resoluções tomadas quando vesti a batina; e para que me ficassem bem impressas, coloquei-me diante de uma imagem de Nossa Senhora, li-as, e, após uma prece, prometi formalmente à celeste Benfeitora observá-las à custa de qualquer sacrifício.
[106] No dia 25 de outubro de 1835.
[107] O teólogo Antônio Cinzano (1804-1870), nascido em Pecetto. Em 1833 o encontramos em Turim, adido à conferência de moral. De 1834 até à morte, foi pároco de Castelnuovo d’Asti.
[108] "Despoje-te o Senhor do velho homem e das suas ações".
[109] "Revista-te o Senhor do novo homem, que foi criado segundo Deus, na justiça e na santidade da verdade".
2 IDA PARA O SEMINÁRIO
A 30 de outubro daquele ano, 1835, devia estar no seminário. O pequeno enxoval estava preparado.[110] Todos os parentes estavam contentes, e eu mais do que eles. Somente minha mãe se mostrava preocupada e não desviava os olhos de mim, como se quisesse dizer alguma coisa. Na tarde anterior à partida, chamou-me e disse estas memoráveis palavras:
– Meu Joãozinho, acabas de vestir a batina. Sinto toda a consolação que uma mãe pode sentir pela alegria do seu filho. Lembra-te, porém, que não é o hábito que honra o teu estado, mas as virtudes que praticares. Se por desgraça vieres um dia a duvidar de tua vocação, ah! por caridade! não desonres a batina. Larga-a imediatamente. Prefiro ter como filho um pobre camponês, a um padre negligente nos seus deveres. Quando nasceste eu te consagrei a Nossa Senhora; quando começaste os estudos, eu te recomendei a devoção a nossa Mãe. Pois agora também recomendo-te que sejas todo dela. Ama os companheiros devotos de Maria. E se chegares a ser sacerdote, recomenda e propaga sempre a devoção a Nossa Senhora.
Ao terminar essas palavras, mamãe estava comovida. Eu chorava.
– Mamãe – respondi –, agradeço-lhe todas as suas palavras e tudo o que fez por mim; seus conselhos não foram dados em vão, serão por toda a vida o meu tesouro.
De manhã cedinho fui a Chieri e na tarde do mesmo dia entrei para o seminário.
Depois de cumprimentar os superiores e de arrumar a cama, pus-me a passear com o amigo Garigliano pelos dormitórios, pelos corredores e depois pelo pátio. Erguendo os olhos para um relógio de sol, li este verso: “Afflictis lentae, celeres gaudentibus horae”.[111]
– Eis – disse ao amigo –, eis aí o nosso programa: vamos estar sempre alegres e o tempo passará depressa.
No dia seguinte começou um retiro de três dias e procurei fazê-lo da melhor maneira possível. Aí pelo fim, fui ter com o professor de filosofia, que era então o teólogo Ternavásio,[112] de Bra, e pedi-lhe alguma norma de vida para cumprir com meus deveres e conquistar a benevolência dos meus superiores.
– Uma coisa só – respondeu-me o digno sacerdote –, o cumprimento exato do dever.
Tomei como base esse conselho e empenhei-me com toda a alma na observância das regras do seminário. Não fazia distinção se a sineta chamasse para o estudo, para a igreja, ou então para o refeitório, o recreio, o repouso. Essa exatidão ganhou-me o afeto dos colegas e a estima dos superiores, a ponto que os seis anos de seminário foram para mim uma etapa muito agradável.
[110] Pároco e paroquianos ajudaram-no generosamente com roupas. Quanto à pensão, o teólogo Guala, a pedido do padre Cinzano, vigário de Castelnuovo, e sugestão do padre Cafasso, fez valer sua grande influência sobre o arcebispo Fransoni para conseguir que entrasse gratuitamente para o seminário, pelo menos no primeiro ano.
[111] "Lentas para os aflitos, são céleres as horas para os que estão alegres".
[112] O teólogo Francisco Ternavásio (1806-1885).
3 A VIDA DO SEMINÁRIO
Os dias do seminário são mais ou menos sempre os mesmos, por isso relatarei os fatos de maneira genérica, descrevendo de maneira especial os de maior relevo. Começarei pelos superiores.
Eu queria muito bem aos meus superiores, e eles foram sempre muito bons para comigo; mas meu coração não estava satisfeito. Era costume visitar o reitor [113] e os demais superiores à chegada das férias e quando se partia para elas. Ninguém ia falar com eles, a não ser quando chamado para receber alguma reprimenda. Um dos superiores, por turno, vinha assistir cada semana o refeitório e os passeios; só isso. Quantas vezes queria falar, pedir-lhes conselho ou solução de dúvidas, e não podia fazê-lo. Mais: se algum superior por acaso passasse no meio dos seminaristas, todos, sem saber por que, fugiam precipitadamente para um lado ou para outro como de um cão sarnento. Isso avivava em meu coração o desejo de ser quanto antes padre, para ficar no meio dos jovens, assisti-los e ajudá-los no que fosse preciso.
Quanto aos colegas, ative-me ao conselho de minha querida mãe, isto é, juntei-me a companheiros devotos de Maria, amigos do estudo e da piedade. Devo dizer, para norma de quem freqüenta o seminário, que há nele muitos clérigos de grande virtude, mas há também elementos perigosos. Não poucos jovens, sem preocupar-se com a própria vocação, vão para o seminário sem possuir nem espírito nem vontade de um bom seminarista. Lembro-me até de ter ouvido a alguns colegas conversas realmente más. E quando, uma vez, foi feita uma revista nos pertences de alguns alunos, encontraram-se livros ímpios e obscenos de toda espécie. É bem verdade que tais companheiros abandonavam voluntariamente o hábito clerical ou eram expulsos do seminário, assim que descobertos.[114] Entretanto, durante a permanência no seminário, eram como uma peste para os bons e para os maus.
Para evitar o perigo de tais colegas, escolhi alguns, notoriamente tidos como modelos de virtude. Eram Guilherme Garigliano, João Giacomelli,[115] de Avigliana, e, mais tarde, Luís Comollo. Esses três colegas foram para mim um verdadeiro tesouro.
As práticas de piedade eram muito bem-feitas. Todas as manhãs, missa, meditação, terço; à mesa, leitura edificante. Naquele tempo lia-se a História eclesiástica, de Bercastel. A confissão era obrigatória cada quinze dias; mas quem quisesse podia confessar-se todos os sábados. Mas só se podia comungar aos domingos ou em solenidades especiais. Algumas vezes fazia-se durante a semana, mas para isso era necessário procurar um subterfúgio. Devia-se escolher a hora do café, ir meio às escondidas à vizinha igreja de São Filipe,[116] fazer a Comunhão, e depois voltar para juntar-se aos colegas na hora em que iam para o estudo ou para a aula. Essa infração do horário era proibida; mas os superiores davam um consentimento tácito, porque sabiam e, às vezes, viam e não diziam nada em contrário. Pude dessa maneira receber freqüentemente a santa Comunhão, que posso chamar com razão o alimento mais eficaz da minha vocação. Já foi remediada essa falha na vida de piedade, uma vez que, por disposição do arcebispo Gastaldi, dispuseram-se as coisas de maneira a poder aproximar-se todas as manhãs da Comunhão quantos quisessem fazê-lo.[117]. ]
[113] Era o cônego Sebastião Mottura (1795-1876), nascido em Villafranca, Piemonte, cônego da colegiada de Chieri desde 1830. De 1847 em diante, arcipreste da mesma colegiada. Foi reitor do seminário de Chieri de 1829 a 1860.
[114] Talvez Dom Bosco se refira a três seminaristas expulsos do seminário em 1837 (cf. AAT 19.5 a carta Mottura-arcebispo de Turim, 10 de abril de 1837).
[115] O padre João Giacomelli (1820-1901), nascido em Avigliana, entrou no seminário de Chieri em 1836. Foi ordenado sacerdote em 1843. Terminado o Colégio Eclesiástico foi vigário cooperador numa paróquia fora de Turim. Desde 1854 foi diretor espiritual do Pequeno Hospital de Santa Filomena, da Obra Barolo. O padre João Giacomelli foi sempre muito querido por Dom Bosco e, a partir de 1873, seu confessor, após a morte do teólogo Golzio, que sucedeu nesse ministério a São José Cafasso, falecido em 1860. Giacomelli seria uma das testemunhas do processo informativo. De Garigliano sabemos que fora seu colega no ginásio.
[116] Consagrada em 1681, a igreja de São Filipe foi construída no lugar de duas casas onde, desde 1664 tinha sede a Congregação do Oratório de São Filipe Néri. Em 1828 o convento de São Filipe tinha sido entregue ao novo seminário que se devia abrir em Chieri. De uma carta ao clero da arquidiocese, de 1º de setembro de 1834, e assinada por dom Fransoni, resulta que os seminários de Chieri e Bra estavam destinados aos clérigos que não aspiravam conseguir os graus acadêmicos que conferia a Faculdade de Teologia da Real Universidade de Turim (cf. S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 148 e 150).
[117] "3. Logo após a Comunhão do celebrante, seja permitido a todo aluno, a quem o diretor de sua consciência o permita, também todos os dias aproximar-se da sagrada Mesa: e depois lhe seja concedido um quarto de hora para a ação de graças" (Regulae Seminariorum Archiepiscopalium clericorum Archidiocesis Taurinensis. Turim, Marietti, 1875, capítulo VII, 3, p. 24). Dom Lourenço Gastaldi (1815-1883) nasceu em Turim. Doutorou-se em teologia em 1836. Foi ordenado sacerdote em 1837. Em 1841 era cônego da Santíssima Trindade. Em 1851 entrou no Instituto da Caridade, fundado por Antônio Rosmini, e foi para a Inglaterra, onde ficou até 1862. Bispo de Saluzzo em 1867, foi feito arcebispo de Turim em 1871. Veio a falecer de morte repentina em Turim. Para a sua biografia veja G. Tuninetti, Lorenzo Gastaldi 1815-1883; vol. I, Teologo, pubblicista, rosminiano, Vescovo di Saluzzo 1815-1871. Roma, Edizioni Piemme di Pietro Marietti, 1983; vol. II, Arcivescovo di Torino 1871-1883. Roma, Piemme [1988
DIVERTIMENTOS E RECREIOS
O brinquedo mais comum durante o tempo livre era a conhecida barra comprida. No princípio tomei parte nele com muito gosto; mas como o brinquedo se assemelhava muito ao dos saltimbancos, aos quais havia definitivamente renunciado, quis renunciar também a este. Em determinados dias permitia-se o jogo de baralho, e nele participei durante algum tempo. Mas também aqui o doce misturava se ao amargo. Conquanto não fosse um grande jogador, tinha, não obstante, tamanha sorte, que quase sempre ganhava. No fim das partidas estava com as mãos cheias de dinheiro; mas ao ver meus colegas aflitos por haverem-no perdido, ficava mais aflito do que eles. Acresce que eu prestava tanta atenção ao jogo, que depois já não podia rezar nem estudar, pois tinha a imaginação ocupada pelo rei de copas e pelo valete de espadas. Pelo ás de paus ou de ouro. Tomei então a propósito de não mais participar desse jogo, da mesma maneira como havia renunciado a outros. Fiz isso na metade do segundo ano de filosofia, em 1836.
Quando mais longa que de costume, a recreação era alegrada por algum passeio, que os seminaristas davam freqüentemente pelos lugares mui pitorescos dos arredores de Chieri. Tais passeios eram úteis também para o estudo, pois cada um procurava exercitar-se nos temas escolares, perguntando ao colega ou respondendo a perguntas. Fora do tempo do passeio propriamente dito, podia cada um distrair-se andando com os amigos pelo seminário, conversando assuntos interessantes ou questões de estudo e piedade.
Nos recreios compridos, muitas vezes nos reuníamos no refeitório para fazer o chamado círculo de estudos. Ali cada um indagava sobre o que não sabia ou não havia entendido bem no livro ou na escola. Eu gostava muito e me era muito útil para o estudo, para a piedade e para a saúde. Comollo, que chegara ao seminário um ano depois de mim, destacava-se em fazer perguntas. Certo Domingos Peretti,[118] atualmente pároco de Buttigliera, era muito loquaz e respondia sempre. Garigliano era excelente ouvinte; fazia apenas algumas reflexões.[119] Eu era presidente e juiz inapelável. Como se apresentassem em nossas conversações familiares questões e temas científicos, aos quais ninguém sabia dar resposta exata, dividíamos as dificuldades entre nós. Dentro de determinado prazo cada qual tinha de preparar a solução da dificuldade que lhe incumbia.
Meu recreio era freqüentemente interrompido por Comollo. Pegava-me pela batina, pedia-me que o acompanhasse e levava-me à capela para uma visita ao Santíssimo Sacramento pelos agonizantes, o terço ou o ofício de Nossa Senhora em sufrágio das almas do purgatório.
O maravilhoso colega foi para mim uma bênção. Sabia oportunamente avisar-me, corrigir-me, consolar-me, mas fazia-o com tal garbo e tamanha caridade, que de certo modo gostava de dar-lhe motivo a fim de desfrutar o prazer da correção.[120] não se irrita pela correção feita nem pelo castigo ameaçado, ou mesmo infligido, pois a punição contém em si um aviso amigável e preventivo que o leva a refletir e, as mais das vezes, consegue granjear-lhe o coração. Assim o aluno conhece a necessidade do castigo e quase o deseja" (São João Bosco, O Sistema Preventivo na educação dos jovens, 1.1).] Tratava-o com familiaridade, sentia-me naturalmente levado a imitá-lo, e embora me encontrasse a incontáveis léguas de sua virtude, devo a ele se não me deixei arruinar pelos relaxados e, ao contrário, progredi na minha vocação.
Só numa coisa nem sequer tentei imitá-lo: na mortificação. Ver um moço de 19 anos jejuar rigorosamente toda a quaresma e no tempo determinado pela Igreja; jejuar todos os sábados em honra de Nossa Senhora, renunciar muitas vezes ao café da manhã, almoçar por vezes apenas pão e água; suportar o desprezo, a injúria, sem dar jamais um sinal de ressentimento; vê-lo exatíssimo nos mínimos deveres de estudo e piedade, tudo isso me confundia e fazia-me ver no colega um amigo ideal, um estímulo ao bem, um modelo de virtude para quem vive no seminário.
[118] O padre Domingos Peretti (1816-1893), que nascera em Volvera, Turim, e foi pároco em Buttigliera Alta de 1850 até à morte. Bom pastor, foi também um administrador capaz, conseguindo impedir que os bens da paróquia fossem confiscados pelo Estado. Buttigliera Alta fica a 21 quilômetros de Turim.
[119] Garigliano era gago.
[120] Confronte-se com quanto Dom Bosco dirá em 1877: "[O aluno
4 AS FÉRIAS
As férias costumam ser um grande perigo para os clérigos, tanto mais que naquele tempo duravam quatro meses e meio. Empregava o tempo lendo, escrevendo; mas como ainda não sabia aproveitar os dias livres, perdia-os sem muito fruto. Procurava entreter-me com algum trabalho manual. Fazia fusos, cavilhas, piões, bochas ou bolas no torno; fazia batinas; cortava, costurava sapatos; trabalhava o ferro, a madeira. Ainda agora há na minha casa de Murialdo uma escrivaninha, uma mesa com algumas cadeiras que lembram as obras-primas das minhas férias. Ocupava-me também em cortar capim no prado, ceifar o trigo no campo; em despampanar, desfilhar, vindimar, fazer vinho, espichar e coisas semelhantes. Ocupava-me com os meninos de sempre, mas só podia fazê-lo aos domingos. Experimentei grande satisfação em dar catecismo a muitos companheiros meus, que aos 16 e também aos 17 anos ignoravam de todo as verdades da fé. Ensinava alguns a ler e a escrever, com muito bom resultado; porque o desejo, diria até a febre de aprender trazia-me meninos de todas as idades. A aula era gratuita, mas eu exigia assiduidade, atenção e a confissão mensal. No princípio houve alguns que para não se submeterem a essas condições deixaram de freqüentá-la. Isso serviu de lição e encorajamento para os outros.
Comecei também a pregar e dar palestras com licença e supervisão do meu pároco. Preguei sobre o Santíssimo Rosário no povoado de Alfiano,[121] nas férias que se seguiram ao segundo ano de filosofia; sobre São Bartolomeu Apóstolo, depois do primeiro ano de teologia, em Castelnuovo d’Asti; sobre a Natividade de Maria, em Capriglio. Não sei com que fruto. Mas em todos os lugares era aplaudido, e assim a vanglória foi tomando conta de mim, até sofrer um desengano. Certa vez, depois da citada pregação sobre a Natividade de Maria, perguntei a um, que parecia dos mais inteligentes, a respeito da pregação que ele elogiava exageradamente, e me respondeu:
– Sua pregação foi sobre as pobres almas do Purgatório.
E eu havia pregado sobre as glórias de Maria.
Em Alfiano quis saber também o parecer do pároco, padre José Pellato,[122] homem de muita piedade e doutrina, e pedi-lhe a opinião sobre a minha pregação.
– Seu sermão – respondeu – foi muito bonito, ordenado, exposto em boa linguagem, com pensamentos da Escritura; se continuar assim poderá ter êxito na pregação.
– Será que o povo compreendeu?
– Pouco. Meu irmão padre, eu e pouquíssimos outros.
– Mas como é que coisas tão simples não são entendidas?
– Ao senhor parecerão fáceis, mas para o povo são muito elevadas. Passar por alto a história sagrada, raciocinar rapidamente sobre uma série de fatos da história eclesiástica, tudo isso é coisa que o povo não entende.
– Então, que me aconselha a fazer?
– Abandonar a linguagem e a maneira dos clássicos de desenvolver o tema, falar em dialeto onde for possível, ou também em língua italiana, mas popularmente, popularmente, popularmente. Em vez de raciocínios, sirva-se de exemplos, comparações, apólogos simples e práticos. Lembre sempre que o povo compreende pouco, e que as verdades da fé nunca lhe são suficientemente explicadas.
O paternal conselho serviu-me de norma em toda a vida. Conservo ainda, para vergonha minha, aqueles discursos,[123] nos quais não descubro hoje senão vanglória e afetação. Deus misericordioso dispôs que recebesse essa lição: lição proveitosa para as pregações, catecismo, instruções e escritos,[124] Para conseguir seu objetivo de divulgação popular e juvenil, escolheu e cultivou um estilo fácil e a preocupação por uma comunicação familiar e popular; ou seja, pela máxima simplicidade em todo tema dirigido ao povo e aos rapazes: um caráter popular no melhor sentido, e também nele o mais completo, da palavra".] aos quais já naqueles tempos me dedicava.
[121] Alfiano Natta, província de Alessândria, aldeia do Baixo Monferrato, a 6 quilômetros de Moncalvo e a cerca de 20 quilômetros de Castelnuovo d’Asti, foi feudo dos marqueses de Natta, na Diocese de Casale.
[122] O padre José Pellato (1797-1864), pároco de Alfiano de 1823 até a morte. Foi homem de conselho e de oração. Morrendo, deixou seus bens para a Igreja, provendo estavelmente o estipêndio de um vigário cooperador e uma substancial ajuda aos pobres e ao culto divino.
[123] Talvez sejam deste período os seguintes sermões que se encontram em ASC A 225 Prediche - Conferenze - Discorsi FDB 83 A 12 - 83 B 5 Assunção; FDB 83 D 9 - 83 E 6 Rosário; FDB 86 B 9 - 86 C 6 São Roque.
[124] O padre Caviglia (Don Bosco: profilo storico, 2a ed., p. 97 e 99) assim retrata Dom Bosco escritor: "Escreve simples e claro, com ordem e tranqüilidade, com objetividade; quer sempre dizer algo e fazer-se entender. […
28. 5 BANQUETE NO CAMPO - O VIOLINO - A CAÇA
5 BANQUETE NO CAMPO - O VIOLINO - A CAÇA
Quando, há pouco, dizia que as férias são perigosas, referia-me exatamente a mim mesmo. Um pobre clérigo, sem que se dê conta, pode muitas vezes encontrar-se em graves perigos. Tive experiência disso.
Um ano fui convidado para um almoço festivo em casa de alguns parentes. Não queria ir, mas como insistiam que não havia nenhum clérigo para ajudar na igreja, pareceu-me bem ceder aos repetidos convites de um tio e fui. Terminadas as funções sagradas, nas quais participei ajudando e cantando, fomos para o almoço. Até dado momento tudo correu bem; mas quando o vinho começou a fazer seus efeitos, a linguagem baixou a um nível que um clérigo não podia tolerar. Tentei fazer algumas observações, mas minha voz não foi ouvida. Não sabendo então que partido tomar, resolvi ir embora; levantei-me da mesa e apanhei o chapéu para sair, mas o tio se opôs. Outro começou a falar pior ainda e a insultar a todos os comensais. Das palavras passou-se aos fatos: gritaria, ameaças, copos, garrafas, pratos, colheres, garfos e facas, tudo juntava-se numa balbúrdia tremenda. Não tive, então, outra saída senão dar às pernas. Assim que cheguei em casa, renovei de todo o coração o propósito, já várias vezes tomado, de viver retirado se é que não queria cair.
Fato de outro gênero, mas igualmente desagradável, sucedeu-me em Croveglia,[125] distrito de Buttigliera.
Celebrando-se aí a festa de São Bartolomeu, fui convidado por outro tio a comparecer, a fim de ajudar nas sagradas funções, cantar e também tocar o violino, que tinha sido para mim um instrumento predileto, e que já havia abandonado. Tudo correu muito bem na igreja. O almoço era na casa do tio, que era o patrocinador da festa, e até aí nada que lamentar. Terminada a refeição, os comensais convidaram-me a tocar alguma coisa a título de passatempo. Neguei-me.
– Pelo menos – disse um músico – acompanhe-me. Eu farei a primeira voz e o senhor a segunda.
Pobre de mim! Não soube dizer não e pus-me a tocar e toquei por algum tempo, até ouvir um burburinho e movimento de pés, que denotava a presença de grande número de pessoas. Cheguei, então, à janela e vi um bom grupo de pessoas no pátio contíguo a dançar alegremente ao som do meu violino. Impossível exprimir com palavras a raiva que de mim se apoderou.
– Como? – disse aos comensais –; eu que grito sempre contra esses espetáculos tenho que converter-me em promotor deles? Isso não mais acontecerá.
Entreguei o violino. Em casa fiz em mil pedaços o meu, e não me servi mais desse instrumento, muito embora se houvessem apresentado ocasiões e conveniências nas funções sagradas.
Mais um episódio, que me aconteceu na caça.
Durante o verão pegava ninhos, no outono caçava com visgo, arapuca, laço e alguma vez também com espingarda. Certa manhã pus-me a perseguir uma lebre, e correndo de campo em campo, de vinha em vinha, atravessei vales e colinas durante várias horas. Cheguei por fim à distância de tiro do animal; com um disparo rompi-lhe as costelas, de modo que o pobre animalzinho tombou, deixando-me muito abatido por vê-lo morto. Quando ouviram o tiro meus colegas acudiram, e enquanto eles se alegravam pela presa, dei um olhar sobre mim mesmo e percebi que estava em mangas de camisa, sem batina, com um chapéu de palha, parecido a um contrabandista, e isso num lugar mais de 5 quilômetros longe de minha casa. Fiquei muito mortificado, pedi desculpas aos companheiros pelo escândalo dado por aquela maneira de vestir, voltei logo para casa, e renunciei mais uma vez e de maneira definitiva a toda sorte de caça. Desta vez, com a ajuda do Senhor, mantive a promessa. Perdoe-me Deus o escândalo.
Esses três fatos deram-me uma terrível lição, e a partir de então entreguei-me com melhores propósitos à vida recolhida, e fiquei mesmo persuadido de que quem quer dar-se totalmente ao serviço do Senhor deve deixar inteiramente os divertimentos mundanos. É bem verdade que muitas vezes não são pecaminosos; mas é certo que pelas conversas que se travam, pela maneira de vestir, de falar e proceder, contêm sempre algum risco de ruína para a virtude, especialmente para a delicadíssima virtude da castidade.
[125] Dom Bosco italianizou para "Croveglia" o distrito de "Crivelle", situado a 3 quilômetros de Buttigliera, em direção de Villanova d’Asti. Ao longo das MO encontraremos outros casos semelhantes.
AMIZADE COM LUÍS COMOLLO
Enquanto Deus conservou em vida o incomparável companheiro, estive sempre intimamente relacionado com ele. Durante as férias ia vê-lo muitas vezes, e muitas outras ele me procurava. Escrevíamo-nos com freqüência. Via nele um moço santo. Amava-o pelas suas raras virtudes; ele me amava porque o ajudava nos estudos, e quando eu estava com ele esforçava-me por imitá-lo em alguma coisa.
Numas férias veio passar um dia comigo, quando meus parentes se encontravam no campo para a ceifa. Deu-me a ler um sermão que devia pronunciar na próxima festa da Assunção de Maria; depois recitou-o acompanhando as palavras com gestos. Após algumas horas de agradável entretenimento, percebemos que era hora do almoço. Estávamos sós em casa. Que fazer?
– É fácil – disse Comollo –, eu acendo o fogo, tu preparas a panela, e cozinharemos alguma coisa.
– Muito bem – respondi –, mas vamos antes pegar um frango no quintal. Servirá de carne e de caldo; mamãe faz assim.
Conseguimos logo pegar um frango. Mas, quem tinha coragem de matá-lo? Nenhum dos dois. Para chegar a uma solução satisfatória, decidimos que Comollo seguraria o animal pelo pescoço sobre um tronco de madeira e eu o cortaria com uma foice despontada. Desferi o golpe e a cabeça caiu ao chão. Espantados, recuamos instintivamente, a chorar.
– Tolos que somos – falou daí a pouco Comollo –; disse o Senhor que nos servíssemos dos animais da terra para nosso bem; por que, pois, tanta relutância?
Sem mais problemas recolhemos o animal, que, depenado e cozido, serviu-nos de almoço.
Eu devia ir a Cinzano para ouvir o sermão de Comollo sobre a Assunção, mas como estava incumbido de fazer o mesmo em outro lugar, só fui no dia seguinte. Dava gosto ouvir os elogios que de todas as partes se faziam à pregação de Comollo. Aquele dia (16 de agosto) era a festa de São Roque, que se costuma chamar dia da panela ou da cozinha, porque os parentes e os amigos costumam aproveitar para convidarem-se reciprocamente a almoçar e distrair-se com algum entretenimento público. Nessa ocasião aconteceu um episódio que mostrou até onde chegava meu atrevimento.
Estava-se à espera do pregador da solenidade. Já era hora de subir ao púlpito e ele não aparecia. Para tirar o pároco de Cinzano do apuro, dirigi-me a cada um dos muitos párocos presentes, pedindo e insistindo que algum deles fizesse um pequeno sermão ao numeroso povo reunido na igreja. Ninguém quis aceitar. Aborrecidos com meus repetidos convites, responderam-me asperamente:
– Seu tonto! Fazer de improviso um sermão sobre São Roque não é como beber um copo de vinho; e em vez de amolar os outros, faça-o o senhor.
Todos aplaudiram essas palavras. Mortificado e ferido no meu amor-próprio, respondi:
– Não ousaria decerto oferecer-me, mas, uma vez que todos se recusam, aceito.
Entoou-se na igreja um canto sacro para dar-me alguns instantes de concentração; depois de recordar a vida do santo que já havia lido, subi ao púlpito, fiz um sermão que sempre me disseram ter sido o melhor de quantos houvesse feito antes e depois.
Nessas férias e nessa mesma ocasião (1838) saí um dia a passeio com meu amigo até uma colina, donde se descortinava vasta extensão de prados, campos e vinhas.[126] scritti dal Sac. Bosco Giovanni suo collega. Turim, De Agostini, 1854, p. 50-51.]
– Olha, Luís – comecei a dizer –, que má colheita teremos este ano! Pobres camponeses! Tanto trabalho, e quase tudo em vão!
– É a mão do Senhor – respondeu – que pesa sobre nós. Acredita; nossos pecados são disto a causa.
– No ano que vem espero que o Senhor nos dará frutos mais abundantes.
– Também espero. E será bom para os que puderem aproveitá-los.
– Vamos lá, deixemos de lado idéias tristes; por este ano, paciência, mas no próximo teremos colheita mais abundante e faremos melhor vinho.
– Tu beberás dele.
– E tu pensas em continuar a beber a água de sempre?
– Espero beber um vinho muito melhor.
– Que queres dizer com isso?
– Deixa pra lá, deixa… O Senhor sabe o que faz.
– Não pergunto isso, pergunto que queres dizer com as palavras “espero beber um vinho melhor”. Queres acaso ir para o céu?
– Embora não esteja inteiramente certo de ir para o céu depois de minha morte, tenho, todavia, fundada esperança, e de uns tempos para cá sinto tão vivo desejo de ir gozar a felicidade dos bem-aventurados, que me parece impossível possam ser muitos os dias de minha vida.
Comollo dizia isso com o rosto iluminado, gozando ainda de ótima saúde e preparando-se para retornar ao seminário.
[126] Este episódio é tirado de Cenni sulla vita del giovane Luigi Comollo […
6 UM TRATO POUCO PRUDENTE
O mais memorável de quanto precedeu e acompanhou a preciosa morte do querido amigo foi descrito à parte, e quem quiser poderá ler à vontade. Não quero omitir aqui um fato que deu muito que falar e é apenas mencionado nas memórias já publicadas. É o seguinte:
Dada a amizade e ilimitada confiança que havia entre mim e Comollo, costumávamos falar do que podia acontecer de um momento para outro, da nossa separação em caso de morte. Um dia, após haver lido longo trecho da vida dos santos, meio brincando e meio a sério dissemos que seria uma grande consolação se o que de nós dois morresse por primeiro trouxesse ao outro notícias do seu estado. Tendo voltado por diversas vezes ao assunto, fizemos um trato: o que de nós morresse primeiro, traria, se Deus o permitisse, notícia de sua salvação ao colega sobrevivente.
Eu não aquilatava a importância de tal promessa; confesso que houve muita leviandade nisso e jamais aconselharia alguém a fazê-la. Nós, entretanto, a fizemos e repetimos diversas vezes, especialmente na última doença de Comollo. Mais, suas últimas palavras e o último olhar confirmavam que o compromisso continuava de pé. Muitos companheiros estavam a par disso.
Comollo morria a 2 de abril de 1839,[127] e na tarde do dia seguinte era com grande acompanhamento sepultado na igreja de São Filipe. Os que estavam a par da promessa mostravam-se ansiosos por vê-la cumprida. Eu, muito mais do que eles, porque seria um grande conforto em minha desolação.
Naquela noite, já deitado, num dormitório de cerca de 20 seminaristas, estava eu muito agitado, convencido de que naquela noite haveria de cumprir-se a promessa. Aí pelas 11 e meia, um rumor fez-se ouvir pelos corredores. Parecia que enorme carroça tirada por muitos cavalos se estivesse aproximando da pequena porta do dormitório. Espantados, os clérigos saltaram da cama para se juntarem num bloco e encorajarem-se mutuamente. Foi então que no meio daquela espécie de violento e surdo trovão ouviu-se claramente a voz de Comollo, dizendo três vezes:
– Bosco, estou salvo!
Todos ouviram o ruído, e alguns ouviram as palavras, sem captar o sentido. Houve, porém, quem as entendesse como eu, tanto assim que por muito tempo se andaram repetindo pelo seminário. Foi a primeira vez que me lembro de ter tido medo; medo e tão grande assombro que caí gravemente doente e estive à beira do túmulo.
Não daria nunca a outrem conselhos desse gênero. Deus é onipotente, Deus é misericordioso. Na maioria das vezes não dá ouvidos a tratos assim; algumas vezes, porém, na sua infinita misericórdia permite que se cumpram, como no caso presente.
[127] O registro de óbito de Comollo (Registri di morte della Parrocchia del Duomo 1839, atto n. 71) é transcrito por S. Caselle, Giovanni Bosco studente, p. 199. Quanto à sepultura, veja no Corriere di Chieri (1986), n. 46, a notícia do encontro da tumba de Comollo no subterrâneo que fica debaixo do presbitério da igreja de São Filipe.
31. 7 PRÊMIO - ENCARREGADO DA SACRISTIA - O TEÓLOGO JOÃO BOREL
7 PRÊMIO - ENCARREGADO DA SACRISTIA - O TEÓLOGO JOÃO BOREL
Fui muito feliz no seminário e sempre gozei da estima dos meus colegas e de todos os meus superiores. No exame semestral costuma-se dar um prêmio de 60 francos em cada curso a quem obtiver as melhores notas no estudo e no procedimento.[128] Deus me abençoou muito, pois nos seis anos que passei no seminário fui sempre distinguido com esse prêmio. No segundo ano de teologia fui nomeado sacristão, cargo de pequena importância, mas sinal precioso de benevolência por parte dos superiores, já que a ele se juntavam outros 60 francos. Tinha assim metade da pensão, enquanto o caridoso padre Cafasso providenciava o resto. O sacristão devia cuidar da limpeza da igreja, sacristia, altar, lâmpadas, velas e dos demais ornamentos e objetos necessários ao culto divino.
Tive nesse ano a ventura de conhecer um dos mais zelosos ministros do santuário, quando veio ao seminário para pregar os exercícios espirituais. Entrou na sacristia com ar alegre, com gracejos temperados sempre de pensamentos morais. Quando lhe observei a preparação e a ação de graças da missa, a atitude, o fervor na celebração, percebi de golpe que era um digno sacerdote, como era de fato o teólogo João Borel [129] de Turim. Quando então começou as pregações, impressionando pela simplicidade, vivacidade, clareza e inflamada caridade que transparecia de todas as suas palavras, todos repetiam que era um santo.
De fato todos porfiavam em confessar-se com ele, em conversar com ele sobre a vocação e receber alguma lembrança especial.
Eu também quis tratar com ele das coisas da alma.
Tendo, no fim, pedido um meio certo para conservar o espírito da vocação no decorrer do ano e especialmente nas férias, disse-me estas memoráveis palavras:
– Com o recolhimento e a comunhão freqüente se aperfeiçoa e conserva a vocação e se forma um verdadeiro eclesiástico.
Os exercícios espirituais do teólogo Borel marcaram época no seminário, e vários anos depois repetiam-se ainda as santas máximas que pregara em público ou aconselhara em particular.
[128] Quanto aos prêmios concedidos a Dom Bosco, cf. AAT 12.17.6 Elenco dei chierici del Seminario di Torino, Chieri e Bra, de 1834 a 1841.
[129] O padre João Borel (Dom Bosco italianiza em Borrelli, como escreve Caffasso) foi um autêntico salesiano, anterior aos da primeira hora. Estas mesmas Memórias nos oferecerão novas ocasiões de admirá-lo. Fazemos sua apresentação com as palavras de quem foi por muitos anos ecônomo geral dos salesianos, o padre Fedele Giraudi (L’Oratorio di don Bosco. Turim, SEI, 2a ed., p. 65): "Conquanto muito ocupado na instituição do Refúgio, nas prisões do Estado e em muitos outros lugares da cidade, encontrava ainda tempo esse homem de pequena estatura, mas de alma grande e generosa, para trabalhar no oratório. Roubava horas ao sono para ir confessar. Negava ao corpo, cansado já de tantos trabalhos, o necessário descanso, para ir pregar aos meninos de Dom Bosco nas tardes dos dias festivos, a fim de poupar a Dom Bosco pelo menos esse trabalho. Ao lembrar os méritos do teólogo Borel, exclama Lemoyne nas Memórias biográficas: -Louvor eterno seja dado a este sacerdote incomparável. Sua lembrança está imortalizada no oratório num medalhão de bronze, sobre uma lápide de mármore, sob os pórticos, no lugar do antigo telheiro-capela Pinardi, que foi testemunha do seu zelo". O teólogo João Borel (1801-1873) nasceu em Turim. Em 1864 foi admitido como clérigo da câmara e da capela do rei. Tendo sido ordenado sacerdote naquele mesmo ano, foi capelão de Sua Majestade em 1831. Em 1838 era diretor das escolas de São Francisco de Paula. A lápide de sua tumba recorda que por trinta e quatro anos foi diretor espiritual das Pias Obras do Refúgio e das madalenas. Distinguiu-se também pela caridade para com os pobres e pelo trabalho em favor dos encarcerados. Muito fez para favorecer Dom Bosco nos primeiros anos do apostolado deste. Foi ele quem benzeu a capela Pinardi e que manteve em vida o Oratório de Valdocco durante a grave doença de Dom Bosco, no verão de 1846. Até 1852 seu nome aparece em quase todos os atos da cúria ou outros que dizem respeito aos oratórios. Faleceu, em grande pobreza, a 8 de setembro de 1873, aos 72 anos. Para maior conhecimento de sua vida e obra, veja Natale Cerrato, "Il teologo Giovanni Battista Borel inedito", RSS 32 (1998), p. 151-177.
8 ESTUDOS
Quanto aos estudos, deixei-me levar por um erro que haveria de acarretar conseqüências graves, não fosse um fato providencial a abrir-me os olhos. Habituado à leitura dos clássicos em todo o curso secundário, acostumado às figuras enfáticas da mitologia e das fábulas dos pagãos, não sentia gosto nas leituras ascéticas. Cheguei a convencer-me de que a boa linguagem e a eloqüência não se conciliam com a religião. As próprias obras dos Santos Padres pareciam-me fruto de engenhos muito acanhados, com exceção dos princípios religiosos, que expunham com vigor e clareza.
No princípio do segundo ano de filosofia, fui um dia fazer a visita ao Santíssimo Sacramento, e não tendo comigo o livro de orações, pus-me a ler De Imitatione Christi, alguns capítulos sobre o Santíssimo Sacramento. Considerando atentamente a sublimidade dos pensamentos e a maneira clara e ao mesmo tempo ordenada e eloqüente com que se expunham as grandes verdades, comecei a dizer de mim para mim: “o autor deste livro era um homem douto”.
Continuando por diversas outras vezes a ler o áureo opúsculo, não demorei em perceber que um só versículo continha mais doutrina e moral do que todos os grossos volumes dos clássicos antigos. Devo a esse livro o haver abandonado a leitura profana.
Dediquei-me depois à leitura de Calmet, História do Antigo e Novo Testamento; de Josefo Flávio, Antigüidades judaicas e A guerra judaica; depois monsenhor Marchetti, Reflexões sobre a religião; e posteriormente de Frayssinous, Balmes, Zucconi e muitos outros autores religiosos; gostei também de ler a História eclesiástica, de Fleury, ignorando então que não convinha lê-la. Com maior fruto ainda li as obras de Cavalca, de Passavanti, de Segneri e toda a História da Igreja, de Henrion.
Direis talvez que, dando-me a tantas leituras, não podia dedicar-me muito aos estudos. Não foi assim. Minha memória continuava a favorecer-me, bastando apenas a leitura e explicação do texto em aula para cumprir meu dever. Portanto, todas as horas marcadas para o estudo podia empregá-las em leituras diversas. Os superiores sabiam de tudo e me deixavam fazer assim.
Um estudo ao qual muito me aplicava era o grego. No curso clássico já havia aprendido os primeiros elementos, estudado a gramática e feito as primeiras versões com a ajuda do dicionário. Apresentou-se uma boa ocasião que foi para mim muito proveitosa no caso. Pela ameaça do cólera do ano de 1836 em Turim, os jesuítas anteciparam a transferência dos alunos do colégio do Carmo para Montaldo.[130] A antecipação exigia o dobro do pessoal docente, porque continuavam as aulas para os externos que freqüentavam o colégio. O padre Cafasso, consultado, apresentou-me para uma aula de grego.[131] Isso fez com que me dedicasse seriamente a essa língua para poder ensiná-la. Mais: foi de grande proveito para mim o contato com um grande conhecedor do grego, um sacerdote da Companhia chamado Bini. Em apenas quatro meses, fez-me traduzir quase todo o Novo Testamento, os dois primeiros livros de Homero, com algumas odes de Píndaro e de Anacreonte. Admirando minha boa vontade, o digno sacerdote continuou a ajudar-me e por quatro anos lia todas as semanas uma composição grega ou alguma versão que lhe enviava, e que ele pontualmente corrigia e devolvia com oportunas observações. Dessa maneira pude chegar a traduzir grego como se traduzisse latim.
Foi também nesse tempo que estudei francês e elementos de hebraico. Essas três línguas, hebraico, grego e francês, foram as minhas línguas preferidas depois do latim e do italiano.
[130] Instituição de antiga data, o Colégio dos Nobres foi confiado aos jesuítas em 1818. Eles fizeram dele um colégio para alunos internos. Depois da partida dos religiosos de Santo Inácio, em 1848, as classes do colégio passaram a fazer parte do Colégio Nacional, criado naquele ano. Pelo fato de ter sede no ex-convento dos carmelitas, foi chamado Colégio do Carmo.
[131] "O reverendo senhor João Bosco de Castelnuovo d’Asti, Diocese de Turim, tendo ocupado o cargo de prefeito neste Real Colégio dos Nobres de Nossa Senhora do Carmo do dia 11 de julho a 17 outubro deste ano, a meu ver saiu-se muito bem, pela honestidade dos costumes, pela piedade para com Deus e a freqüência dos sacramentos. É o que atesto. Dando fé disso. Turim, 16 das calendas de novembro do ano de 1836. João Batista Dassi, SJ, Reitor, mp. Timbre do colégio" (cópia em ASC A 0200910 FDB 64 A2).
33. 9 ORDENAÇÕES SAGRADAS - SACERDÓCIO
9 ORDENAÇÕES SAGRADAS - SACERDÓCIO
No ano da morte de Comollo (1839), recebi a tonsura e as quatro ordens menores, no 3º ano de teologia.[132] Depois desse curso, veio-me a idéia de tentar o que naquele tempo mui raramente se permitia: adiantar um curso nas férias. Para tanto, sem dizer nada a ninguém, apresentei-me sozinho ao arcebispo Fransoni,[133] pedindo-lhe autorização para estudar os tratados do 4º ano naquelas férias e assim concluir o quinqüênio no ano escolar seguinte, 1840-1841. Aduzia minha avançada idade de 24 anos completos.
O santo prelado recebeu-me com muita bondade, e verificando o bom resultado dos exames prestados até então no seminário, concedeu-me o favor que pedia, com a condição de que desse exame de todos os tratados correspondentes ao curso que eu desejava ganhar. O teólogo Cinzano, meu vigário forâneo, ficou incumbido de executar a vontade do superior. Estudando, pude em dois meses terminar os tratados prescritos, e fui admitido ao subdiaconato nas ordenações das quatro têmporas de outono.
Agora que conheço as virtudes que se exigem para um passo tão importante, convenço-me de que não me achava bastante preparado; não havendo, porém, quem cuidasse diretamente da minha vocação, aconselhei-me com o padre Cafasso; disse-me ele que fosse para a frente, confiando na sua palavra. Nos dez dias de exercícios espirituais realizados na casa da Missão,[134] de Turim, fiz a confissão geral, para que o confessor pudesse ter uma idéia clara da minha consciência e dar-me oportunos conselhos. Desejava completar os estudos, mas tremia ao pensamento de comprometer-me por toda a vida; por isso não quis tomar uma resolução definitiva sem antes obter o pleno consentimento do confessor.
A partir de então esmerei-me quanto pude em pôr em prática o conselho do teólogo Borel: “com o recolhimento e a Comunhão freqüente se conserva e aperfeiçoa a vocação”. Voltando ao seminário, passei para o quinto ano, e fui nomeado prefeito,[135] o mais alto cargo a que possa chegar um seminarista.
No sábado Sitientes de 1841 recebi o diaconato e nas têmporas de verão fui ordenado sacerdote.
De verdadeira consternação para mim foi o dia em que tive de deixar definitivamente o seminário. Os superiores me amavam, e me haviam dado contínuos sinais de benevolência. Estava muito afeiçoado aos meus companheiros. Pode-se dizer que eu vivia para eles, e eles viviam para mim. Quem precisava fazer a barba ou a coroa, recorria a Bosco. Quem tinha necessidade de um barrete, de uma costura, remendar a roupa, procurava Bosco. Por isso tornou-se muito dolorosa para mim a separação de um lugar onde vivi seis anos, onde recebi educação, ciência, espírito eclesiástico e todos os sinais de bondade e afeto que se possam desejar.
O dia da minha ordenação era vigília da Santíssima Trindade;[136] celebrei minha primeira missa na igreja de São Francisco de Assis,[137] onde o padre Cafasso era diretor de estudos.
Esperavam-me ansiosamente em minha terra natal: havia anos não se celebrava aí uma missa nova. Preferi, todavia, celebrá-la em Turim, sem alarde, e posso dizer que foi esse o dia mais belo da minha vida. No memento daquela missa inolvidável procurei recordar devotamente todos os meus professores, benfeitores espirituais e temporais, e de modo especial o pranteado padre Calosso, que lembrei sempre como grande e insigne benfeitor.
Segunda-feira fui celebrar na igreja da Consolata,[138] para agradecer à excelsa Virgem Maria os incontáveis favores que me havia alcançado de seu divino Filho Jesus.
Terça-feira fui a Chieri e celebrei a missa na igreja de São Domingos,[139] onde vivia ainda meu antigo professor, o padre Giusiana, que me aguardava com paterno afeto. Durante a missa esteve sempre a chorar de comoção. Passei com ele todo aquele dia, que posso chamar dia de paraíso.
Quinta-feira, solenidade de Corpus Domini, satisfiz aos meus conterrâneos, cantei missa e presidi a procissão. O pároco convidou meus parentes para o almoço, bem como o clero e as autoridades do povoado. Todos tomaram parte na alegria, pois eu era muito querido de meus concidadãos e todos ficavam satisfeitos com tudo o que pudesse ser bom para mim. À noitinha voltei para minha família.
Quando, porém, cheguei perto de casa e vi o lugar do sonho dos 9 anos, não pude conter as lágrimas e disse: “Quão maravilhosos os desígnios da divina Providência! Realmente Deus tirou da terra um pobre menino para colocá-lo entre os príncipes do seu povo”.
[132] Dia 29 de março de 1840 (cf. ASC A 0200912 FDB D 11 e ASC 0200913 FDB D 12).
[133] Dom Luís Fransoni (1789-1862) nasceu em Gênova. Refugiou-se em Roma de 1797 a 1814. Foi ordenado sacerdote em Gênova em 1814 e entrou na Congregação dos Missionários Urbanos. Bispo de Fossano em 1821, foi nomeado administrador apostólico da Arquidiocese de Turim em 1831-1832. Arcebispo de Turim, foi exilado para a Suíça de 1848 a 1850. Expulso do reino da Sardenha, em 1850, passou a residir em Lião, França, até à morte.
[134] Os padres da Missão ocupavam o ex-convento das visitandinas com a igreja anexa da Visitação.
[135] Como se pode ver em P. Stella, Don Bosco nella storia economica e sociale (1815-1870), p. 413, eram 5 os seminaristas que tinham o cargo de prefeito: Tiago Bosco, Antônio Giacomelli, João Bosco, José Tepatti e Pedro Merla.
[136] Dom Bosco foi ordenado por dom Fransoni na igreja da Imaculada Conceição anexa ao palácio episcopal, no dia 5 de junho de 1841.
[137] A igreja de São Francisco de Assis, atendida pelos padres franciscanos conventuais até o período napoleônico, em 1608 adquiriu o aspecto atual. A fachada e o altar-mor são de Bernardo Vittone. Aí tinha sede a Congregação dos Artífices ligados à construção civil, da qual foi reitor primeiro o padre Guala e depois o padre Cafasso. Tal fato vai explicar por que os alunos do Oratório de Dom Bosco, nos primeiros tempos, trabalhavam quase todos na construção civil.
[138] As origens do santuário da Consolata de Turim remontam ao século V, com uma capela dedicada a Santo André. Em 1679, naquele lugar foi reconstruído o santuário à Virgem, com desenho de Guarini. Nos tempos de Dom Bosco se construiu o adro. O atual ícone da Virgem é uma artística reprodução da efígie de Santa Maria del Popolo de Roma. De 1834 a 1855 atenderam à igreja os oblatos de Maria Virgem que substituíram os cistercienses. De 1860 a 1866 entraram em seu lugar os franciscanos. Em 1869 o santuário foi confiado ao Colégio Eclesiástico. Alguns dos leigos que trabalhavam no Oratório de Valdocco, em seus inícios, eram provenientes dos círculos ligados ao Santuário da Consolata.
[139] A igreja de São Domingos existia já em 1260. Com fachada em estilo gótico e imponente campanário ela possui pinturas de Moncalvo e de outros. Justamente na terceira capela à direita, onde Dom Bosco celebrou sua terceira missa, encontra-se a tela de Nossa Senhora do Rosário, de Moncalvo.
34. 10 PRIMÍCIAS DO SAGRADO MINISTÉRIO - SERMÃO EM LAVRIANO E JOÃO BRINA
10 PRIMÍCIAS DO SAGRADO MINISTÉRIO - SERMÃO EM LAVRIANO E JOÃO BRINA
Naquele ano (1841), como meu pároco não tinha coadjutor, desempenhei esse cargo por cinco meses. Experimentava o maior prazer do mundo no trabalho. Pregava todos os domingos, visitava os doentes, administrava-lhes os santos sacramentos, com exceção da Penitência, porque não havia ainda prestado o exame de confissão. Acompanhava os enterros, mantinha em dia os livros paroquiais, dava atestados de pobreza ou de outro gênero.
Minha delícia, contudo, era ensinar catecismo aos meninos, entreter-me com eles, falar com eles. Vinham muitas vezes de Murialdo para visitar-me; quando ia em casa, estava sempre rodeado deles. Eles também começavam a fazer novos companheiros e amigos nos seus povoados. Saindo da casa paroquial estava sempre acompanhado de um bando de meninos e aonde quer que fosse rodeavam-me os meus amiguinhos, contentes como quê.
Tinha muita facilidade em expor a palavra de Deus, e por isso era amiudadas vezes procurado para pregar, fazer panegíricos nos povoados vizinhos. Convidaram-me a fazer o de São Benigno, em Lavriano,[140] em fins de outubro daquele ano. Aceitei de bom grado, porque se tratava do povoado do meu amigo e colega padre João Grassino,[141] atualmente pároco de Scalenghe.[142] Desejava abrilhantar a solenidade e por isso preparei e escrevi meu sermão em dialeto, bem esmerado, porém; estudei-o bem, certo de ganhar elogios. Deus, entretanto, queria dar uma terrível lição à minha vanglória. Era dia santo e por isso, antes de partir, tive de celebrar a missa em hora cômoda para o povo; foi então preciso servir-me de um cavalo para chegar a tempo de pregar. Percorrida metade do caminho a trote e galope, cheguei ao vale de Casalborgone, entre Cinzano e Bersano,[143] quando improvisamente um bando de pardais levantou-se de um milharal e o ruído das asas espantou o cavalo que pegou a correr desabaladamente estrada afora, por campos e prados. Mantive-me um pouco na sela, mas sentindo-a deslizar sob o ventre do animal tentei uma manobra de equitação. Todavia a sela, fora do lugar, lançou-me ao ar e caí de ponta-cabeça sobre um monte de pedras britadas.
Um homem, que da colina próxima assistiu ao lamentável acidente, correu com um empregado em minha ajuda. Encontrando-me sem sentidos, levou-me para sua casa e deitou-me na melhor cama que tinha. Dispensaram-me os mais caridosos cuidados e assim, depois de uma hora, voltei a mim e percebi que estava em casa alheia.
– Não se preocupe – disse meu hóspede –, não se inquiete por estar em casa alheia. Aqui nada lhe faltará. Já mandei chamar o médico; outro homem foi procurar o cavalo. Sou um camponês, mas provido de todo o necessário. Sente-se muito mal?
– Deus lhe recompense tanta caridade, meu bom amigo. Não acredito que o caso seja grave; talvez uma fratura na espádua que não posso mais mover. Onde estou?
– Na colina de Bersano, na casa de João Calosso,[144] apelidado Brina, seu humilde servo. Também eu girei pelo mundo e tive necessidade dos outros. Oh! quantas aventuras quando ia a feiras e mercados!
– Enquanto aguardamos o médico, conte-me alguma coisa.
– Oh! quanta coisa teria para contar. Ouça uma. Anos atrás, no outono, havia ido a Asti [145] com minha burrinha a fim de comprar provisões para o inverno. Na volta, assim que cheguei aos vales de Murialdo, o pobre animal, sobrecarregado, caiu num lamaçal e ficou imóvel no meio da estrada. Inútil todo esforço para levantá-lo. Era meia-noite, tempo escuro e chuvoso. Já não sabendo o que fazer, pus-me a gritar por socorro. Minutos depois, alguém de uma casa vizinha me ouviu. Veio um clérigo, um seu irmão, mais dois outros homens, portando tochas acesas. Ajudaram-me a descarregar a jumenta, tiraram-na da lama, e levaram-me a mim e todas as minhas coisas para a casa deles. Eu estava meio morto; tudo estava encharcado de lama. Limparam-me, recuperaram-me as forças com estupenda ceia, e depois me deram uma cama bem macia. Pela manhã antes de partir quis recompensá-los como cumpria. O clérigo recusou tudo, dizendo:
– E não pode acontecer que amanhã tenhamos necessidade do senhor?
Ao ouvir essas palavras, senti-me comovido e o outro percebeu minhas lágrimas.
– Sente-se mal? – disse-me.
– Não – respondi –, gostei tanto do que o senhor contou que fiquei comovido.
– Se soubesse o que fazer por aquela boa família! Que gente boa!
– Como se chamava?
– Família Bosco, apelidada de Boschetti. Mas por que é que está tão comovido? Acaso a conhece? Vive ainda e está bem aquele clérigo?
– Aquele clérigo, meu bom amigo, é o padre ao qual está a recompensar com juros o que fez pelo senhor. É o mesmo que o senhor trouxe para sua casa, colocou nesta cama. A divina Providência quis mostrar-nos com este fato que quem dá, recebe.
É fácil imaginar a maravilha, a alegria daquele bom cristão e minha, ao ver que na desgraça Deus me havia feito cair nas mãos de um amigo. A mulher, uma irmã, outros parentes e amigos fizeram grande festa ao saber que estava em casa a pessoa da qual tantas vezes haviam ouvido falar. Não houve atenção que não me prodigalizassem. O médico, ao chegar, constatou que não havia fraturas, e assim em poucos dias pude retomar o caminho de volta à minha terra no mesmo cavalo, que havia sido encontrado. João Brina acompanhou-me até minha casa, e enquanto viveu conservamos estreita amizade.
Depois desse aviso tomei a firme resolução de para o futuro preparar os sermões para a maior glória de Deus e não para parecer douto e letrado.
[140] Lavriano fica na estrada que de Turim leva a Casale, passando por Gassino e Brusasco.
[141] O padre João Grassino (1821-1902) nasceu em Lavriano. Entrou no seminário de Chieri em 1840. Uma vez ordenado sacerdote, freqüentou o Colégio Eclesiástico de Turim e mais tarde se uniu ao grupo de sacerdotes que trabalhavam nos oratórios. Campo de trabalho foram o Oratório do Anjo da Guarda e o de Valdocco. Depois trabalhou em Giaveno. Sua presença em Scalenghe é documentada apenas a partir do ano 1886.
[142] Scalenghe é um povoado na planície, a 27 quilômetros de Turim e 16 quilômetros a leste de Pinerolo.
[143] Casalborgone, aldeia do Baixo Monferrato a 33 quilômetros de Turim e 12 de Chivasso. Cinzano, localidade a 27 quilômetros de Turim. Berzano di San Pietro, a 7 quilômetros de Castelnuovo d’Asti.
[144] Talvez João Calosso, falecido em Berzano em 1860 e que tinha uma única filha.
[145] Asti, antiga cidade romana à esquerda do Tânaro. Foi ducado com os longobardos, condado com os carolíngios e depois senhoria eclesiástica. Município livre de 1095 a 1313, passou para o domínio dos Sabóia em 1575. Grande centro agrícola e comercial, está no meio de uma das mais famosas zonas produtoras de vinhos piemonteses. É capital de província e diocese.
34. 10 PRIMÍCIAS DO SAGRADO MINISTÉRIO - SERMÃO EM LAVRIANO E JOÃO BRINA
10 PRIMÍCIAS DO SAGRADO MINISTÉRIO - SERMÃO EM LAVRIANO E JOÃO BRINA
Naquele ano (1841), como meu pároco não tinha coadjutor, desempenhei esse cargo por cinco meses. Experimentava o maior prazer do mundo no trabalho. Pregava todos os domingos, visitava os doentes, administrava-lhes os santos sacramentos, com exceção da Penitência, porque não havia ainda prestado o exame de confissão. Acompanhava os enterros, mantinha em dia os livros paroquiais, dava atestados de pobreza ou de outro gênero.
Minha delícia, contudo, era ensinar catecismo aos meninos, entreter-me com eles, falar com eles. Vinham muitas vezes de Murialdo para visitar-me; quando ia em casa, estava sempre rodeado deles. Eles também começavam a fazer novos companheiros e amigos nos seus povoados. Saindo da casa paroquial estava sempre acompanhado de um bando de meninos e aonde quer que fosse rodeavam-me os meus amiguinhos, contentes como quê.
Tinha muita facilidade em expor a palavra de Deus, e por isso era amiudadas vezes procurado para pregar, fazer panegíricos nos povoados vizinhos. Convidaram-me a fazer o de São Benigno, em Lavriano,[140] em fins de outubro daquele ano. Aceitei de bom grado, porque se tratava do povoado do meu amigo e colega padre João Grassino,[141] atualmente pároco de Scalenghe.[142] Desejava abrilhantar a solenidade e por isso preparei e escrevi meu sermão em dialeto, bem esmerado, porém; estudei-o bem, certo de ganhar elogios. Deus, entretanto, queria dar uma terrível lição à minha vanglória. Era dia santo e por isso, antes de partir, tive de celebrar a missa em hora cômoda para o povo; foi então preciso servir-me de um cavalo para chegar a tempo de pregar. Percorrida metade do caminho a trote e galope, cheguei ao vale de Casalborgone, entre Cinzano e Bersano,[143] quando improvisamente um bando de pardais levantou-se de um milharal e o ruído das asas espantou o cavalo que pegou a correr desabaladamente estrada afora, por campos e prados. Mantive-me um pouco na sela, mas sentindo-a deslizar sob o ventre do animal tentei uma manobra de equitação. Todavia a sela, fora do lugar, lançou-me ao ar e caí de ponta-cabeça sobre um monte de pedras britadas.
Um homem, que da colina próxima assistiu ao lamentável acidente, correu com um empregado em minha ajuda. Encontrando-me sem sentidos, levou-me para sua casa e deitou-me na melhor cama que tinha. Dispensaram-me os mais caridosos cuidados e assim, depois de uma hora, voltei a mim e percebi que estava em casa alheia.
– Não se preocupe – disse meu hóspede –, não se inquiete por estar em casa alheia. Aqui nada lhe faltará. Já mandei chamar o médico; outro homem foi procurar o cavalo. Sou um camponês, mas provido de todo o necessário. Sente-se muito mal?
– Deus lhe recompense tanta caridade, meu bom amigo. Não acredito que o caso seja grave; talvez uma fratura na espádua que não posso mais mover. Onde estou?
– Na colina de Bersano, na casa de João Calosso,[144] apelidado Brina, seu humilde servo. Também eu girei pelo mundo e tive necessidade dos outros. Oh! quantas aventuras quando ia a feiras e mercados!
– Enquanto aguardamos o médico, conte-me alguma coisa.
– Oh! quanta coisa teria para contar. Ouça uma. Anos atrás, no outono, havia ido a Asti [145] com minha burrinha a fim de comprar provisões para o inverno. Na volta, assim que cheguei aos vales de Murialdo, o pobre animal, sobrecarregado, caiu num lamaçal e ficou imóvel no meio da estrada. Inútil todo esforço para levantá-lo. Era meia-noite, tempo escuro e chuvoso. Já não sabendo o que fazer, pus-me a gritar por socorro. Minutos depois, alguém de uma casa vizinha me ouviu. Veio um clérigo, um seu irmão, mais dois outros homens, portando tochas acesas. Ajudaram-me a descarregar a jumenta, tiraram-na da lama, e levaram-me a mim e todas as minhas coisas para a casa deles. Eu estava meio morto; tudo estava encharcado de lama. Limparam-me, recuperaram-me as forças com estupenda ceia, e depois me deram uma cama bem macia. Pela manhã antes de partir quis recompensá-los como cumpria. O clérigo recusou tudo, dizendo:
– E não pode acontecer que amanhã tenhamos necessidade do senhor?
Ao ouvir essas palavras, senti-me comovido e o outro percebeu minhas lágrimas.
– Sente-se mal? – disse-me.
– Não – respondi –, gostei tanto do que o senhor contou que fiquei comovido.
– Se soubesse o que fazer por aquela boa família! Que gente boa!
– Como se chamava?
– Família Bosco, apelidada de Boschetti. Mas por que é que está tão comovido? Acaso a conhece? Vive ainda e está bem aquele clérigo?
– Aquele clérigo, meu bom amigo, é o padre ao qual está a recompensar com juros o que fez pelo senhor. É o mesmo que o senhor trouxe para sua casa, colocou nesta cama. A divina Providência quis mostrar-nos com este fato que quem dá, recebe.
É fácil imaginar a maravilha, a alegria daquele bom cristão e minha, ao ver que na desgraça Deus me havia feito cair nas mãos de um amigo. A mulher, uma irmã, outros parentes e amigos fizeram grande festa ao saber que estava em casa a pessoa da qual tantas vezes haviam ouvido falar. Não houve atenção que não me prodigalizassem. O médico, ao chegar, constatou que não havia fraturas, e assim em poucos dias pude retomar o caminho de volta à minha terra no mesmo cavalo, que havia sido encontrado. João Brina acompanhou-me até minha casa, e enquanto viveu conservamos estreita amizade.
Depois desse aviso tomei a firme resolução de para o futuro preparar os sermões para a maior glória de Deus e não para parecer douto e letrado.
[140] Lavriano fica na estrada que de Turim leva a Casale, passando por Gassino e Brusasco.
[141] O padre João Grassino (1821-1902) nasceu em Lavriano. Entrou no seminário de Chieri em 1840. Uma vez ordenado sacerdote, freqüentou o Colégio Eclesiástico de Turim e mais tarde se uniu ao grupo de sacerdotes que trabalhavam nos oratórios. Campo de trabalho foram o Oratório do Anjo da Guarda e o de Valdocco. Depois trabalhou em Giaveno. Sua presença em Scalenghe é documentada apenas a partir do ano 1886.
[142] Scalenghe é um povoado na planície, a 27 quilômetros de Turim e 16 quilômetros a leste de Pinerolo.
[143] Casalborgone, aldeia do Baixo Monferrato a 33 quilômetros de Turim e 12 de Chivasso. Cinzano, localidade a 27 quilômetros de Turim. Berzano di San Pietro, a 7 quilômetros de Castelnuovo d’Asti.
[144] Talvez João Calosso, falecido em Berzano em 1860 e que tinha uma única filha.
[145] Asti, antiga cidade romana à esquerda do Tânaro. Foi ducado com os longobardos, condado com os carolíngios e depois senhoria eclesiástica. Município livre de 1095 a 1313, passou para o domínio dos Sabóia em 1575. Grande centro agrícola e comercial, está no meio de uma das mais famosas zonas produtoras de vinhos piemonteses. É capital de província e diocese.
35. 11 COLÉGIO ECLESIÁSTICO DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS
11 COLÉGIO ECLESIÁSTICO DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS
Acabadas as férias, ofereciam-me três empregos: professor em casa de um senhor genovês, com o salário de 1 mil francos anuais; capelão de Murialdo, onde, pelo grande desejo de me verem com eles, os bons camponeses dobravam o estipêndio dos capelães anteriores;[146] vice-pároco na minha terra. Antes de tomar uma resolução definitiva fui a Turim para aconselhar-me com o padre Cafasso, que se tornara desde alguns anos meu guia nas coisas espirituais e temporais. O santo sacerdote ouviu tudo, as ofertas de remuneração, a insistência de parentes e amigos, meu grande desejo de trabalhar. Sem hesitar um instante dirigiu-me estas palavras:
– O senhor tem necessidade de estudar moral e pregação.[147] Recuse por ora qualquer proposta e venha ao Colégio Eclesiástico.[148]
Segui prazerosamente o sábio conselho, e a 3 de novembro de 1841 entrei para o referido Colégio.
O Colégio Eclesiástico vem a ser um complemento dos estudos teológicos, porquanto nos nossos seminários estuda-se somente a dogmática especulativa; na moral estudam-se apenas as questões disputadas. Nele aprende-se a ser padre. Meditação, leitura, duas conferências por dia, aulas de pregação, vida recolhida, toda comodidade para estudar, leitura de bons autores, eram as ocupações às quais qualquer um devia aplicar-se a fundo.[149]
Duas celebridades estavam naquele tempo à frente de tão útil instituto: o teólogo Luís Guala [150] e o padre José Cafasso. O teólogo Guala era o fundador da obra. Homem desinteressado, rico de ciência, prudência e coragem, fizera-se tudo para todos no tempo do governo de Napoleão I. Para que os jovens levitas pudessem, ao terminar os estudos, aprender a vida prática do sagrado ministério, fundou aquele maravilhoso viveiro, que tanto bem fez à Igreja, sobretudo extirpando algumas raízes de jansenismo que ainda persistiam entre nós.[151]
Entre outras questões agitava-se muito a do probabilismo e do probabiliorismo.[152] À frente dos primeiros achavam-se Alasia, Antoine [153]" (ASC A 1110701, p. 3 FDB 618 D 7). ] e outros rigorosos autores, cuja doutrina, a do probabiliorismo, podia levar ao jansenismo.
Os probabilistas seguiam a doutrina de Santo Afonso, que agora foi proclamado doutor da Santa Igreja.[154] 2º Não afirmar que a Igreja aprovou todas e cada uma das doutrinas de Santo Afonso de Ligório no sentido de que quem segue todas e cada uma destas doutrinas segue em tudo a doutrina da Igreja (Lettere pastorali, commemorazioni funebri e panegirici di Monsignor Lorenzo Gastaldi… Turim, Tip. B. Canonica e filhos, herdeiros Binelli, 1883, p. 599).] Sua autoridade foi por assim dizer referendada pelo Papa, uma vez que a Igreja afirmou que se podem ensinar, pregar e praticar suas doutrinas, nada havendo nelas que mereça censura.
O teólogo Guala situou-se com firmeza entre os dois partidos, e, pondo como centro de qualquer opinião a caridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, conseguiu aproximar os extremos. As coisas chegaram a tal ponto que, graças ao teólogo Guala, Santo Afonso tornou-se o mestre das nossas escolas com as vantagens por tanto tempo desejadas, cujos salutares efeitos hoje experimentamos.[155] Se tais virtudes abundem entre os nossos diocesanos que hoje freqüentam os sacramentos e os exercícios de devoção é justamente o que desejamos conhecer por meio dos nossos colaboradores, que têm longa experiência no ministério eclesiástico" (ASC A 1110701 FDB 618 D 7 e 618 D 8). Entre os que tinham sido alunos do Colégio Eclesiástico, encontravam-se na diocese de Turim 4 párocos, 5 reitores de igrejas, 8 vigários cooperadores e 4 mestres ou capelães (cf. AAT 19.15 Nota dei Rev.di Ecclesiastici già allievi nel Convito [sic] di S. Francesco di Torino diretto daí Sig. Teol.o Coll.o Luigi e passati ad impieghi).]
Braço direito de Guala era o padre Cafasso. Com sua virtude a toda a prova, com sua calma prodigiosa, sua perspicácia e prudência pôde suavizar as asperezas que ainda permaneciam em alguns probabilioristas com relação aos seguidores de Santo Afonso.
No padre turinense teólogo Félix Golzio,[156] também do Colégio, escondia-se verdadeira mina de ouro. Na sua vida modesta pouco barulho fez; mas com seu trabalho indefesso, com sua humildade e ciência era um verdadeiro apoio, ou melhor, o braço direito de Guala e Cafasso.
Prisões, hospitais, púlpitos, institutos de beneficência, doentes em suas próprias casas, cidades, povoados e, podemos dizer, os palácios dos grandes e os tugúrios dos pobres experimentaram os salutares efeitos do zelo desses três luminares do clero de Turim.
Eram eles os três modelos que a divina Providência me oferecia, e dependia só de mim seguir suas pegadas, doutrina e virtudes.
O padre Cafasso, meu guia havia seis anos, foi também meu diretor espiritual, e se fiz algum bem, devo-o a este digno eclesiástico, em cujas mãos coloquei minhas decisões, estudos e atividades.
Começou primeiro por levar-me às prisões,[157] onde pude logo verificar como é grande a malícia e a miséria dos homens. Ver turmas de jovens, de 12 a 18 anos,[158] todos eles sãos, robustos, e de vivo engenho, mas sem nada fazer, picados pelos insetos, à míngua de pão espiritual e temporal, foi algo que me horrorizou. O opróbrio da pátria, a desonra das famílias, a infâmia aos próprios olhos personificavam-se naqueles infelizes.[159]: "Para que tal desgraça não vos aconteça a vós, aqui vos proponho uma breve e fácil norma de vida, mas suficiente para vos tornardes a consolação dos vossos pais, a honra da pátria, bons cidadãos na terra e mais tarde venturosos habitantes do Céu". "Entre 1831 e 1846 o furto simples correspondia a cerca de 30% dos crimes punidos pelo vicariato de polícia, seguidos por uns 20% por ociosidade, vagabundagem, mau-caráter, mendicidade e, a distância maior (a relação com os precedentes era de 5 para 1), por violências contra a pessoa, das quais a metade era constituída por ameaças, pancadas, rixas e brigas… deste ponto de vista, Turim era uma cidade de deserdados, mais que de criminosos…" (U. Levra, "Il bisogno, il castigo, la pietà, Torino 1814-1848". In: G. Bracco [ed.], Torino e Don Bosco. Turim, ASCT, 1989, I, p. 76). ] Qual não foi, porém, minha admiração e surpresa quando percebi que muitos deles saíam com firme propósito de vida melhor e, não obstante, voltavam logo à prisão, da qual haviam saído poucos dias antes.
Nessas ocasiões descobri que muitos voltavam àquele lugar porque abandonados a si próprios. “Quem sabe – dizia de mim para mim –, se tivessem lá fora um amigo que tomasse conta deles, os assistisse e instruísse na religião nos dias festivos, quem sabe não se poderiam manter afastados da ruína ou pelo menos não diminuiria o número dos que retornam ao cárcere?”[160], Don Bosco educatore, p. 108. Em 1846 constituía-se em Turim a Régia Sociedade de Patronato para Jovens Libertados da Casa de Educação Correcional, cujo escopo era preservar dos perigos de uma recaída os egressos da Generala, procurando para eles os meios de completar sua instrução religiosa, civil e profissional (cf. C. Felloni - R. Audísio, "I giovani discoli". In: G. Bracco [ed.], Torino e Don Bosco. Turim, ASCT, 1989, I, p. 119, nota 92). Dom Bosco foi um dos sócios fundadores.]
Comuniquei esse pensamento ao padre Cafasso, e com o seu conselho e com suas luzes pus-me a estudar a maneira de levá-lo a efeito, deixando o êxito nas mãos do Senhor, pois sem ele são inúteis todos os esforços dos homens.
[146] Spírito Sartoris (1784-1836), de Turim, tinha deixado rendas no valor de 800 liras anuais para um eventual capelão (cf. P. Stella, Don Bosco nella storia economica e sociale, p. 34-35).
[147] "A necessidade de ter bons eclesiásticos ministros da Igreja, e a calamidade dos tempos que fizeram encalhar todos os meios para isso, fizeram refletir. Sempre se reconheceu ser necessário aos eclesiásticos, depois do quinqüênio de teologia, o estudo da moral prática. Ser necessário para os jovens eclesiásticos algum exercício e preparação para o púlpito antes de nele se encontrarem obrigados por razão de emprego, e por isso foram tomadas providências pelos nossos reverendíssimos arcebispos a esse respeito" (AAT 19.15 Convitto ecclesiastico e altre congregazioni di sacerdoti, Regolamento del Convitto Ecclesiastico, Motivi dellŽerezone del Convitto, segunda versão com as indulgências de 1842).
[148] As práticas para a criação do Colégio Eclesiástico e a sua sistematização em São Francisco de Assis se podem encontrar em AAT 19.15 Convitto ecclesiastico e altre congregazioni di sacerdoti. Podem ser resumidas assim: 1808, o teólogo Guala dá início à Conferência Moral privada de São Francisco de Assis; 1814 as patentes reais reconhecem Guala como chefe e diretor de Conferência Moral: a de São Francisco de Assis passa a ter efeitos jurídicos e valor iguais aos das conferências existentes no seminário e na universidade; 1816: memorial com o qual Pio Bruno Lanteri pede a criação do Colégio Eclesiástico em São Francisco de Assis; 1817: pró-memória de Guala ao Real Economato Eclesiástico no mesmo sentido. Foi aceito no mesmo dia; 1822: patentes reais com as quais se entrega ao Colégio Eclesiástico a parte ainda não vendida do convento dos franciscanos; 1823: patentes reais com as quais se reconhece ao Colégio eclesiástsico a capacidade de adquirir bens e aceitar legados; decreto do arcebispo dom Columbano Chiaverotti que nomeia Guala reitor do Colégio Eclesiástico.
[149] Quando Dom Bosco escreve estas linhas, já existia a polêmica de dom Lourenço Gastaldi com o Colégio eclesiástsico. Talvez isso explique a defesa apaixonada que Dom Bosco faz dele (veja a esse respeito G. Tuninetti, Lorenzo Gastaldi 1815-1883, vol. II, p. 68-70).
[150] O teólogo Luís Guala (1775-1848) nasceu em Turim. Doutorou-se em teologia pela Real Universidade de Turim, de cujo Colégio Teológico fez parte. Discípulo de Pio Bruno Lanteri, entrou na Amizade Cristã em 1804. Durante o tempo em que Pio VII esteve preso em Savona, tomou parte - com o teólogo Daverio, o cavalheiro Renato D’Agliano e o banqueiro Marcos Gonella e muitos outros - de um Comitê que, sob a guia de Lanteri, se mantinha em contato com o Pontífice, o informava e o sustinha também materialmente. Denunciados às autoridades francesas, Lanteri e Daverio foram punidos. Graças a um equívoco da polícia, que buscava o banqueiro Guala e o teólogo Gonella, estes dois conseguiram escapar. De 1814 a 1836 foi administrador do santuário de Santo Inácio acima de Lanzo, do qual foi reitor de 1836 a 1848.
[151] O jansenismo é um conjunto de doutrinas rígidas sobre a graça, o livre arbítrio e as condições para receber os sacramentos, com declarada hostilidade à autoridade do Papa. Fundamenta-se no Augustinus, obra póstuma de Cornélio Jansênio (1585-1638), bispo de Ypres, publicada em 1640. Durante o domínio napoleônico, os círculos jansenistas criaram força no Piemonte. No tempo a que Dom Bosco se refere, tinha ainda alguma força. Sobre toda esta questão, veja P. Stella, Don Bosco nella religiosità cattolica, vol. I, p. 85-95. Exemplos de exercícios morais preparados pelo teólogo Guala podem ser vistos em AAT 19.15 Convitto ecclesiastico e altre congregazioni di sacerdoti.
[152] O probabilismo e o probabiliorismo são dois sistemas de teologia moral. O primeiro ensina que é lícita a ação que seja validamente provável, isto é, apoiada em razões ou autores tais que mereça a aprovação de uma pessoa prudente; ao passo que o probabiliorismo ensina que não é licito seguir uma opinião provável quando houver outra mais provável. José Antônio Alasia (1731-1812) e Paulo Gabriel Antoine (1679-1743), aqui mencionados, eram probabilioristas e jansenizantes. Tanto em moral como em ascética, Dom Bosco muito deve a Santo Afonso.
[153] Em 20 de novembro de 1875, escrevendo em forma privada aos "cônegos, párocos e outros sacerdotes adidos ao ministério na Arquidiocese de Turim" dom Gastaldi louva quanto fizeram os seus predecessores desde dom Gattinara até dom Columbano, os quais "tinham procurado que se adotassem as doutrinas de São Carlos Borromeu, São Francisco de Sales, São Leonardo de Porto Maurício, do Beato Sebastião Valfrè e do célebre Antoine da Companhia de Jesus, seguido fielmente por Alásia […
[154] Dia 18 de dezembro de 1875, em sua carta sobre o ensino da teologia moral, dirigida aos "sacerdotes diretores das Conferências Morais na Arquidiocese de Turim", dom Gastaldi escrevia: "As minhas ditas intenções são: […
[155] Na carta de 20 de novembro de 1875, dom Gastaldi convidada a exprimir um juízo de consciência sobre as novas doutrinas: "Observe-se bem: não perguntamos se de dez, quinze ou vinte anos para cá tenha crescido a freqüência aos sacramentos, aos sermões, aos exercícios de piedade numa parte dos católicos; porque já sabemos que a vossa resposta será afirmativa; mas perguntamos, se entre os paroquianos de ambos os sexos, especialmente da idade jovem, que freqüentam os sacramentos e as práticas de piedade mais do que se fazia tempos atrás, veja-se ainda, não direi mais, mas pelo menos o mesmo grau de castidade, paciência, generosidade, desinteresse, resignação à vontade de Deus, de modéstia, de mortificação interna e externa, facilidade para perdoar as ofensas, docilidade, obediência aos pais quanto se via outrora. […
[156] O teólogo Félix Gólzio (1808-1873), reitor do santuário da Consolata e do anexo Colégio Eclesiástico, pertencia ao Seminário Consiliário de Turim. Como já dissemos, sucedeu como confessor de Dom Bosco ao padre Cafasso, falecido em 1860. Estava persuadido de que Deus conduzia seu penitente por caminhos extraordinários, e aprovava seu método de direção espiritual. Dirigiu o Colégio Eclesiástico de 1867 até seu fechamento, por ordem de dom Gastaldi, em 1876. Em AAT 19.15 pode-se ver parte da correspondência do teólogo Gólzio, inclusive cartas a dom Gastaldi de 1869 a 1872.
[157] Cinco eram os cárceres existentes em Turim: o cárcere do Magistrado de apelo, vulgarmente chamado de Senado; a casa correcional; o cárcere do antigo vicariato, no palácio das Torres; aquele a serviço da questura para os homens; e o cárcere chamado das Forçadas para as mulheres. Dom Bosco ia ao cárcere do Senado e à casa correcional.
[158] De acordo com o Código Penal, "o menor de 14 anos, quando tiver agido sem discernimento, não estará sujeito a pena". Só em 1845, com a abertura da Generala, começou-se a colocar em prática quanto prescrito pelo artigo 28 do Código Penal, que impunha a separação dos delinqüentes de tenra idade ou de tênue discernimento, dos demais prisioneiros (cf. Codice penale per gli Stati di S. M. il Re di Sardegna. Turim, Stamperia Reale, 1839, artigos 93, 94, 28).
[159] Confronte-se com quanto Dom Bosco escreve em O jovem instruído (p. 8, OE II, p. [187
[160] "Estes jovens têm verdadeiramente necessidade de uma mão amiga, que cuide deles, os cultive, os guie à virtude, os afaste do vício" ("Piano di Regolamento per l’Oratorio maschile di San Francesco di Sales in Torino nella regione di Valdocco". In: P. Braido [ed.
12 FESTA DA IMACULADA CONCEIÇÃO E INÍCIO DO ORATÓRIO FESTIVO[161]
Mal entrei no Colégio de São Francisco, vi-me logo cercado por um bando de meninos que me acompanhavam em ruas e praças, até mesmo na sacristia da igreja do instituto. Não podia, entretanto, cuidar deles diretamente por falta de local. Um feliz encontro proporcionou-me a oportunidade de tentar a concretização do projeto em favor dos meninos que erravam pelas ruas da cidade, sobretudo dos que deixavam as prisões.
No dia solene da Imaculada Conceição de Maria, 8 de dezembro de 1841, estava, à hora marcada, vestindo-me com os sagrados paramentos para celebrar a santa missa. O sacristão José Comotti, vendo um rapazinho a um canto, convidou-o a ajudar-me a missa.
– Não sei – respondeu ele, todo mortificado.
– Vem – replicou o outro –, tens de ajudar.
– Não sei – retorquiu o rapaz – nunca ajudei.
– És um animal – disse o sacristão enfurecido. – Se não sabes ajudar a missa, que vens fazer na sacristia?
E, assim dizendo, tomou do espanador e começou a desferir golpes nas costas e na cabeça do pobrezinho.
Enquanto este fugia, gritei em voz alta:
– Que está fazendo? Por que bater nele desse jeito? Que é que ele fez?
– Se não sabe ajudar a missa, por que vem à sacristia?
– Mas você agiu mal.
– E que lhe importa?
– Importa muito, é um meu amigo; chame-o imediatamente, preciso falar com ele.
– Oi, rapaz! – pôs-se a chamar; e correndo atrás dele e garantindo-lhe melhor tratamento trouxe-o para junto de mim,
O rapaz aproximou-se a tremer e a chorar pelas pancadas recebidas.
– Já ouviste missa? – disse-lhe com a maior amabilidade que pude.
– Não – respondeu.
– Vem então ouvi-la. Depois gostaria de falar de um negócio que vai-te agradar.
Prometeu. Era meu desejo aliviar o sofrimento do pobrezinho e não deixá-lo com a má impressão que lhe causara o sacristão.
Celebrada a santa missa e terminada a ação de graças, levei o rapaz ao coro. Com um sorriso no rosto e garantindo-lhe que já não devia recear novas pancadas, comecei a interrogá-lo assim:
– Meu bom amigo, como te chamas?[162]
– Bartolomeu Garelli.[163]
– De onde és?
– De Asti.
– Tens pai?
– Não, meu pai morreu.
– E tua mãe?
– Morreu também.
– Quantos anos tens?
– Dezesseis.
– Sabes ler e escrever?
– Não sei nada.[164]
– Já fizeste a Primeira Comunhão?
– Ainda não.
– Já te confessaste?
– Sim, quando era pequeno.
– E agora, vais ao catecismo?
– Não tenho coragem.
– Por quê?
– Porque meus companheiros mais pequenos sabem o catecismo, e eu, tão grande, não sei nada. Por isso fico com vergonha de ir a essas aulas.
– Se te desse catecismo à parte, virias?
– Então sim.
– Gostarias que fosse aqui mesmo?
– Com muito gosto, contanto que não me batam.
– Fica sossegado, que ninguém te maltratará. Pelo contrário, serás meu amigo. Terás de haver-te só comigo e mais ninguém. Quando queres começar?
– Quando o senhor quiser.
– Esta tarde serve?
– Sim.
– E se fosse agora mesmo?
– Sim, agora mesmo. Que bom!
Levantei-me e fiz o sinal-da-cruz para começar; meu aluno não o fez porque não sabia. Naquela primeira aula procurei ensinar-lhe a fazer o sinal-da-cruz e a conhecer Deus Criador e o fim por que nos criou. Embora tivesse pouca memória, conseguiu, com assiduidade e atenção, aprender em poucos domingos as coisas necessárias para fazer uma boa Confissão e, pouco depois, a sagrada Comunhão.
A esse primeiro aluno [165] juntaram-se outros mais. Durante aquele inverno limitei-me a alguns adultos que tinham necessidade de catequese especial, sobretudo aos que saíam da cadeia. Pude então constatar que os rapazes que saem de lugares de castigo, caso encontrem mão bondosa que deles cuide, os assista nos domingos, procure arranjar-lhes emprego com bons patrões e visitá-los de quando em quando ao longo da semana, tais rapazes dão-se a uma vida honrada, esquecem o passado, tornam-se bons cristãos e honestos cidadãos. Essa é a origem do nosso Oratório,[166] que, abençoado por Deus, teve um desenvolvimento que então eu não podia imaginar.
[161] Do mesmo Dom Bosco provêem duas tradições diversas a respeito do início de seu Oratório festivo. A primeira, mais antiga, é trazida pelo Cenno storico dellOratorio di S. Francesco di Sales, de 1854: "Este Oratório, ou seja, reunião de jovens nos dias festivos, começou na igreja de São Francisco de Assis […comecei com o reunir no mesmo lugar 2 jovens adultos, gravemente necessitados de instrução religiosa. A estes se uniram outros e no decorrer de 1842 o número chegou a 20 e às vezes a 25" (G. Bosco, Cenno storico. In: P. Braido [ed.], Don Bosco educatore, p. 110-111). A segunda, mais recente, aparece já nas Crônicas de Ruffino e fala somente de Bartolomeu Garelli. Ruffino, porém, deixa em branco o ano em que teria acontecido o encontro de Garelli com Dom Bosco: "Origem do Oratório. No ano […] Dom Bosco se encontrava no Colégio Eclesiástico de São Francisco de Assis. No dia da festa da Imaculada Conceição, vestia-se para celebrar a santa missa, entrementes um jovem lá pelos 17 ou 18 anos estava na sacristia, esperando para ouvir a santa missa […]" (R1 1860, p. 28-30 FDB 1206 C 9 - C 11). A história oficial dos salesianos, com a publicação, no BS, da História do Oratório de São Francisco de Sales, adotou esta segunda tradição.]
[162] "- Como te chamas? - N. N." (R1 1860, p. 30, FDB 1206 C 10).
[163] Dom Bosco provavelmente italianizou em Garelli o sobrenome Carel.
[164] Lemoyne (MB II, p. 76) diz que o santo, depois do "não sei nada", prosseguiu assim o diálogo: "- Sabes cantar? - Não. - Sabes assobiar? E então o menino sorriu". Era o que Dom Bosco queria: conquistar a confiança.
[165] Garelli trouxe logo outros meninos para o catecismo e freqüentou-o por algum tempo, mas não se sabe até quando. Lemoyne afirma que o padre Anfossi, então seminarista no Oratório, e outros viram-no por ali depois de 1855. Posteriormente perdeu-se lhe a pista. "Garelli aparece aos olhos de Dom Bosco como o apelo de toda a juventude necessitada e abandonada" (Fr. Veuillot, Saint Jean Bosco et les salésiens. Paris, 1943, p. 22).
[166] Quando, em 1869, Dom Bosco pedia cartas de recomendação dos prelados para alcançar a aprovação pontifícia da Congregação Salesiana, incluía nas petições que lhes fazia um resumo histórico desde as origens. Começava assim: "Esta Sociedade era no princípio um simples catecismo". Era, com efeito, o catecismo iniciado a 8 de dezembro de 1841 e continuado na mesma igreja, e que dali passou a outros lugares, com a colaboração de leigos e eclesiásticos e com a aprovação do arcebispo, sob a direção do santo. Ele próprio assinala uma circunstância desse primeiro catecismo. Depois do sinal-da-cruz, rezou a Ave-Maria, e, a 8 de dezembro de 1885, revelou a eficácia dessa oração. Dava uma conferência no Oratório aos sócios reunidos e assim se expressou: "Todas as bênçãos que nos choveram do céu são fruto da Ave-Maria rezada com fervor e reta intenção junto com o jovem Bartolomeu Garelli na igreja de São Francisco de Assis" (MB XVII, p. 510). Por esse motivo, os salesianos datam a origem da Sociedade a 8 de dezembro de 1841.
13 O ORATÓRIO EM 1842
Durante o inverno preocupei-me em consolidar o pequeno Oratório. Embora minha finalidade fosse recolher somente os meninos em maior perigo, de preferência os que deixavam a cadeia, todavia para ter uma base sobre a qual fundar a disciplina e a moralidade convidei alguns outros de boa conduta e já instruídos. Eles me ajudavam a manter a ordem e também a entoar cantos sacros; percebi assim desde o princípio, que sem a distribuição de livros de canto e de leitura amena, as reuniões nos dias de guarda seriam como um corpo sem alma.
Na festa da Purificação (2 de fevereiro de 1842), que então era festa de preceito,[167]. Turim, Eredi Avondo [1788], p. 288, e a circular do vigário geral Celestino Fissore, de 16 de setembro de 1858, p. 3-4.] já tinha uns 20 meninos, com os quais pudemos pela primeira vez cantar “Louvemos Maria”.
Na Festa da Anunciação já éramos 30. Nesse dia fez-se uma festinha. Pela manhã os alunos aproximaram-se dos santos sacramentos; à tarde entoou-se um canto e depois do catecismo narrou-se um exemplo à guisa de sermão. Como o pequeno coro em que até então nos reuníamos se havia tornado muito acanhado, mudamo-nos para a capela, perto da sacristia.
O Oratório funcionava assim: em todos os domingos e dias santos dava-se comodidade para se aproximarem dos santos sacramentos da Confissão e da Comunhão; marcava-se ainda um sábado e um domingo por mês para cumprir esse dever religioso. À tarde, em hora determinada, entoava-se um cântico, dava-se catecismo, em seguida explicava-se um exemplo e por vezes distribuía-se alguma coisa a todos, outras por sorteio.
Entre os jovens que freqüentaram o Oratório nos seus inícios, há que assinalar José Buzzetti,[168] que foi de assiduidade exemplar. Afeiçoou-se tanto a Dom Bosco e às reuniões dominicais, que renunciou à ida para casa com a família (em Caronno Ghiringuello), como costumavam fazer os demais irmãos e amigos. Distinguiam-se ainda seus irmãos Carlos,[169] Ângelo, Josué; João Gariboldi e seu irmão, então simples ajudantes de pedreiro e agora mestres-de-obras.
De modo geral o Oratório compunha-se de canteiros, pedreiros, estucadores, calceteiros, rebocadores e de outros que vinham de povoados distantes. Como não conheciam as igrejas nem ninguém, expunham-se ao perigo de perverter-se, especialmente nos domingos.
O bom teólogo Guala e o padre Cafasso mostravam-se contentes com essas reuniões de meninos e forneciam-me de bom grado santinhos, folhetos, opúsculos, medalhas e crucifixos para presente. Por vezes proporcionaram-me recursos para vestir alguns dos mais necessitados e dar pão a outros por várias semanas, até que pudessem com o trabalho ganhar o próprio sustento. Mais ainda, como o número de meninos tivesse crescido muito, permitiram que reunisse algumas vezes o meu pequeno exército para brincar no pátio contíguo. Houvesse mais espaço, teríamos chegado bem depressa a várias centenas; mas tivemos de nos contentar com uns 80.
Quando os meninos se aproximavam dos santos sacramentos, o próprio teólogo Guala ou o padre Cafasso costumavam vir visitar-nos e narrar algum episódio edificante.
Desejando que se fizesse uma bela festa em honra de Sant’Ana, padroeira dos pedreiros, o teólogo convidou-os todos após as funções da manhã a tomar café com ele. Reuniram-se quase uns 100 na grande sala de conferências. Ali foram abundantemente servidos de café, leite, chocolate, pãezinhos, roscas, brioches, pastas e outros pães de que tanto gostam os meninos. Pode-se imaginar a grande repercussão dessa festa, e quantos teriam vindo se o local permitisse!
Consagrava o domingo inteiro à assistência dos meus meninos; durante a semana ia visitá-los em seus trabalhos nas oficinas e fábricas.[170]". In: J. M. Prellezo [aos cuidados], L’impegno dellŽeducare […]. Roma, LAS [1991], p. 397-398. ] Isso muito consolava os rapazes, que viam um amigo interessar-se por eles; e agradava aos patrões, que ficavam satisfeitos por terem sob sua dependência rapazes assistidos durante a semana e sobretudo nos domingos, os dias mais perigosos.
Todos os sábados ia às prisões com os bolsos cheios de fumo, ou de frutas, ou de pãezinhos, sempre com o fito de atender aos rapazes que tinham a desgraça de serem encarcerados, e assisti-los, torná-los amigos e conseguir que viessem ao Oratório ao deixarem o lugar de castigo.[171]". Às reuniões festivas de São Francisco de Assis "eram convidados aqueles que saíam da cadeia e os que ao longo da semana se ia recolhendo cá e lá nas praças, na ruas e também nas oficinas. Contos morais e religiosos, canto de loas sagradas, pequenos presentes, alguns brinquedos eram os meios que se usavam para entretê-los nos dias festivos" (G. Bosco, "Cenni storici intorno all’Oratorio di San Francesco di Sales". In: P. Braido [ed.], Don Bosco educatore, p. 134). ]
[167] Quanto às festas de preceito na cidade e Arquidiocese de Turim, veja "Feste da osservarsi nella Città e Diocesi di Torino a tenore del Breve di S. S. Pio VI del 27 maggio 1786, e della lettera pastorale di S. E. Reverendissima Mons. Arcivescovo di Torino del 21 giugno". In: Synodus Dioecesana Taurinensis […
[168] José Buzzetti (1832-1891), chegando a Turim em busca de trabalho, foi um dos meninos que freqüentaram os catecismos de São Francisco de Assis. Em 1847, começou os estudos eclesiásticos, que teve que interromper por causa da amputação do dedo indicador esquerdo. Colocou-se então à disposição de Dom Bosco para tudo o que fosse necessário. Desde 1853 cuidou da administração das Leituras católicas em tudo o que dependia de Valdocco. Em 1877 fez os votos na Congregação Salesiana. Depois da morte de Dom Bosco, retirou-se para Lanzo para cuidar da saúde abalada e viver na oração os seus últimos anos.
[169] Carlos Buzzetti (1829-1891) tendo-se encontrado com Dom Bosco no tempo dos catecismos de São Francisco de Assis, conduziu depois seus irmãos ao oratório. Trabalhou desde 1856 em Valdocco, na qualidade de simples operário. Em 1860 era chefe de obras. Depois foi o construtor a quem Dom Bosco confiou a construção de seus edifícios, e em particular a construção da igreja de Maria Auxiliadora. Assessorado pelo irmão Josué, tornou-se um dos primeiros empresários e construtores de casas e de igrejas de Turim. Josué Buzetti (1840-1902) em 1874 se declara chefe de obras em Turim. Talvez João Gariboldi seja o pai de Bernardino Gariboldi, estudante no Oratório em 1857-1858 (cf. ASC E 720 Censimento dal 1847 al 1869).
[170] Compare-se com quanto prescrito pelo "Regolamento per gli allievi della Regia Opera della Mendicità Istruita", de 1831, e apresentado por G. Chiosso, "La gioventù povera a Torino nellŽottocento […
[171] "Notou-se, além disso, que, à medida que se fazia notar a eles a dignidade do homem, que é racional e deve buscar o pão da vida com honestas fadigas e não com a ladroagem, em suma, apenas se fazia ressoar em suas mentes o princípio moral e religioso, experimentavam no coração um prazer que não sabiam explicar, mas que fazia com que desejassem se tornar melhores […
38. 14 SAGRADO MINISTÉRIO - ESCOLHA DE UM CARGO NO REFÚGIO (setembro de 1844)
14 SAGRADO MINISTÉRIO - ESCOLHA DE UM CARGO NO REFÚGIO (setembro de 1844)
Naquele tempo comecei a pregar em público em algumas igrejas de Turim,[172] no Hospital da Caridade, no Asilo das Virtudes, nas prisões, no Colégio de São Francisco de Paula,[173] dando tríduos, novenas ou exercícios espirituais. Após os dois anos de moral fiz o exame de confissão.[174] Pude dessa maneira cultivar com maior proveito a disciplina, a moralidade e o bem das almas dos meus rapazes nas prisões, no Oratório e onde fosse mister.
Era para mim consolador ver meu confessionário, durante a semana e nomeadamente nos domingos, rodeado de 40 ou 50 rapazes, esperando horas e horas que chegasse a vez de se confessarem. Foi essa a vida normal do Oratório por quase três anos, isto é, até outubro de 1844.
Entretanto, a Providência ia preparando novidades, mudanças e também tribulações.
Ao fim do triênio de moral [175] devia decidir-me por um determinado setor do sagrado ministério. O velho e alquebrado tio de Comollo, o padre José Comollo, vigário coadjutor de Cinzano, com o parecer do arcebispo, havia-me convidado para ecônomo e administrador da paróquia, trabalho que não mais podia fazer por causa da idade e dos achaques. O teólogo Guala ditou-me a carta de agradecimento ao arcebispo Fransoni, mas ao mesmo tempo me preparava para outra coisa.
Um dia o padre Cafasso me chamou e disse:[176]
– O senhor terminou os estudos; deve agora trabalhar. A messe é muito grande nestes tempos. A que se sente mais inclinado?
– Ao que lhe aprouver indicar-me.
– Há três trabalhos: vice-pároco em Buttigliera d’Asti, repetidor de moral, aqui no Colégio, diretor do Pequeno Hospital, ao lado do Refúgio.[177] 41, 4 de abril, p. 163, coluna 1). O nome é tirado da padroeira, Nossa Senhora Refúgio dos Pecadores. Está situado entre a Pequena Casa da Divina Providência e o Oratório salesiano: três obras grandiosas, uma ao lado da outra, na rua Cottolengo. O teólogo Borel era então o diretor espiritual do Refúgio. Em 1844, a marquesa fazia construir, ao lado, o Pequeno Hospital, para meninas enfermas, o Santa Filomena.] Que escolhe?
– O que o senhor julgar melhor.
– Não se sente inclinado a uma coisa mais que a outra?
– Minha propensão é para cuidar da juventude. O senhor faça de mim o que quiser; verei no seu conselho a vontade de Deus.
– Mas neste momento que há no seu coração? Em que pensa?
– Neste momento parece-me estar no meio de uma multidão de jovens que me pedem ajuda.
– Vá então de férias por algumas semanas. Quando voltar lhe direi o que deve fazer.
Após as férias o padre Cafasso deixou passar algumas semanas sem nada me dizer; eu também não perguntei.[178]
– Por que não me pergunta o que deve fazer? – disse-me um dia.
– Porque quero reconhecer a vontade de Deus na sua deliberação e não quero que nela entre a minha vontade.
– Faça a trouxa e vá com o teólogo Borel; lá será diretor do Pequeno Hospital de Santa Filomena;[179] trabalhará também na obra do Refúgio. Entretanto Deus lhe mostrará o que deve fazer pela juventude,
À primeira vista esse conselho parecia contrariar minhas inclinações, porque dirigir um hospital, pregar e confessar num instituto de mais de quatrocentas jovens não me deixaria tempo para nenhum outro trabalho. Sem embargo, esta era a vontade de Deus, como pude depois me certificar.
Já no primeiro instante em que conheci o teólogo Borel vi nele um santo sacerdote, um modelo digno de admiração e imitação. Toda vez que podia entreter-me com ele, recebia lições de zelo sacerdotal, bons conselhos e estimulo ao bem. Nos três anos passados no Colégio fui várias vezes convidado por ele a ajudar nas funções sagradas, a confessar, a pregar com ele, de maneira que meu campo de trabalho já me era conhecido e de alguma maneira familiar.
Freqüentes vezes conversamos longamente sobre as regras a serem seguidas para ajudar-nos mutuamente nas visitas aos cárceres e no cumprimento dos deveres a nós confiados, e ao mesmo tempo assistir os meninos, cuja moralidade e abandono exigiam cada vez mais o cuidado dos sacerdotes. Mas como fazer? Onde reunir esses rapazes?
– O aposento – disse o teólogo Borel – destinado ao senhor,[180] pode por algum tempo servir para reunir os rapazes que hoje vão a São Francisco de Assis. Quando pudermos ir para o edifício preparado para os padres no Pequeno Hospital, então havemos de procurar um lugar melhor.
[172] Alguns desses sermões em ASC A 225 Prediche - Conferenze - Discorsi FDB 75 E 8 - 79 A 8, FDB 83 E 8 - 83 E 9.
[173] Real Albergue Geral de Caridade erigido em 1628. Recebia os pobres de ambos os sexos nascidos em Turim, cidade e território, inclusive os órfãos. Era também hospital. Trabalhavam nele as Irmãs de Caridade, chamadas Cinzentas. Entre os administradores havia representantes do governo, da prefeitura municipal e do clero (cf. L’Armonia 4 (1851), 117, 29 de setembro, p. 467, col. 2). Real Asilo das Virtudes, pia obra fundada no século XVI por iniciativa da Companhia de Caridade e da de São Paulo; tinha como escopo o ensino das artes e ofícios aos jovens mais pobres, dando a eles comida, alojamento gratuito e uma remuneração proporcionada (cf. P. Stella, Don Bosco nella storia economica e sociale, p. 170-171). Colégio Governamental de São Francisco de Paula, com classes elementares, de gramática e de retórica, que em 1859 se transformou em Ginásio Real.
[174] Por motivo de um pedido urgente de ajuda, feito pelo pároco de Cinzano, o arcebispo, em 30 de novembro de 1842, autorizou Dom Bosco a dar o exame de confissão perante o teólogo Guala e o padre Cafasso. A patente de confissão lhe foi conferida no dia 10 de junho de 1843.
[175] No Colégio Eclesiástico os estudos duravam dois anos; mas aos que mais se distinguiam por piedade e aplicação permitia-se passar mais um ano, favor que o teólogo Guala concedeu a Dom Bosco. Nomearam-no repetidor extraordinário e encarregaram-no ao mesmo tempo de alguns alunos de menor alcance intelectual.
[176] "Um dia, o padre Cafasso me mandou chamar e me disse: - Decidi-vos. Há três coisas. Há o pároco de Buttigliera e algum outro que vos pede como vigário cooperador, há também a marquesa Barolo que vos quer no Refúgio, haverá ainda a possibilidade de ficar no Colégio Eclesiástico e preparar-vos para a conferência da tarde. Eu respondi: - Se me pergunta, eu prefiro o Colégio Eclesiástico, mas no mais eu absolutamente não me decido, vou aonde me manda. Eu agora por uma semana vou a… No entanto, o senhor decida… Era já o dia em que devia partir. Eu me vestia. O padre Cafasso me mandou chamar. Vou, e ele me diz: - Diga-me, pois, qual a coisa que mais lhe agrada. Eu respondi: - Ocupar-me dos meninos. - Bem, vá cuidar de seus afazeres" (R1 1861 1862 1863, p. 49, 50 FDB 1207 D 3 e 1207 D 6).
[177] A marquesa Julieta Colbert, viúva do marquês Falletti de Barolo, havia fundado ao redor do chamado Refúgio, no bairro de Valdocco, um grupo de instituições. O Refúgio (hoje Instituto Barolo) é um grande colégio para meninas pobres "a quem a sedução induziu ao erro e as quais, arrependidas, procuram a paz de um retiro. Primeira condição para que sejam aceitas é que estejam arrependidas e entrem espontaneamente no colégio" (L’Armonia 4 [1851
[178] "Voltando daquela aldeia estive ainda oito a dez dias. Depois, me chamou: - Já decidiu? - Não, mesmo. Eu não decido nada. Mande-me a qualquer lugar e eu parto logo. - Ide ao Refúgio" (R1 1861 1862 1863, p. 50 FDB 1207 D 7).
[179] Fundado pela marquesa Barolo em 1843, o Hospital Santa Filomena ou Hospitalzinho era destinado a meninas pobres dos 4 aos 14 anos. Às meninas convalescentes se ensinava a ler e ecrever. Dom Bosco introduziu o ensino da aritmética (cf. ASC 1451610 FDB 1581 D 4 carta irmã Madalena Teresa- Bosco 16/12/1864).
[180] "Então a marquesa consentiu em dar-lhe desde então o estipêndio de 600 francos e o teólogo Borel lhe cedeu para alojamento provisório um quarto seu no Refúgio. Dom Bosco antes de ir para lá faz o acordo de poder ser visitado por vários jovens, os quais iam aprender o catecismo. Entre estes Buzzetti que ainda está aqui em casa. Foi-lhe concedido e assim Dom Bosco continua lá o Oratório começado já em São Francisco de Assis como foi notado em outro lugar. O teólogo Borelli o ajudava na catequese. Fizeram-se diversos banquinhos e foram colocados no quarto" (R5, p. 58-59 FDB 1212 A 7).
15 UM NOVO SONHO
No segundo domingo de outubro daquele ano (1844) devia anunciar aos meninos que o Oratório ia mudar-se para Valdocco. Mas a incerteza do lugar, dos meios, das pessoas deixava-me muito preocupado. Na tarde anterior fui dormir com o coração inquieto. Tive naquela noite outro sonho,[181] que parece um apêndice do que tive nos Becchi aos 9 anos. Julgo oportuno contá-lo em pormenores.
Sonhei que estava no meio de uma multidão de lobos, cabras e cabritos, cordeiros, ovelhas, bodes, cães e pássaros. Faziam todos juntos um barulho, uma desordem, ou melhor, uma inferneira de espantar os mais corajosos. Ia fugir, quando uma senhora, muito bem trajada à moda de pastorinha, fez um gesto para que seguisse e acompanhasse o estranho rebanho; enquanto isso se punha à frente. Estivemos vagando por vários lugares; fizemos três estações ou paradas. A cada parada muitos desses animais convertiam-se em cordeiros, cujo número ia sempre aumentando. Depois de muito andar, encontrei-me num prado onde os animais saltitavam e comiam juntos, sem que nenhum deles tentasse prejudicar os outros.[182]
Esgotado de cansaço, queria sentar-me à beira de um caminho aí perto, mas a pastorinha convidou-me a continuar andando. Após andar um pouco, encontrei-me em vasto pátio rodeado de pórticos, em cuja extremidade se erguia uma igreja. Percebi então que quatro quintos dos animais haviam-se transformado em cordeiros. O número deles tornou-se depois muito maior. Naquele momento chegaram alguns pastorzinhos para vigiá-los. Mas ficavam pouco tempo e iam-se embora. Aconteceu então uma coisa maravilhosa. Muitos cordeiros convertiam-se em pastorzinhos, que cresciam e passavam a tomar conta dos outros. Com o grande aumento do número dos pastorzinhos, eles se separavam e se dirigiam a outros lugares, onde reuniam alguns animais estranhos e os levavam a outros redis.
Eu queria ir embora, porque parecia estar na hora de rezar missa, mas a pastora me convidou a olhar para o sul. Olhei e vi um campo semeado de milho, batatas, couves, beterrabas, alface e muitas outras verduras.
– Olha outra vez – disse-me.
Olhei de novo. Vi então uma igreja estupenda e alta. Um conjunto de música instrumental e vocal convidava-me a cantar missa. No interior da igreja havia uma faixa branca, na qual estava escrito em caracteres garrafais: “Hic domus mea, inde gloria mea”.[183]
Sempre em sonho, quis perguntar à pastora onde é que eu estava, que significava aquele andar e parar, a casa, a igreja e depois outra igreja mais.
– Tudo haverás de compreender quando com teus olhos materiais vires realizado o que agora vês com os olhos da mente.
Parecendo-me, porém, estar acordado, disse:
– Eu vejo claro e vejo com os olhos materiais. Sei aonde vou e o que faço.
Naquele instante soou o sino de Ave-Marias na igreja de São Francisco, e acordei.
O sonho durou quase a noite inteira, com muitos detalhes. Por então pouco compreendi o significado, porque não lhe dava muito crédito; mas fui entendendo as coisas à proporção que se iam realizando. Posteriormente, junto com outro sonho,[184] serviu-me de programa em minhas decisões.
[181] Depois do primeiro sonho entre os 9 e 10 anos, Dom Bosco teve outros seis, que concorreram para esclarecer gradualmente o desenvolvimento do primeiro. Merecem atenção um sonho aos 16 anos, quando lhe foram prometidos recursos materiais, e outro aos 19, com a ordem terminante de ocupar-se da juventude.
[182] Cf. Is 11,6-9.
[183] "Aqui a minha casa, daqui sairá a minha glória".
[184] Dom Bosco sonhou que trabalhava como alfaiate: "Fui e somente lá, onde começou a história do Oratório, intuí o que significasse aquele trabalhar como alfaiate" (R2 1861 1862 1863, p. 50 FDB 1207 D 6). O sonho "indicava como ele não fosse chamado só a escolher os jovens santos e empenhar-se em aperfeiçoá-los e protegê-los, mas sim a reunir em torno de si jovens desviados e estragados pelos perigos do mundo, os quais por meio de seus cuidados se fizessem bons cristãos e cooperassem para a reforma da sociedade" (MB I, p. 382).
40. 16 TRANSFERÊNCIA DO ORATÓRIO PARA O REFÚGIO
16 TRANSFERÊNCIA DO ORATÓRIO PARA O REFÚGIO
No segundo domingo de outubro (13), consagrado à Maternidade de Maria, comuniquei aos meus meninos a mudança do Oratório para o Refúgio. No primeiro momento ficaram perturbados; mas quando lhes disse que lá nos aguardava um amplo local, todo ele para nós, para cantar, correr, saltar e brincar, ficaram contentes e aguardavam com impaciência o domingo seguinte para ver as novidades que iam imaginando.
No terceiro domingo desse mês de outubro, dia consagrado à Pureza de Nossa Senhora, uma turba de meninos de várias idades e condições correu para Valdocco, pouco depois do meio-dia, à procura do novo Oratório.
– Onde é o Oratório? Onde está Dom Bosco? – indagavam por toda parte.
Ninguém sabia responder-lhes, porque ninguém na vizinhança ouvira sequer falar de Dom Bosco e do Oratório. Julgando-se burlados, os meninos levantavam a voz e insistiam em suas pretensões. Os vizinhos, de sua vez, julgando-se insultados, respondiam com ameaças e pancadas. As coisas iam-se complicando, quando eu e o teólogo Borel, ouvindo a gritaria, saímos para ver o que estava acontecendo. Assim que chegamos, cessou o barulho e a discussão. Apinharam-se em redor de nós, perguntando onde ficava o Oratório.
Dissemos que o verdadeiro Oratório ainda não estava pronto, que por enquanto viessem ao meu quarto, que era espaçoso e serviria muito bem. Naquele domingo, de fato, as coisas correram bastante bem. Mas no domingo seguinte, aos antigos alunos juntaram-se outros da vizinhança e já não sabia onde colocá-los. Quarto, corredor, escada, tudo estava apinhado de meninos. No dia de Todos os Santos pus-me a confessar, eu e o teólogo Borel, e todos queriam confessar-se. Mas como fazer, se éramos 2 confessores e os meninos mais de 200? Um queria acender o fogo, outro apressava-se em apagá-lo. Um trazia lenha, outro água; baldes, torqueses, enxadas, regadores, bacias, cadeiras, sapatos, livros, tudo se espalhava numa admirável confusão pela boa vontade de ordenar e arrumar as coisas.
– Assim não é possível continuar – disse o bom teólogo –, é preciso encontrar um local mais adequado.
Todavia, tivemos de ficar outros seis domingos nesse local estreito, que vinha a ser o quarto que se encontra em cima do vestíbulo da primeira porta de entrada do Refúgio.
Enquanto isso, falou-se com o arcebispo Fransoni, o qual compreendeu a importância do nosso projeto.[185]
– Vão para a frente – disse-nos ele –, façam quanto julgarem oportuno para o bem das almas; dou-lhes todas as faculdades de que possam precisar.[186] Falem com a marquesa Barolo. Talvez ela lhes possa facilitar um local mais cômodo. Mas, digam-me uma coisa: esses meninos não poderiam ir às suas respectivas paróquias?
– Na maioria são rapazes de fora, e passam em Turim somente uma parte do ano. Não sabem sequer a que paróquia pertencem. Muitos deles são maltrapilhos, falam dialetos difíceis, por isso pouco entendem e pouco são entendidos pelos outros. Alguns já são crescidinhos e não se atrevem a juntar-se aos pequenos nas aulas.
– Então – replicou o arcebispo –, é preciso um lugar à parte, destinado a eles. Vão, pois. Eu os abençôo e ao projeto também. Venham tranqüilamente procurar-me e farei sempre o que puder para ajudá-los.
Foi-se falar com a marquesa Barolo, e como até agosto do ano seguinte o Pequeno Hospital não seria aberto, a caridosa senhora concordou que transformássemos em capela dois amplos aposentos destinados a salas de estar dos padres do Refúgio, quando para lá mudassem.
Para ir, pois, ao novo Oratório, passava-se onde está agora a porta do hospital, e, pela pequena viela que separa a obra do Cottolengo do citado edifício, chegava-se até à atual residência dos padres, e pela escada interna subia-se ao 3° andar.
Era o lugar escolhido pela divina Providência para a primeira igreja do Oratório. Começou a chamar-se de São Francisco de Sales por duas razões: primeira, porque a marquesa Barolo tencionava fundar uma congregação de sacerdotes sob esse título, e com essa intenção encomendara o quadro do santo que ainda hoje se pode ver à entrada do local; segunda, porque como tal ministério exige grande calma e mansidão, havíamo-nos colocado sob a proteção deste santo,[187] para que nos alcançasse de Deus a graça de imitá-lo em sua extraordinária mansidão e na conquista das almas. Outra razão era a de colocar-nos sob sua proteção a fim de que do céu nos ajudasse a imitá-lo no combate aos erros contra a religião, especialmente do protestantismo, que começava a insinuar-se insidiosamente nos nossos povoados e sobretudo na cidade de Turim.
Por isso, no ano de 1844, dia 8 de dezembro, consagrado à Imaculada Conceição de Maria, dia de intenso frio, em meio a muita neve que então caía compacta do céu, foi benta com a autorização do arcebispo a suspirada capela, celebrou-se a santa missa, vários meninos confessaram-se e comungaram, e eu celebrei a sagrada função, derramando lágrimas de consolação, porque via estabilizar-se a obra do Oratório,[188], julho, p. 459-460). ] destinada a entreter a juventude mais abandonada e periclitante após haver cumprido os deveres religiosos na igreja.[189]
[185] "Quando, pois, no ano de 1844 por motivo de emprego fui estabelecer-me na Pia Obra do Refúgio, aqueles jovens continuaram a ir lá para a sua instrução espiritual. Foi exatamente naquele tempo que, de acordo com o senhor teólogo Borelli e o padre Pacchiotti, apresentamos um memorial ao senhor arcebispo, que nos autorizou a converter um nosso aposento em oratório, onde se fazia a catequese, se ouviam as confissões, se celebrava a santa missa para os sobreditos jovens" (ASCT, Vicariato, Corrispondenza, 1846, pasta 73, carta Bosco-vigário da cidade, 13/3/1846).
[186] Cf. ASC F 593 FDB 230 D 9 - 230 D 11, "Facoltà concesse dallŽarcivescovo Fransoni".
[187] No Regulamento de 1847, publicado por volta de 1852, expondo o fim da obra dos oratórios, Dom Bosco dirá: "O Oratório colocou-se sob a proteção de São Francisco de Sales, porque os que se querem dedicar a esse gênero de trabalho devem tomar este santo como modelo de caridade e boas maneiras, que são as fontes donde promanam os frutos que se esperam da obra dos oratórios" (MB III, p. 91).
[188] "Ele recolhe nos dias festivos, lá naquele solitário recinto de 400 a 500 jovens acima dos 8 anos, para afastá-los dos perigos e divagações, e instruí-los nas máximas da moral cristã. E isso entretendo-os em agradáveis e honestos recreios, depois que assistiram aos ritos e aos exercícios de religiosa piedade, sendo ele pontífice e ministro, mestre e pregador, pai e irmão, celebrados com a mais edificante santidade ("Cronichetta di Casimiro Danna", Giornale della Società d’Istruzione e d’Educazione I [1849
[189] Dom Bosco acrescenta: "Vila da benemérita condessa Gabriela Peletta Corsi, Nizza Monferrato, 21 de outubro de 1873". Terminava aqui o texto primitivo das Memórias do Oratório qual foi entregue ao Papa Pio IX.
41. 17 O ORATÓRIO EM SÃO MARTINHO DOS MOINHOS -DIFICULDADES - A MÃO DO SENHOR
17 O ORATÓRIO EM SÃO MARTINHO DOS MOINHOS [190] -DIFICULDADES - A MÃO DO SENHOR
Na capela anexa ao edifício do Pequeno Hospital de Santa Filomena, o Oratório ia-se encaminhando muito bem.[191], Don Bosco educatore, p. 114). ] Nos domingos e dias santos acudiam muitos rapazes para confessar-se e comungar. Após a missa fazia-se breve explicação do Evangelho. Depois do meio-dia, catecismo, cantos sacros, breve instrução, ladainhas de Nossa Senhora e bênção. Nos intervalos, os jovens entretinham-se em agradável recreio com jogos diversos. Isso acontecia na pequena viela que ainda hoje existe entre o mosteiro das madalenas e a rua. Lá passamos sete meses e acreditávamos haver encontrado o paraíso terrestre, quando nos vimos obrigados a abandonar o acolhedor abrigo e ir à procura de outro.
A marquesa Barolo,[192] embora visse com bons olhos qualquer obra de caridade, todavia, aproximando-se a hora de abrir seu Pequeno Hospital (abriu-se a 10 de agosto de 1845), decidiu que o nosso Oratório saísse de lá. É verdade que o local destinado a capela, escola ou recreios dos jovens não tinha comunicação alguma com a parte interna do estabelecimento; as próprias persianas estavam fixas e voltadas para cima; não obstante, foi preciso obedecer.[193] Fez-se um apelo insistente à prefeitura de Turim [194], Torino e Don Bosco, I, p. 124-125.] e graças a uma recomendação do arcebispo Fransoni, conseguimos [195], Torino e Don Bosco, I, p. 125). O contador-chefe era o primeiro dos decuriões da cidade. Era também o vigário da cidade e tinha autoridade sobre os dois prefeitos. Veja também nota 194. ] que o Oratório se transladasse para a igreja de San Martino dei Molazzi, ou dos moinhos da cidade.[196]
Num domingo de julho de 1845, pegam-se bancos, genuflexórios, candelabros, algumas cadeiras, cruzes, quadros e quadrinhos, e cada um carregando o que podia, em meio à algazarra, risos e mágoa,[197], Don Bosco educatore, p. 114). O Oratório ficou nos Moinhos Dora de 13 de julho até o quarto domingo do Advento, 23 de dezembro (cf. ASC A 102 Memorie dellŽOratorio di San Francesco di Sales, p. 4).] fomos, à maneira de uma emigração popular, estabelecer nosso quartel-general no lugar acima indicado.
O teólogo Borel fez um discurso de ocasião tanto antes da partida como na chegada à nova igreja.
O digno ministro do santuário, num estilo popular, mais único do que raro, exprimiu estes pensamentos:
“As couves, queridos jovens, se não são transplantadas não se fazem bonitas e grandes. O mesmo acontece com o nosso Oratório. Até agora mudou muitas vezes de um lugar para outro; mas nos vários lugares onde acampou por algum tempo conseguiu sempre um bom incremento, com grande vantagem para os nossos jovens. São Francisco de Assis viu-o começar como catequese entremeada de cantos; lá não era possível fazer mais. O Refúgio foi por algum tempo como uma parada, dessas que fazem os trens nas estações, e serviu para que os nossos jovens não ficassem privados naqueles poucos meses da ajuda espiritual das confissões, catecismos, pregações e agradáveis entretenimentos.
Ao lado do Pequeno Hospital começou um verdadeiro Oratório, e parecia-nos haver encontrado a verdadeira paz, um bom lugar para nós; mas a divina Providência dispôs que tivéssemos que deixar o local e vir aqui para São Martinho. Vamos ficar aqui por muito tempo? Não sabemos; esperamos que sim. Seja como for, acreditamos que, como as couves transplantadas, nosso Oratório haverá de crescer em número de jovens que amam a virtude, crescerá o interesse pelo canto, pela música, pelas escolas noturnas e também diurnas.
Vamos ficar aqui muito tempo? Deixemos de lado essa preocupação e coloquemo-nos nas mãos de Deus, que ele cuidará de nós. Uma coisa é clara: ele nos abençoa, ajuda e socorre; ele pensará no melhor lugar para promover sua glória e o bem das nossas almas. Mas como as graças de Deus formam uma espécie de corrente, de sorte que um anel se une a outro anel, assim, se aproveitarmos as primeiras graças, podemos estar seguros de que Deus concederá outras maiores; e se correspondermos aos fins próprios do Oratório, caminharemos de virtude em virtude, até chegarmos à pátria bem-aventurada, onde a infinita misericórdia de Nosso Senhor Jesus Cristo dará o prêmio que cada um houver merecido com suas boas obras”.
Grande número de meninos assistiu a essa solene função; e com a máxima emoção entoou-se um Te Deum de ação de graças.
Aqui as práticas religiosas faziam-se como no Refúgio. Mas não se podia celebrar missa, nem dar a bênção à tarde. Por conseguinte, não podia haver comunhão, que é o elemento fundamental da nossa instituição. O próprio recreio era bastante perturbado, paralisado, porque os meninos eram obrigados a brincar na rua e na pracinha frente à igreja, por onde passavam continuamente pedestres, carros, cavalos e carroças. Como não podíamos dispor de coisa melhor, agradecíamos ao céu quanto nos havia concedido, aguardando melhor lugar; contudo sobre-vieram novos transtornos.
Moleiros, ajudantes, empregados, não podendo suportar os saltos, os cantos e por vezes a algazarra dos nossos alunos, ficaram alarmados e de comum acordo apresentaram queixa à Prefeitura. Começou então a correr voz que aquelas reuniões de jovens eram perigosas, que de um momento para outro podiam provocar motins e revoltas.[198], Don Bosco educatore, p. 115.] Diziam isso apoiados na obediência pronta com que se submetiam ao mínimo sinal do superior. Acrescentava-se sem razão que os meninos causavam muitos estragos na igreja, fora da igreja, no calçamento; parecia que Turim viria abaixo caso continuássemos a nos reunir naquele lugar.
Nossos males chegaram ao cúmulo quando de uma carta escrita por um secretário dos Moinhos ao prefeito de Turim, a qual recolhia toda a classe de rumores e exagerava prejuízos imaginários(*) e, afirmando ainda ser impossível às famílias que se dedicavam àqueles trabalhos
(*) O prefeito mandou inspeccionar o lugar, e encontraram as paredes, o calçamento, o pavimento e todas as coisas da Igreja em perfeito estado. O único estrago consistia num pequeno risco na parede que um menino fizera com a ponta de pequeno prego.
desempenharem suas obrigações e gozarem de tranqüilidade. Chegou-se até a dizer que aquilo era um centro de imoralidade. Não obstante estar persuadido de que a informação carecia de fundamento, o prefeito escreveu violenta carta, mandando transladar imediatamente nosso Oratório para outro sítio.[199], Torino e Don Bosco, I, p. 125-126). A deliberação da contadoria foi motivada por um pedido do conde Marchetti Melina, diretor dos moinhos municipais. A contadoria era uma comissão municipal a serviço do corpo dos decuriões da cidade de Turim. Tratava dos assuntos econômicos, das taxas, dos balanços, da contabilidade etc. Existiu até 1848. ] Consternação geral, lamentos inúteis! Tivemos de ir embora.
Convém, todavia, observar que o secretário, chamado… (não se publique nunca), autor da famosa carta, escreveu pela última vez, pois foi acometido de forte tremor na mão direita e faleceu três anos depois. Deus dispôs que seu filho ficasse abandonado no meio da rua e obrigado a pedir pão e asilo no internato que mais tarde se abriu em Valdocco.
[190] Historicamente, os fatos de São Pedro in vinculis precedem a ida do Oratório para os Moinhos. Não obstante isso, já nas Cronache dellŽOratorio di San Francesco di Sales n° I 1860 (ASC A 0080601) segue-se a ordem dos fatos que depois será retomada nas Memórias do Oratório, isto é, antes o Oratório nos Moinhos e depois em São Pedro in vinculis. À p. 33 (FDB 1206 D 2), o texto começa: "Dois fatos provaram a proteção manifesta do Senhor".
[191] "A voz de uma capela destinada unicamente para os jovens, as sagradas funções feitas especialmente para eles, um pouco de lugar livre para saltar, foram chamariz poderoso, e a nossa igreja que, naquela época começou a ser chamada Oratório, ficou pequena. Ajustamo-nos como pudemos. Quartos, cozinha, corredores, em cada ângulo da casa havia classes de catequese, tudo era Oratório (G. Bosco, "Cenno storico". In: P. Braido [ed.
[192] A marquesa Júlia Colbert Falletti de Barolo (1785-1864) nasceu em Maulévrier, França. Educada cristãmente, perdeu a mãe quando tinha 7 anos e foi com o pai para o exílio, na Holanda e na Alemanha. Voltando à França, no tempo de Napoleão I, desposou em 1806 o jovem Tancredi de Barolo, do qual ficou viúva em 1838. Em Turim, procurava imitar as iniciativas de caridade que tinha conhecido em suas viagens na França. Aqui interessa a Pia Obra do Refúgio e a Irmandade de Santa Maria Madalena. A última obra a que se dedicou foi a igreja de Santa Júlia, no bairro de Vanchiglia. Dela está em curso a causa de santificação.
[193] Um sonho veio confortar Dom Bosco nessa ocasião. Só o contou a 2 de fevereiro de 1875, ao padre Barberis que vinha com ele de via Borgo Nuovo. O padre Lemoyne o transcreveu (MB II, p. 297-298). O sonho pode ser encontrado em ASC A 0030112 "Notizie varie dei primi tempi dellŽOratorio su Don Bosco ecc.", FDB 892 A 11 e 892 A 12. Eis sua tradução: "Pareceu-me estar numa planície cheia de uma multidão incontável de jovens. Uns brigavam, outros blasfemavam. Aqui se roubava, ali se ofendiam os bons costumes. Via-se no ar uma nuvem de pedras lançadas pelos que travavam batalha entre si. Eram jovens abandonados e corrompidos. Estava para fugir daí, quando vi ao meu lado uma Senhora que me disse: - Põe-te no meio desses jovens e trabalha. Adiantei-me, mas, que fazer? Não havia um local onde reuni-los; queria fazer lhes o bem e dirigi-me a pessoas que estavam a olhar de longe e podiam ser de valiosa ajuda para mim. Ninguém, contudo, me dava ouvidos, ninguém me ajudava. Voltei-me para a Senhora, e ela me disse: - Olha esse lugar! E me fez ver um grande prado. - Mas há aqui tão-somente um prado - disse eu. Ela respondeu: - Meu Filho e os apóstolos não tinham um palmo de terra onde pousar a cabeça. Comecei a trabalhar naquele prado, avisando, pregando, confessando; mas vi que em grande parte resultava inútil qualquer esforço se não encontrasse um local com um edifício para recolhê-los e abrigar os que haviam sido totalmente abandonados pelos pais e rejeitados e desprezados pela sociedade. Então aquela Senhora conduziu-me um pouco mais para o norte e me disse: - Observa! Olhei e vi uma igreja pequena e baixa, um pátio diminuto e grande número de jovens. Retomei meu trabalho. Mas, como a igreja era multo pequena, recorri outra vez à Senhora, que me fez ver outra bastante maior e com um edifício ao lado. Depois, levando-me consigo a um trato de terreno cultivado, quase diante da fachada da segunda igreja, acrescentou: - Neste lugar, onde os gloriosos mártires de Turim, Aventor e Otávio, sofreram o martírio, nesta terra que foi banhada e santificada por seu sangue, quero que Deus seja honrado de modo muito particular. Assim dizendo, adiantou um pé até descansá-lo no ponto exato onde teve lugar o martírio, e indicou-me com precisão. Eu queria pôr um sinal para encontrá-lo quando voltasse a esse campo, mas não achei nada, nem um pedaço de madeira, nem uma pedra; contudo, fixei-o na memória com toda a exatidão. Corresponde exatamente ao ângulo interior da capela dos Santos Mártires, chamada depois de Sant’Ana, do lado do Evangelho, na igreja de Maria Auxiliadora. Entretanto via-me rodeado de um número imenso e sempre crescente de jovens; e olhando para a Senhora, cresciam os meios e o local; vi depois uma igreja muito grande, precisamente no lugar onde me disseram haver ocorrido o martírio dos santos da legião tebéia, com muitos prédios ao redor e um lindo monumento ao centro. Enquanto tudo isso acontecia, sempre em sonho, tinha como colaboradores alguns sacerdotes, que num primeiro momento me ajudavam, mas depois fugiam. Buscava com grande trabalho atraí-los para num, e eles pouco depois iam-se embora e deixavam me só. Então voltei me de novo para a Senhora, que me disse: - Queres saber como fazer para que não vão embora? Toma esta fita e ata-lhes na cabeça. Respeitosamente tomei de sua mão a fita branca e vi que nela estava escrito uma palavra: -obediência. Experimentei em seguida fazer o que a Senhora me disse e comecei a atar a cabeça de alguns dos meus colaboradores voluntários com a fita, e vi logo uma grande mudança, de fato surpreendente, que se tornava cada vez mais patente, à medida que ia cumprindo o conselho que havia recebido, já que eles abandonaram o desejo de ir para outra parte e ficaram, por fim, para ajudar-me. Assim constituiu se a Sociedade Salesiana" As três igrejas são o telheiro-capela Pinardi, a igreja de São Francisco de Sales e a basílica de Nossa Senhora Auxiliadora.
[194] ASCT, "Collezione I lettere", vol. 172, n. 447, carta Borel-illustrissimo signor Cavaliere, reproduzida por G. Bracco, "Don Bosco e le istituzioni". In: G. Bracco [ed.
[195] No dia 12 de julho de 1845 Nomis di Pollonio, contador-chefe do município, concedia a autorização pedida (cf. G. Bracco, "Don Bosco e le istituzioni". In: G. Bracco [ed.
[196] Os Moinhos Dora eram chamados popularmente de molassi, para distingui-los dos moinhos menores que estavam sobre as margens do rio Pó. Hoje não existem mais.
[197] "Aqueles jovens em parte aflitos porque deviam abandonar um lugar que estimavam como próprio deles, em parte ansiosos pela novidade todos se dispunham a partir. Você teria visto um que levava uma cadeira, aquele outro um banco, este um quadro ou uma estatuinha, aquele um paramental, ou cestas, ou ampolas. Outros muito mais festivos levavam pernas de pau ou saquinhos de bochas ou piastrelas, mas todos ansiosos por ver o novo oratório" (G. Bosco, "Cenno storico". In: P. Braido [ed.
[198] Cf. G. Bosco, "Cenno storico". In: P. Braido [ed.
[199] "Informada a contadoria dos inconvenientes ocorridos por parte dos meninos que vão, segundo a autorização dada à S. V. Ilustríssima e muito Rev., à capela da cidade nos Moinhos de Dora para ser catequizados, deliberou que deva cessar com o dia 1º do próximo janeiro a concessão feita a V. S. do uso da dita capela (ASCT, Collezione I, copia lettere, 1845, vol. 189, n. 407, carta dos síndicos Serravalle e Bosco di Ruffino ao teólogo Borel 18/11/1845, transcrita por G. Bracco, "Don Bosco e le istituzioni". In: G. Bracco [ed.
42. 18 O ORATÓRIO EM SÃO PEDRO IN VINCULIS - A CRIADA DO CAPELÃO - UMA CARTA - UM TRISTE ACIDENTE
18 O ORATÓRIO EM SÃO PEDRO IN VINCULIS - A CRIADA DO CAPELÃO - UMA CARTA - UM TRISTE ACIDENTE [200]
Como o prefeito e, de modo geral, a Prefeitura estivessem convencidos da inconsistência de quanto se escrevia contra nós, bastou um simples pedido, e a recomendação do arcebispo, para que nos pudéssemos reunir no pátio e na capela do cenotáfio do Santíssimo Crucifixo,[201] chamado vulgarmente São Pedro in vinculis.[202] Foi assim que, depois de dois meses em São Martinho, tivemos de transladar-nos, com amargo pesar, para outro local, que, por outro lado, era bem melhor para nós. Os longos pórticos, o espaçoso pátio, a igreja apropriada para as sagradas funções, tudo serviu para despertar entusiasmo nos meninos, que pareciam loucos de alegria.
No entanto, existia ali um terrível inimigo por nós ignorado. Não era nenhum defunto, dos que numerosos repousavam nas sepulturas ao lado; era uma pessoa viva, a criada do capelão.[203] Nem bem começou a ouvir os cantos e as vozes, e vamos dizer, a algazarra dos alunos, saiu furiosa para fora de casa e com a touca de través e as mãos à cintura, pôs-se a apostrofar a multidão que estava a brincar.
Somavam-se às suas invectivas uma menina, um cão, um gato e todo um galinheiro, de modo que parecia iminente uma guerra européia. Procurei acalmá-la, observando que os meninos não tinham má vontade; brincavam e não cometiam nenhum pecado. Voltou-se então contra mim e presenteou-me com a parte que me tocava.
Naquele momento pareceu-me oportuno interromper o recreio, dar um pouco de catecismo e, depois do terço na igreja, partimos com a esperança de encontrar maior paz no domingo seguinte. Aconteceu precisamente o contrário. Quando, ao entardecer, o capelão [204] chegou, a boa criada pôs-se ao lado dele, e chamando Dom Bosco e seus meninos de revolucionários, profanadores dos lugares santos e coisas piores, obrigou o bom amo a escrever uma carta à Prefeitura. Fê-lo por ditado da criada, mas com tamanha dureza, que imediatamente foi dada ordem de prisão a quem quer de nós que por aí aparecesse.
Dói dizê-lo, mas foi a última carta do capelão padre Tésio. Escreveu segunda-feira, e, poucas horas depois,[205] teve um ataque apoplético, morreu quase de repente. Passam dois dias e sorte idêntica tocou à criada.
Os fatos espalharam-se e causaram profunda impressão nos jovens e em todos os que tomaram conhecimento da notícia. A pressa de vir e inteirar-se dos tristes acontecimentos foi grande em todos. Como, todavia, estavam proibidas as reuniões em São Pedro in vinculis e não havia sido possível avisar em tempo, ninguém, nem mesmo eu, estava em condições de saber onde encontrar um lugar para a próxima reunião.
[200] Quanto ao episódio inteiro, veja-se F. Motto, "L’oratorio di Don Bosco presso il cimitero di San Pietro in vincoli in Torino: una documentata ricostruzione del noto episodio", RSS 5 (1986) p. 199-220.
[201] Capela em forma de cruz grega no interior do cemitério de São Pedro in vinculis.
[202] O cemitério surgiu em 1777 e tomou o nome do humilde oratório que surgia perto dali e tinha sido erigido pelos hortelãos em 1775 em honra de São Pedro in vinculis. Em 1829 foi declarado fechado, mas até 1881 ainda houve enterros nele.
[203] Margarida Sussolino.
[204] O padre José Tésio (1777-1845) nascido em Raconigi e morto em Turim dia 28 de maio. Tinha sido capuchinho e depois, por muitos anos, vigário cooperador, antes de ser nomeado capelão de São Pedro in vinculis.
[205] Veio a falecer aos trinta minutos da quarta-feira seguinte, como reza o atestado de óbito.
43. 19 O ORATÓRIO NA CASA MORETTA , Torino e Don Bosco, II, p. 23).]
19 O ORATÓRIO NA CASA MORETTA [206], Torino e Don Bosco, II, p. 23).]
No domingo seguinte à proibição, uma multidão de meninos dirigiu-se a São Pedro in vinculis, porque não fora possível avisá-los com antecedência. Encontrando tudo fechado, vieram em massa ao meu quarto no Pequeno Hospital. Que fazer? Via-me com um amontoado de apetrechos de igreja e de recreio; uma turba de meninos seguia-me os passos por toda a parte, e eu não tinha um palmo de terreno onde reuni-los.[207], Don Bosco educatore, p. 116-117.]
Ocultando minhas preocupações, mostrava-me de bom humor e a todos distraía, contando mil maravilhas do futuro Oratório, que naquele momento existia apenas na minha mente e nos desígnios de Deus. Para de algum modo mantê-los ocupados nos dias santificados, levava-os alguma vez a Sassi,[208] outra a Nossa Senhora do Pilone, a Nossa Senhora de Campagna, ao monte dos capuchinhos e mesmo a Superga.[209]
Nessas igrejas procurava, de manhã, celebrar para eles a missa, com explicação do Evangelho. À tarde havia breve catecismo, cantos sacros, alguns fatos; em seguida, algumas voltas pelos arredores e passeios até à hora de retornar às famílias. Parecia que situação tão crítica ia reduzir a cinzas qualquer plano de oratório. Não obstante, ia crescendo de maneira extraordinária o número dos freqüentadores.
Já era chegado o mês de novembro (1845), estação pouco oportuna para passeios ou caminhadas fora da cidade. De acordo com o teólogo Borel, alugamos três quartos da casa do padre Moretta, que é a que fica perto, quase na frente da atual igreja de Maria Auxiliadora. Essa casa, hoje, à força de restaurações, foi quase refeita. Lá passamos quatro meses,[210] apertados pela pequenez do local, mas contentes por poder, pelo menos naqueles quartos, reunir os nossos alunos, instruí-los e sobretudo dar-lhes comodidade para se confessarem. E até começamos, naquele inverno, as aulas noturnas.
Era a primeira vez [211] que em nossas bandas se falava desse tipo de escola; houve, assim, grande repercussão, ficando alguns a favor, outros contra.[212]
Foi também por esse tempo que se espalharam alguns diz-que-diz-ques multo estranhos. Alguns qualificavam Dom Bosco de revolucionário, outros diziam-no louco ou hereje. Arrazoavam desta maneira: o oratório afasta os meninos das paróquias, portanto o pároco vai ficar com a igreja vazia, e não poderá conhecer os meninos dos quais deverá prestar contas no tribunal de Deus. Que Dom Bosco, pois, mande os meninos às suas paróquias e deixe de reuni-los fora delas.
Assim me falavam dois respeitáveis párocos desta cidade, que me visitaram também em nome dos seus colegas.
– Os jovens que eu reúno – respondi – não diminuem a freqüência às paróquias, porque a maior parte deles não conhece pároco nem paróquia.
– Por quê?
– Porque são quase todos de fora, largados pelos pais nesta cidade; ou para cá vieram à procura de trabalho e não puderam encontrar. Os que de ordinário freqüentam minhas reuniões são saboianos, suíços, valdostanos, bielenses, novarenses, lombardos.
– Não poderia mandar esses meninos às respectivas paróquias?
– Não sabem quais são.
– Por que o senhor não ensina?
– Impossível. A distância da pátria, a diversidade de língua, a incerteza do domicílio e o desconhecimento dos lugares tornam-lhes difícil, para não dizer impossível, ir às paróquias. Além do mais, muitos deles já são adultos, beirando os 18 e os 20 ou mesmo 25 anos de idade, e são completamente ignorantes em religião. Quem os convencerá a misturar-se com meninos de 8 ou 10 anos, muito mais instruídos que eles?
– Não poderia o senhor mesmo levá-los e dar-lhes catecismo nas igrejas paroquiais?
– Quando muito poderia ir a uma paróquia, mas não a todas. Poder-se-ia ajeitar isso se cada pároco quisesse vir ou mandar alguém recolher estes meninos e guiá-los às respectivas paróquias. Mas mesmo assim é difícil, porque muitos deles são levianos e mesmo travessos; eles vêm unicamente porque atraídos pelos brinquedos e passeios que costumamos dar, e assim se decidem a freqüentar também os catecismos e outras práticas de piedade. Por conseguinte, seria preciso que todas as paróquias tivessem também um lugar adequado onde reunir e entreter esses rapazes em agradável passatempo.
– Isso é impossível. Não há locais, nem padres que disponham do domingo para isso.
– E então?
– E então faça como melhor lhe parecer; e nós decidiremos o que for conveniente fazer.
Entre os párocos de Turim agitou-se a questão: promover os oratórios ou reprová-los? Houve opiniões pró e contra. O cura de Borgo Dora,[213] padre Agostinho Gattino, com o teólogo Ponzati,[214] cura de Santo Agostinho, trouxe-me a resposta nestes termos:
– Os párocos da cidade de Turim, reunidos em suas habituais conferências, trataram da conveniência dos Oratórios. Pesados os prós e os contras, ante a impossibilidade de cada pároco montar um oratório em sua respectiva paróquia, encorajam o padre Bosco a continuar, enquanto não se tomar decisão em contrário.
Chegava, entrementes, a primavera de 1846. A casa Moretta era habitada por muitos inquilinos, os quais, atordoados pela algazarra e pelo barulho contínuo dos que se movimentavam de cá para lá e de lá para cá, queixaram-se com o dono, declarando que se não parassem logo aquelas reuniões, iriam todos embora. Assim o bom sacerdote Moretta viu-se obrigado a comunicar-nos que devíamos procurar imediatamente outro local onde reunir-nos, se quiséssemos manter em vida nosso oratório.
[206] "Durante aquele inverno fizemos a catequese parte em nossa casa e parte em vários quartos alugados" (carta Bosco-vigário da cidade, 13/3/1846, transcrita por G. Bracco [ed.
[207] As Memórias do Oratório colocam este período de setembro a novembro. Historicamente, ele durou do fim de maio ao princípio de julho. O texto tem como fonte G. Bosco, "Cenno storico". In: P. Braido [ed.
[208] Sassi, na periferia de Turim, sobre a margem direita do Pó, entre Nossa Senhora do Pilone e Nossa Senhora de Campagna e a estrada municipal para Superga. Nos tempos de Dom Bosco era uma pequena vila com igreja paroquial dedicada ao martírio de São João Batista, na encosta de uma colina, hoje substituída, mais na planície, pela paróquia de Nossa Senhora do Rosário. Nossa Senhora de Campagna, igreja paroquial da Anunciação de Nossa Senhora, numa pequena vila, então a 3 quilômetros ao norte da cidade, além da margem esquerda do rio Dora. Construída em 1675, esteve no centro dos acontecimentos do assédio de Turim em 1706. Paróquia em 1834, foi reconstruída em 1883 e, novamente, em 1949, depois dos bombardeios da Segunda Guerra Mundial, com projeto do arquiteto U. Cento.
[209] Real Basílica de Superga, construída por Victor Manoel II entre 1717 e 1731, cumprindo uma promessa feita à Virgem durante o assédio de Turim de 1706. É dedicada à Natividade de Nossa Senhora.
[210] O Oratório serviu-se da casa Moretta para a catequese até dia 2 de abril de 1846 (cf. ASC A 102 Memoriale dellŽOratorio di San Francesco di Sales, p. 4). O padre João Moretta (1777-1847) nasceu e morreu em Turim. Em 1833 morava perto da paróquia da Anunciação. Tinha sido capuchinho. Foi reitor de Santa Margarida e um dos sacerdotes encarregados das funções da Pia Sociedade do Patrocíno de São José, na igreja da Consolata.
[211] Dia 7 de janeiro de 1846 a direção da Obra Pia da Mendicidade Instruída inaugurava uma escola noturna na paróquia de Santa Pelágia, limitada, porém, aos que já soubessem ler e escrever, e a confiaram aos Irmãos das Escolas Cristãs. O anúncio da abertura dessa escola tinha sido feito dia 3 de dezembro de 1845. Dom Bosco repetirá mais adiante que suas escolas noturnas foram as primeiras em ordem de tempo. Em 1934, os Irmãos das Escolas Cristãs contestaram tal prioridade. A questão é tratada nas MB XVII, p. 850-852. Eis a conclusão: "Se se fala de aulas noturnas em sentido estrito, os Irmãos precederam Dom Bosco de alguns meses; dispondo de pessoal técnico, em janeiro de 1846 começaram-nas regularmente. Mas se se trata de aulas noturnas sic et simpliciter, isto é, de aulas mesmo e dadas à noite a operários que haviam passado o dia nas oficinas, locais de trabalho ou nos campos, cabe a Dom Bosco a prioridade de pelo menos dois meses (novembro de 1845)".
[212] Nas Letture Popolari antes, e depois nas Letture di Famiglia, desde 1837 eram publicadas em continuação notícias, artigos e simples indicações destinadas a iniciativas educativas em favor dos filhos do povo. De 1842 em diante começou-se a falar das escolas dominicais. Alguns periódicos de tendência moderada, como L’Educatore Primario, apoiaram a difusão de iniciativas desse tipo, às quais não faltava o apoio discreto do mesmo rei.
[213] Borgo Dora, região periférica de Turim, perto da ponte Mosca sobre o rio Dora. Os limites da paróquia se estendiam além da zona edificada, compreendendo também as regiões de Valdocco e de Borgo San Donato. A igreja paroquial, aberta ao culto em 1785, fechada em 1882 e demolida em 1956, encontrava-se na praça Borgo Dora.
[214] O teólogo Vicente Ponsati (1801-1874) nasceu em Volvera, Turim, e morreu na cidade de Turim. Era pároco de São Filipe e São Tiago em Santo Agostinho. Veja-se em ASC A 0000101 G. Barberis, Cronichetta 1º, p. 29-30 FDB 833 D 3 - 833 D 4, a descrição da visita dos párocos ao Oratório.
44. 20 O ORATÓRIO NUM PRADO - PASSEIO A SUPERGA
20 O ORATÓRIO NUM PRADO - PASSEIO A SUPERGA
Com grande pesar e não pequenos inconvenientes para nossas reuniões, em março de 1846 tivemos de deixar a casa Moretta e alugar um prado dos irmãos Filippi,[215] onde atualmente existe uma fundição de ferro gusa. Encontrei-me lá a céu aberto, em meio a um prado, cercado de fraca sebe, que deixava passar livremente quem quisesse entrar. Os meninos eram de 300 a 400. Encontravam seu paraíso terrestre naquele oratório, cujo teto e paredes eram a abóbada celeste.[216], Don Bosco educatore, p. 116.]
Mas como fazer as práticas de piedade num lugar assim? Dava-se o catecismo como se podia, entoavam-se cânticos, cantavam-se as vésperas; depois o teólogo Borel ou eu subíamos a uma elevação qualquer ou a uma cadeira e fazíamos uma pequena prática aos jovens, que ansiosos se acercavam para ouvir-nos.
As confissões faziam-se da seguinte maneira: nos dias santificados, bem cedo, eu estava no prado, onde já alguns esperavam. Sentava-me na divisa e ouvia a confissão de uns, enquanto outros faziam a preparação ou a ação de graças, depois do que a maioria recomeçava o recreio.
A determinada hora da manhã, soava uma trombeta e os rapazes se reuniam. A um segundo toque fazia-se silêncio e eu podia falar e marcar onde iríamos ouvir a santa missa e fazer a Comunhão.
Por vezes, como disse, íamos a Nossa Senhora de Campagna, à igreja da Consolata, a Stupinigi [217] ou aos lugares já mencionados. Como fazíamos freqüentes caminhadas até lugares distantes, vou contar uma que fizemos a Superga. Por ela se ficará sabendo como se organizavam as outras.
Reunidos os jovens no prado, dava-se tempo para que brincassem com bochas, malhas, andas etc.; em seguida, tocava-se um tambor e depois uma trombeta, anunciando a reunião e a partida. Tinha-se o cuidado de que antes todos ouvissem a missa; e pouco depois das 9 horas partíamos rumo a Superga. Alguns carregavam cestos de pão, outros queijo ou salame, frutas ou outras coisas necessárias para passar o dia. Guardava-se silêncio até sair da cidade, mas sempre em fila e em ordem.
Chegando ao pé da subida que leva à basílica, topei com um estupendo cavalinho, ajaezado a primor, que o cura da igreja, padre Anselmetti,[218] me havia enviado. Aí recebi um bilhete do teólogo Borel, que nos havia precedido. Nele dizia: “Venha tranqüilamente com nossos queridos jovens; a sopa, o prato e o vinho estão preparados”. Montei a cavalo e li o bilhete em voz alta. Todos se apinharam ao redor do cavalo. Após a leitura, puseram-se unanimemente a aplaudir e a dar vivas em meio a gritos, muita algazarra e cantos. Alguns pegavam o cavalo pelas orelhas, outros seguravam o nariz ou a cauda, esbarrando ora no pobre animal ora no cavaleiro. O manso animal tudo suportava pacificamente, dando sinais de maior paciência do que a de quem o montava. Em meio àquele alvoroço fazia-se ouvir nossa banda, que consistia num tambor, numa trombeta e num violão. Tudo desafinado; mas servia para fazer barulho, e as vozes dos meninos bastava para produzir maravilhosa harmonia.
Cansados de rir, brincar, cantar e, diria, de urrar, chegamos à meta. Os rapazes, por estarem suados, reuniram-se no pátio do santuário e receberam o necessário para satisfazer-lhes o voraz apetite. Depois de descansarem um pouco, reuni-os a todos e contei-lhes pormenorizadamente a maravilhosa história da basílica, dos sepulcros reais que se encontram na cripta, e da Academia eclesiástica [219] aí erigida por Carlos Alberto e promovida pelos bispos dos Estados Sardos.
O teólogo Audísio, que era o presidente, pagou generosamente sopa e cozido a todos os visitantes. O pároco deu vinho e frutas. Durante umas duas horas visitaram os locais, e depois nos reunimos na igreja, na qual havia muita gente. Às 3 horas da tarde, fiz no púlpito um sermãozinho, após o qual alguns de boa voz entoaram um Tantum ergo. A novidade das vozes brancas causou a todos muita admiração. Às 6 horas soltamos alguns balões e depois, com cordiais agradecimentos a quem nos havia acolhido, partimos de volta para Turim. Os mesmos cantos, risos e corridas de antes, unidos às vezes a orações, ocuparam nosso caminho.
Chegados à cidade, os meninos iam deixando as fileiras à medida que passavam perto de suas casas. Quando cheguei ao Refúgio, tinha ainda comigo 7 ou 8 rapazes mais fortes, que traziam os utensílios empregados durante o dia.
[215] "21 de fevereiro. Compra da porta para o prado 11,50" (ASC A 102 Memoriale dellŽOratorio di San Francesco di Sales, p. 3, FDB 552 E 5).
[216] Cf. G. Bosco, "Cenno storico". In: P. Braido [ed.
[217] Stupinigi: distrito do município de Nichelino, 10 quilômetros a Sudoeste de Turim. A localidade é conhecida sobretudo pelo Palácio de Caça dos Savóia, grandioso complexo arquitetônico barroco de Filipe Juvara (1729-1730).
[218] O padre José Maurício Anselmetti (1788-1852) nasceu em Turim. No Stato degli ecclesiastici della diocesi di Torino 1833 (AAT 12.6.7) afirma-se que o cargo de cura da basílica de Superga era verdadeiramente apropriado para o padre Anselmetti.
[219] Com decreto real de 21 de julho de 1833, Carlos Alberto havia instituído a Academia eclesiástica, que tinha como finalidade formar nos estudos religiosos membros escolhidos do clero subalpino. Os escolhidos deviam ser laureados em teologia e em direito e dedicavam-se por quatro anos ao estudo do direito canônico e da sagrada eloqüência e às conferências de moral. De volta às respectivas dioceses, eram preferidos a outros na colação dos benefícios e na promoção às dignidades eclesiásticas. Foi supressa em 1855, mas já havia ficado sem alunos desde 1843, após a expulsão do teólogo Guilherme Audísio. O teólogo Guilherme Audísio (1802-1882) nasceu em Bra e morreu em Roma. Diretor espiritual das escolas em 1833. Presidente da Academia de Superga, colaborador do jornal L’Armonia, escreveu sobre direito canônico, história eclesiástica e sagrada eloqüência. Faleceu em Roma, onde foi cônego de São Pedro e professor. Era muito consultado como competente canonista. Suas posições sobre a situação italiana daqueles anos lhe criaram dificuldades tanto em Turim quanto em Roma.
45. 21 O MARQUÊS CAVOUR E SUAS AMEAÇAS - NOVOS TRANSTORNOS PARA O ORATÓRIO
21 O MARQUÊS CAVOUR E SUAS AMEAÇAS - NOVOS TRANSTORNOS PARA O ORATÓRIO
Impossível descrever o entusiasmo que esses passeios despertavam nos rapazes. Contentes com essa mistura de devoções, brinquedos e passeios, afeiçoavam-se tanto a mim, que não só obedeciam fielmente às minhas ordens, mas desejavam vivamente que lhes desse alguma incumbência. Um dia, ao ver que com um simples gesto da mão eu impunha silêncio a cerca de 400 jovens que pulavam e faziam algazarra no prado, um guarda pôs-se a exclamar:
– Se esse padre fosse um general, poderia combater contra o mais poderoso exército do mundo.
De fato, a obediência e o afeto dos meus alunos raiava pela loucura.
Isso, por outro lado, concorreu para renovar o diz-que-diz-que de que Dom Bosco podia a qualquer momento desencadear uma revolução com seus rapazes. Essa afirmação ridícula novamente mereceu crédito entre as autoridades locais e especialmente do marquês Cavour,[220] pai dos célebres Camilo e Gustavo, e que era então vigário da cidade,[221] o que equivalia a chefe do poder urbano. Mandou-me chamar ao Palácio Municipal e depois de muito discorrer sobre as intrigas que circulavam a meu respeito, concluiu:[222], Don Bosco educatore, p.118-119. Quanto as MO dizem de Cavour, e o diálogo com a marquesa Barolo, que encontraremos mais adiante, são exemplos importantes para entender, do ponto de vista literário, como Dom Bosco construiu seu conto. A imagem que as MO transmitem de Cavour corresponde nas suas grandes linhas com a de outras fontes históricas: a pertinácia com que procurava atingir seus objetivos e os métodos de que às vezes se servia lhe valeram os juízos mais duros dos liberais de seu tempo (cf. R. Romeo, Cavour e il suo tempo (1810-1842). Bari, Laterza, 1984, p. 607-610). Além disso, dispomos de elementos que dizem respeito a essa fase do relacionamento de Dom Bosco com o marquês Miguel Benso de Cavour: dia 13 de março de 1846 Dom Bosco tinha escrito a Cavour uma carta expondo a situação do Oratório, explicando que agora dispunha de um lugar onde recolher os jovens (estavam em andamento as tratativas para a casa Pinardi) e pedindo licença para abrir o novo Oratório em Valdocco. Dia 28 de março, Cavour escreve o rascunho de uma resposta que se devia dar a Dom Bosco: "Tendo eu falado com S. Ex.a o senhor arcebispo e com o conde Colegno que nenhuma dúvida pode existir sobre a vantagem de um catecismo - e que receberei de boa vontade o senhor sacerdote Bosco segunda-feira, 30, no escritório à duas da tarde. Dia 28 de março. M. Benso de Cavour" (ASCT, Vicariato, Corrispondenza, 1846, pasta 73, reproduzido em G. Bracco [ed.], Torino e Don Bosco, II, p. 25. A carta de resposta se encontra em ASC F 583 FDB 228 E 5). ]
– Meu bom padre, aceite o meu conselho: não se meta com esses canalhas.[223] Eles só causarão aborrecimentos ao senhor e às autoridades públicas. Garantiram-me que essas reuniões são perigosas, e por isso não posso tolerá-las.
– Não tenho outro objetivo, senhor marquês – respondi –, que não o de melhorar a sorte desses pobres filhos do povo. Não peço recursos pecuniários, mas somente um lugar onde recolhê-los. Espero desse modo diminuir o número dos desordeiros e dos que vão parar na cadeia.
– Engana-se meu bom padre; o senhor se cansa inutilmente. Não posso arranjar-lhe nenhum lugar, pois essas reuniões são perigosas; e onde arranjará recursos para pagar aluguéis e fazer frente a tantas despesas que lhe trazem esses vagabundos? Repito que não posso permitir essas concentrações.
– Os resultados alcançados, senhor marquês, dão-me a certeza de que não estou trabalhando em vão. Muitos rapazes totalmente abandonados foram recolhidos, libertados dos perigos, encaminhados a algum ofício e não foram parar na cadeia. Não me faltaram até agora os meios materiais; eles estão nas mãos de Deus, o qual algumas vezes se serve de instrumentos desprezíveis para realizar sublimes desígnios.
– Tenha paciência, obedeça-me sem mais; não posso permitir-lhe essas reuniões.
– Não é por mim, senhor marquês, mas pelo bem de tantos rapazes abandonados, que talvez teriam um triste fim.
– Cale-se. Não estou aqui para discutir. Trata-se de uma desordem, e eu quero e devo impedi-la. Não sabe que qualquer reunião é proibida, caso não haja legítima licença?
– Minhas reuniões não têm escopo político. Eu ensino o catecismo a meninos pobres e o faço com a licença do arcebispo.
– O arcebispo está informado de tudo?
– Plenamente informado. Não dei um passo sequer sem o seu consentimento.
– Mas eu não posso permitir essas reuniões.
– Acredito, senhor marquês, que não quer proibir-me de dar catecismo com a autorização do meu arcebispo.
– E se o arcebispo lhe disser que desista dessa ridícula empresa, o senhor oporia alguma dificuldade?
– De maneira alguma. Comecei e até agora continuei com o parecer do meu superior eclesiástico, e uma simples palavra dele seria para mim uma ordem.
– Pode ir; falarei com o arcebispo. Mas depois não se mantenha obstinado ante suas ordens, porque de outra sorte me obrigaria a medidas severas de que não quero lançar mão.
Estando assim as coisas, pensei que ao menos por algum tempo me deixariam em paz. Qual não foi, porém, meu espanto quando, ao chegar a casa, encontrei uma carta, com a qual os irmãos Filippi me despejavam do local que me haviam alugado!
– Seus meninos – diziam –, pisoteando repetidamente nosso prado, vão acabar até com a raiz da grama. De boa mente perdoamos-lhe o aluguel vencido, contanto que dentro de quinze dias nos devolva o terreno. Não podemos conceder-lhe mais tempo.
Correu voz das dificuldades que estávamos atravessando, e vários amigos vieram aconselhar-me a abandonar uma empresa, segundo eles, de todo inútil. Outros, vendo-me preocupado e sempre rodeado de meninos, começavam a dizer que eu ficara louco.[224], Don Bosco educatore, p. 120.]
Um dia, o teólogo Borel começou a me dizer na presença do padre Sebastião Pacchiotti [225] e de outros:
– Para não nos expormos ao perigo de perder tudo, é melhor salvar alguma coisa. Vamos deixar todos os jovens que temos atualmente e conservar apenas uns 20 dos mais pequenos. Enquanto continuamos a ensinar-lhes o catecismo, Deus nos abrirá um caminho e oferecerá oportunidade para fazer mais.
Respondi-lhes:
– Não é preciso aguardar novas oportunidades. O lugar está preparado. Temos um pátio espaçoso, uma casa com muitos meninos, pórticos, igreja, padres e clérigos. Tudo à nossa disposição.
– Mas onde está isso tudo? – interrompeu o teólogo Borel.
– Não sei dizer onde, mas certamente existe e é nosso.
Então o teólogo Borel começou a chorar e exclamou:
– Pobre Dom Bosco! Está de juízo turvado.
Tomou-me pela mão, beijou-me e afastou-se com o padre Pacchiotti, deixando-me só em meu quarto.
[220] Miguel Benso, marquês de Cavour (1781-1850), na sua juventude foi aguerrido antijacobino. Depois aproximou-se do regime do Consulado e do Império. Casou-se em 1805. A partir de 1819 é decurião da cidade e, desde 1833, um dos síndicos. Em 1835 foi nomeado vigário da cidade. Exerceu seu cargo com inexaurível energia e constante atividade.
[221] O vigário da cidade e de polícia era um magistrado nomeado pelo rei entre os decuriões da administração municipal de Turim. Seus poderes, judiciais, administrativos e de polícia, eram superiores aos puramente municipais, pois também tinha poderes conferidos pelo Estado. Quanto às competências de polícia, competia-lhe "promover a observância da ordem no tocante à religião, à abundância e o discreto preço dos víveres, à tranqüilidade e à Segurança pública".
[222] O diálogo entre Cavour e Dom Bosco é tirado de G. Bosco, "Cenno storico". In: P. Braido [ed.
[223] O marquês de Cavour chama-os de canalhas. Em resposta, Dom Bosco define-os como pobres filhos do povo. Logo depois, quando o marquês trata-os por vagabundos, Dom Bosco retruca, dizendo serem rapazes abandonados e meninos pobres.
[224] Cf. G. Bosco, "Cenno storico". P. Braido [ed.
[225] O padre Sebastião Pacchiotti (1806-1886), nascido na vila Sala di Giaveno, foi vigário cooperador em Castagnole, diretor espiritual, junto com o teólogo Borel, na obra Barolo, em Turim, e capelão na terra natal. Foi vereador em Giaveno por vinte e cinco anos. Recebeu a condecoração de Cavalheiro dos Santos Maurício e Lázaro. No cemitério de Giaveno, a lápide sobre sua tumba diz que "foi querido de todos pela inexaurível bondade e doçura de ânimo".
46. 22 DESPEDIDA DO REFÚGIO - NOVA ACUSAÇÃO DE LOUCURA
22 DESPEDIDA DO REFÚGIO - NOVA ACUSAÇÃO DE LOUCURA
As muitas coisas que se propalavam a respeito de Dom Bosco começavam a inquietar a marquesa Barolo, tanto mais que a prefeitura de Turim se mostrava contrária aos meus projetos.
Veio um dia ao meu quarto e começou a falar-me assim:[226]
– Estou muito contente com sua dedicação às minhas instituições.[227] Agradeço-lhe ter trabalhado tanto para introduzir nelas os cantos sacros, o canto gregoriano, a música, a aritmética e também o sistema métrico.
– Não é preciso agradecer. Os padres têm que trabalhar porque é um dever deles. Deus pagará tudo, e não se fale mais nisso.[228], e o deixasse repousar etc. etc. Não me dava atenção, dizia que os padres devem trabalhar etc. (carta Barolo-Borel FDB 541 B 6). ]
– Queria dizer que sinto bastante que as muitas ocupações lhe tenham prejudicado a saúde. Não é possível que possa continuar com a direção das minhas obras e com a dos meninos abandonados, tanto mais agora que o número deles cresceu desmesuradamente. Quero propor-lhe que se ocupe somente com o que é obrigação sua, isto é, com a direção do Pequeno Hospital, e não vá mais aos cárceres, ao Cottolengo, e suspenda de todo sua preocupação pelos meninos. Que acha?[229]
– Senhora marquesa, Deus me ajudou até agora e não deixará de ajudar-me. Não se preocupe com o trabalho. Entre mim, o padre Pacchiotti e o teólogo Borel faremos tudo.
– Mas eu não posso permitir que o senhor se mate. Tantas e tão variadas ocupações, queira ou não, prejudicam sua saúde e minhas instituições. E depois, as vozes que correm acerca da sua saúde mental, a oposição das autoridades locais, obrigam-me a aconselhá-lo…
– A que, senhora marquesa?
– Ou a deixar a obra dos meninos, ou a obra do Refúgio. Pense e depois me dê a resposta.[230]". E depois de ter citado algum fato a esse respeito, continua: "Para resumir, aprovo e louvo a obra de instrução dos meninos; mas encontro que haja perigo no reunirem-se nas portas de meus institutos dada a natureza das pessoas que aí se encontram" (carta Barolo-Borel FDB 541 B 7 e 541 B 8). A obra da marquesa Barolo se destinava a meninas em perigo de caírem na vida e a filhas de prostitutas.]
– Minha resposta já está pensada. A senhora tem dinheiro e com facilidade encontrará quantos padres quiser para sua obra. O mesmo não acontece com meus pobres meninos. Se me retirar agora, tudo irá por água abaixo; por isso, continuarei a fazer igualmente o que puder pelo Refúgio, deixarei oficialmente o cargo e me dedicarei inteiramente ao cuidado dos meninos abandonados.
– E como há de viver?
– Deus sempre me ajudou e ajudará também no futuro.
– Mas sua saúde está definhando, a cabeça está cansada; mergulhará em dívidas; virá procurar-me, e eu garanto desde agora que não lhe darei um tostão sequer para os seus meninos.[231] Aceite meu conselho de mãe. Continuarei a dar-lhe o estipêndio, e, se quiser, aumento-o. Vá passar um, três, cinco anos em algum lugar; descanse; quando estiver restabelecido, volte ao Refúgio, e será sempre bem-vindo. De outra sorte, coloca-me na desagradável necessidade de despedi-lo de minha fundação. Pense seriamente.
– Já pensei, senhora marquesa. A minha vida está consagrada ao bem da juventude. Agradeço-lhe as ofertas que me faz, mas não posso afastar-me do caminho que a Providência me traçou.
– Prefere então os seus vagabundos aos meus institutos? Se é assim, está desde já despedido. Vou arranjar hoje mesmo um substituto.[232]
Fiz-lhe ver que uma despedida tão precipitada daria motivo a suposições pouco honrosas para mim e para ela. Era melhor agir com calma e conservar entre nós a mesma caridade com a qual deveríamos ambos falar um dia no tribunal do Senhor.
– Então – concluiu – dou-lhe três meses para deixar a direção do meu Pequeno Hospital.
Aceitei a decisão, abandonando-me ao que Deus quisesse dispor a meu respeito.
Entretanto espalhava-se cada vez mais insistente a voz de que Dom Bosco ficara louco. Meus amigos mostravam-se consternados; outros riam; mas todos mantinham-se afastados de mim. O arcebispo deixava a coisa correr; o padre Cafasso aconselhava a contemporizar; o teólogo Borel silenciava. Assim, todos os meus colaboradores me deixaram só, com cerca de 400 meninos.
Nessa ocasião algumas pessoas respeitáveis quiseram cuidar da minha saúde.[233]
– Esse Dom Bosco – dizia uma delas – tem fixações que o levarão inevitavelmente à loucura. Talvez uma cura lhe faça bem. Vamos levá-lo ao manicômio e lá, com os devidos cuidados, far-se-á o que a prudência sugerir.
Encarregaram duas delas [234] de virem buscar-me de carruagem e levar-me ao manicômio. Os dois mensageiros cumprimentaram-me gentilmente; depois, perguntando por minha saúde, pelo futuro edifício e pela igreja, lançaram um profundo suspiro e prorromperam nestas palavras:
– É verdade.
Após o que convidaram-me a acompanhá-los num passeio.
– Um pouco de ar puro lhe fará bem; venha; temos uma carruagem à disposição, vamos juntos e teremos tempo para conversar.
Percebi logo o que estavam armando e sem me dar por achado acompanhei-os à carruagem, insisti que entrassem antes e tomassem assento, e, em vez de entrar, fechei de golpe a porta, dizendo ao cocheiro:
– Vá bem depressa ao manicômio,[235] onde estes dois padres estão sendo esperados.
[226] Ao que parece este diálogo foi construído baseado na carta Barolo-Borel de 18/5/1846 (ASC A 141240 FDB 541 B 5 - B 8). Por meio da ironia com que descreve o diálogo com a marquesa Barolo, Dom Bosco esconde o heroísmo de sua opção de ficar na pobreza, mas com os meninos.
[227] "Senhor teólogo, o senhor escolheu o ótimo Dom Bosco e mo apresentou. Agradou também a mim desde o primeiro momento e encontrei nele aquele ar de recolhimento e de simplicidade próprio das almas santas…"
[228] "Recordar-se-á de quantas vezes lhe recomendei que tivesse cuidado [com a saúde dele
[229] "Foi então que recebi uma carta sua, senhor teólogo, onde o senhor me dizia que Dom Bosco não estava mais em condições de cobrir o cargo que lhe fora confiado. Logo respondi que eu estava pronta a continuar a pagar o estipêndio a Dom Bosco com a condição que não fizesse mais nada, e estou pronta a manter a minha palavra. O senhor teólogo crê que não é fazer nada confessar, exortar a uma centena de meninas; eu creio que prejudica a Dom Bosco, e creio ser necessário que se afaste de Turim o bastante para não ter que cansar assim os seus pulmões" (carta Barolo-Borel FDB 541 B 6).
[230] "O senhor tem tanta caridade, senhor teólogo, que certamente mereci a opinião desfavorável que tem de mim, fazendo-me conhecer claramente que eu quero impedir a doutrina que se ensina aos meninos no domingo e os cuidados que se tem com eles durante a semana. Creio que é uma ótima obra em si, e digna das pessoas que a empreenderam; mas não creio por uma parte que a saúde de Dom Bosco lhe permite absolutamente continuar, e por outra parte creio que a reunião daqueles meninos que antes esperavam seu diretor na porta do Refúgio, e agora o esperam na porta do Pequeno Hospital, não é conveniente […
[231] "Não continuarei a dar-lhe o pequeno estipêndio que ele ficaria bem contente de receber de mim, a não ser com a condição de que se afaste de Turim para não ficar na ocasião de prejudicar gravemente à sua saúde, a qual tanto mais me preocupa quanto mais o estimo" (carta Barolo-Borel FDB 541 B 8).
[232] "Eu sei, muito reverendo senhor teólogo, que não temos os mesmos sentimentos sobre este ponto. Se não ouvisse a voz de minha consciência, estaria como de costume pronta a submeter-me ao seu juízo" (carta Barolo-Borel FDB 541 B 8).
[233] MB II, p. 414, lê este episódio à luz de Mc 3,20-21.
[234] Os encarregados do plano de internar a Dom Bosco foram os teólogos Vicente Ponzati, pároco de Santo Agostinho, e Luís Nasi. Agiram certamente com reta intenção e motivos de caridade. Nasi, especialmente, conservou-se sempre muito amigo de Dom Bosco e continuou a ajudá-lo nos catecismos, na pregação e na música.
[235] Em 1828 o manicômio passava a ocupar a nova sede construída pelo arquiteto Tarluchi em Via S. Domenico, tendo a avenida Regina Margherita às suas costas. Hoje é sede de diversos escritórios municipais e regionais.