Carta de convocação do Capitulo Geral 28
1. CONVOCAÇÃO DO CG28. 1.1. Escolha do tema. - 1.2. Outras tarefas. - 1.3. Objetivo fundamental do tema. - 1.4. Algumas questões que podemos colocar-nos. - 2. TEMA DO CG28. - 2.1. Prioridade da missão salesiana entre os jovens de hoje. - 2.2. Perfil do Salesiano para os jovens de hoje. - 2.2.1. Com Dom Bosco como modelo. - 2.2.2. Vocação e formação: - a) formação como resposta permanente ao chamado de Deus, - b) Missão e comunhão, - c) Equipas formadoras de qualidade. - 2.3. Com os leigos na missão e na formação. 2.3.1. Concretizações e resistências na missão compartilhada com os leigos. - 2.3.2. Reciprocidade nas relações entre Salesianos e leigos. - 2.3.3. Formação conjunta de Salesianos e leigos. - 2.3.4. Obras com gestão compartilhada ou entregues aos leigos. - 3. A “HORA” DO CG28.
Turim, 24 de maio de 2018
Caríssimos Irmãos,
durante a sessão do Conselho Geral refletimos sobre o próximo Capítulo Geral, do qual já comunicamos o título e o itinerário de preparação. Logo depois, dedicamos pessoalmente algum tempo para retomar o conteúdo dos últimos Capítulos gerais: desde 1972, com a celebração do Capítulo Geral Especial (CG20), que marcou um ponto de referência na história da renovação da nossa Congregação depois do Concílio Vaticano II, até o último, que se deu em 2014. Foram, portanto, quarenta e dois anos de vida da Igreja e da Congregação nos quais se sucederam oito Capítulos gerais.
Estamos no tempo do anúncio e da preparação do CG28 que será, sem dúvida e novamente, «o sinal principal da unidade na diversidade da Congregação», como afirmam as nossas Constituições.[1]
Pela dinâmica própria de cada Capítulo geral haveremos de nos encontrar como irmãos Salesianos do mundo todo diante do desafio de rever a nossa fidelidade ao Senhor, ao Evangelho e a Dom Bosco, sensíveis às necessidades dos tempos e dos lugares, deixando-nos guiar pelo Espírito Santo a fim de conhecer a vontade de Deus neste momento da história.[2]
No dia da solenidade de Maria Auxiliadora, desde Turim, com profunda alegria, faço chegar a vós esta carta com que convoco, de acordo com o artigo 150 das nossas Constituições, o CG28. Ele terá como tema: Quais Salesianos para os jovens de hoje? O Capítulo será celebrado em Valdocco (Turim), aonde retornaremos depois de sessenta e dois anos desde o último Capítulo geral ali celebrado, no mesmo lugar santo salesiano onde Dom Bosco viveu e fundou a nossa Congregação. Será um dom encontrar-nos com o nosso Pai Dom Bosco e sentir-nos verdadeiramente em casa, onde carismaticamente todos nascemos como Salesianos de Dom Bosco.
O Capítulo geral terá início no domingo 16 de fevereiro de 2020, com a solene concelebração eucarística na Basílica de Maria Auxiliadora; pensamos em fazer a conclusão no dia 4 de abril de 2020, vigília do Domingo de Ramos. O Capítulo geral terá, portanto, a duração de sete semanas.
Como Regulador, nomeei o P. Stefano Vanoli, que assume generosamente a responsabilidade de acompanhar a preparação e a realização do nosso Capítulo geral.
O tema escolhido é fruto de uma ampla e profunda reflexão do Conselho geral, que teve presentes as atuais orientações da Igreja e do Papa Francisco, em especial a celebração dos dois Sínodos dos Bispos sobre a família e a preparação do que acontecerá em outubro de 2018 sobre “Os jovens, a fé e o discernimento vocacional”.
O Conselho geral evidenciou também algumas questões emersas a partir do conhecimento sempre mais profundo da Congregação obtido por ocasião das visitas de conjunto e das visitas extraordinárias, como também da visão que cada conselheiro pôde ter da realidade da Congregação e que eu mesmo amadureci depois do estudo e das visitas que fiz até agora a sessenta e três inspetorias.
Esta percepção da Congregação permitiu-nos individuar, como explicitarei mais amplamente durante a carta, a urgência de concentrar a nossa atenção na pessoa do Salesiano que, como homem de Deus, consagrado e apóstolo, deve ser capaz de sintonizar-se plenamente com os adolescentes e os jovens de hoje e com o seu mundo para educá-los e evangelizá-los, prepará-los para a vida e acompanhá-los para o encontro com o Senhor. Ao mesmo tempo, trabalhamos com a firme convicção de não termos somente nós a responsabilidade dessa missão e de não a poder realizar sem a colaboração de outras forças.
O tema é único e articulado em três núcleos:
- Prioridade da missão salesiana entre os jovens de hoje
- Perfil do Salesiano para os jovens de hoje
- Com os leigos na missão e na formação
Com o tema proposto, que sem dúvida será uma oportunidade rica e um tempo de graça e de esperança para a nossa Congregação, o Capítulo geral deverá enfrentar alguns aspectos de caráter jurídico que são importantes para a vida das inspetorias, como, por exemplo, a revisão do Secretariado para a Família Salesiana criado no Capítulo geral anterior.
Outra tarefa, ainda, será a eleição do Reitor-Mor e dos membros do Conselho geral para o sexênio 2020-2026. Os membros do Capítulo geral oferecerão este serviço em prol da unidade e da fidelidade ao carisma de Dom Bosco e, certamente, os irmãos de todas as partes do mundo salesiano acompanharão com a oração esse momento tão importante para a nossa Congregação.
A “comissão técnica”, nomeada de acordo com o art. 112 dos Regulamentos, já trabalhou com o Regulador durante a sessão do Conselho geral e nos dias sucessivos para preparar o calendário dos trabalhos para as inspetorias, de modo que tudo caminhe da maneira mais idônea tanto em relação aos tempos como às contribuições que poderão ser oferecidas.
Muito provavelmente, as respostas das inspetorias sobre alguns aspectos da própria vida e alguns elementos jurídicos relacionados com eles exigirão do CG28 nova revisão de algumas estruturas de animação e de governo central da Congregação e das Regiões.
1.3. Objetivo fundamental do tema
O objetivo fundamental do tema do CG28 é ajudar a Congregação a aprofundar, o quanto possível, qual é e qual deveria ser o perfil do Salesiano capaz de responder aos jovens de hoje, a todos os jovens, especialmente os mais pobres e necessitados, os excluídos e os descartados, os mais frágeis e os privados dos direitos fundamentais. E isso num mundo sempre mais complexo e que experimenta mudanças velozes.
A realidade atual requer Salesianos consagrados-apóstolos preparados e dispostos a viverem a própria vida com a mente e o coração de Dom Bosco na Igreja e na sociedade, desejosos de participar, de entregar-se e de dar a vida pelos jovens do mundo de hoje, com suas linguagens, seus modos de ver e seus interesses. Podemos encontrar muitos desses jovens nas casas salesianas; muitos mais, porém, habitam outros “pátios” do mundo.
Aquilo que o CGE afirmava no seu tempo ao falar da unidade da vocação do Salesiano, ressoa hoje como profecia: «Da redescoberta dessa unidade vocacional despontará a luz da nossa “identidade” salesiana e a possibilidade do novo tipo de Salesiano que os sinais dos tempos pedem hoje».[3]
Este “tipo de Salesiano pedido hoje pelos sinais dos tempos” também evidenciará o que sobre ele se refletiu por ocasião do CG24 que, contudo, não foi suficientemente assimilado. O fato de centenas de milhares de leigos participarem agora das presenças salesianas no mundo todo requer do Salesiano uma nova abertura de mente e de coração para o bem da missão salesiana no mundo. Só compartilhando a missão poderemos dar as melhores respostas sem frustrar os adolescentes e jovens de hoje e de amanhã que tanto precisam de nós.
1.4. Algumas questões que podemos colocar-nos
É possível haver irmãos que pensem que, se temos todos o Evangelho como norma de vida cristã e Dom Bosco como pai e fundador da nossa Congregação e se professamos as mesmas Constituições, nas quais a missão salesiana está claramente definida, não deveríamos perguntar-nos qual deve ser o perfil do Salesiano que o Espírito requer hoje para uma autêntica missão entre os jovens e com o seu mundo tão novo e mutável. Contudo, devemos reconhecer francamente, como se percebe em muitas inspetorias, que a realidade se apresenta muito mais complexa e diversificada do quanto podemos pensar. A realidade não é uniforme nem simples. Por isso temos situações muito contrapostas, que nos obrigam a caminhar em vista de uma maior radicalidade, de mais coragem, com maior clareza e até mesmo maior purificação à luz do Evangelho e da fidelidade da nossa Congregação ao carisma recebido do Espírito Santo em Dom Bosco.
- Nessa realidade complexa e diversificada há irmãos, e são a maior parte, que vivem com total dedicação e sintonia com os jovens, com o mundo deles e a sua realidade; outros há que sentem que o mundo juvenil e os próprios jovens não são mais acessíveis a eles.
- A maior parte dos irmãos vive com claríssima e decidida opção pelos mais pobres e necessitados, com opção clara por aqueles que sentem todos os dias a sua dignidade pisoteada e violentada; outros irmãos refugiam-se em espaços de vida cômodos e confortáveis.
- A maior parte dos irmãos vive o ministério presbiteral como Dom Bosco, que era sacerdote sempre e em todos os lugares pelos seus adolescentes e jovens; enquanto alguns irmãos são muito influenciados pela forte tendência ao clericalismo, que tanto mal faz à própria Igreja e da qual não estamos isentos.
- Muitos irmãos vivem em total desapego, sobriedade, austeridade e generosidade no serviço aos outros, em especial em relação aos nossos destinatários privilegiados; enquanto há outros irmãos que perdem a própria identidade e liberdade de religiosos consagrados envolvendo-se em dinâmicas de busca de poder, que não poucas vezes está relacionada com a busca de dinheiro e de outras relações.[4]
- A maior parte dos irmãos, com paixão e afeto autênticos, vive traduzindo na realidade de todos os dias o que João Cagliero afirmou: «Frade ou não frade, eu fico com Dom Bosco»;[5] outros irmãos, porém, por grande falta de identidade salesiana pedem para deixar a Congregação para viverem não como religiosos consagrados apóstolos, Salesianos de Dom Bosco, mas para simplesmente exercer o seu ministério presbiteral nas dioceses em que pensaram poder viver bem ou serem simplesmente acolhidos.
- Há irmãos que compreenderam e vivem a missão compartilhada com os leigos como um grande dom para a missão. Todavia, há muitos outros que ainda têm disso profunda resistência ou até mesmo rejeição; aceitam de boa-vontade que os leigos sejam nossos dependentes, mas recusam compartilhar no mesmo nível, lado a lado, a missão e o que ela comporta.
- A maior parte dos jovens irmãos nas etapas formativas sonha empenhar todas as forças pelos jovens aos quais forem enviados,[6] preparando o coração e a mente e vivendo a formação intelectual em vista desse objetivo; e há irmãos, por outro lado, que sonham com cargos, responsabilidades que lhes deem autoridade e “certa posição”.
A nossa realidade, feita de contrastes, luzes e sombras, está pedindo de nós as mesmas coisas que o Papa Francisco, com a sua palavra viva e direta, pediu à Família Salesiana e que hoje sinto particularmente dirigida a nós: não frustrar as aspirações profundas dos jovens. Assim disse o Papa: «Dom Bosco vos ajude a não frustrar as aspirações profundas dos jovens: a necessidade de vida, abertura, alegria, liberdade, futuro; o desejo de colaborar na construção de um mundo mais justo e fraterno, no desenvolvimento para todos os povos, na tutela da natureza e dos ambientes de vida. Ao seu exemplo, os ajudareis a experimentar que só na vida da graça, isto é, na amizade com Cristo, se realizam plenamente os ideais mais autênticos. Ter a alegria de reconhecê-los na busca da síntese entre fé, cultura e vida, nos momentos em que se tomam decisões difíceis, quando se procura interpretar uma realidade complexa»[7].
2.1. Prioridade da missão salesiana entre os jovens de hoje
A reflexão sobre a história dos nossos Capítulos gerais é rica e profunda, e cada Capítulo Geral, com a luz do Espírito Santo, que devemos acolher com docilidade e abertura de coração, é como um convite dirigido hoje à nossa liberdade; não podemos, porém, contentar-nos incautamente e quase temerariamente com as glórias passadas. Quase sem ter ciência disso, podemos opor «resistência ao Espírito Santo» (At 7,51) ou «extinguir o Espírito» (Cf. 1Ts 5,19), correndo o risco de a missão salesiana que nos foi confiada ser um dia entregue a outros.[8]
Por isso, quando propomos para toda a Congregação, como tema do Capítulo, fazer uma reflexão atenta sobre o perfil do Salesiano para os jovens de hoje, fazemo-lo com a necessidade inadiável de proceder livremente e com grande honestidade da única maneira que conta realmente: fidelidade ao Senhor em Dom Bosco e fidelidade aos jovens, muitos dos quais esperam não ser abandonados ao próprio destino ou desamparados como náufragos por não sermos capazes de perceber as suas necessidades ou escutar os seus apelos.
Como Dom Bosco e na fidelidade ao Espírito, devemos impor-nos dar prioridade absoluta à missão salesiana com os jovens de hoje para ser, como ele foi, «sinais e portadores do amor de Deus aos jovens, especialmente aos mais pobres».[9] A prioridade ou predileção pelos adolescentes e jovens mais necessitados do mundo de hoje, que em certo sentido é diferente do mundo dos decênios passados, condiciona objetivamente a nossa missão. Podemos dizer, como de outras vezes, que abraçar suas exigências não é opcional para nós, algo que possamos transcurar. Ao contrário, é algo essencial e constitutivo da nossa identidade carismática.
Atualmente, três quartos da população juvenil mundial vivem em países atingidos pela pobreza ou naqueles lentamente em vias de desenvolvimento, sobretudo nas periferias das grandes cidades, nas chamadas “cidades em situação de emergência”. São as vítimas do progresso e do próprio desenvolvimento, que traz na sua mesma dinâmica uma crescente desigualdade social e pobreza. Essa situação continua a ser um apelo forte para nós e para a nossa Congregação. Hoje, mais do que nunca, temos uma missão carismática original a oferecer com a mesma sensibilidade de Dom Bosco à Igreja e ao mundo, a todos os jovens, aos meninos e meninas, adolescentes e jovens excluídos, marginalizados e descartados.
O novo Capítulo geral será uma oportunidade para discernir atentamente e com coragem para examinar se as nossas presenças, as nossas obras e as nossas atividades estão a serviço dos jovens mais pobres;[10] se eles ocupam o nosso coração e estão no centro das nossas preocupações e dos nossos interesses; se concentramos as nossas energias e esforços por eles.
Um sonho que trago no coração é pensar com confiança que, um dia, no mundo todo, ao ouvir pronunciar a palavra Salesianos, ou filhos de Dom Bosco, todos entendam que se fala de nós consagrados, que sempre e em qualquer lugar e situação escolhem os jovens, todos os jovens, os rapazes e as moças mais pobres, vulneráveis e destituídos da própria dignidade porque eles precisam de nós e nos esperam. Quem são esses jovens? Segundo as palavras do Papa Francisco são, antes de tudo, os descartados, as “sobras”: «Assim teve início a cultura do “descartável” que aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova... Os excluídos não são apenas “explorados”, mas resíduos, “sobras”».[11]
E, para nós Salesianos, são estes os que precisam de nós e nos esperam:
- os verdadeiros pobres do mundo e os “descartados”
- os menores migrantes, refugiados, que chegaram a lugares desconhecidos e sozinhos
- os meninos e as meninas de rua dos vários continentes
- os menores e os jovens violados todos os dias nos seus direitos humanos e na sua dignidade
- os jovens repelidos das fronteiras porque estão sem documentos e sem oportunidades, obrigados a fazer qualquer coisa desde que possam sobreviver
- os menores e os jovens envolvidos em redes e de algum modo escravos das muitas dependências ou formas atuais de verdadeira escravidão e privação de liberdade
- os jovens do mundo do trabalho e da formação profissional e ocupacional
- os jovens com famílias totalmente desestruturadas e com profundas carências humanas e afetivas
- os jovens, enfim, de todas as raças e de todas as culturas que, em todo caso, não conhecem Jesus Cristo.
O Capítulo, enfim, deverá ser um forte apelo para retornar novamente aos verdadeiros pobres do mundo e continuar a apostar intensamente neles nos lugares e nas presenças em que já estamos trabalhando.
O Capítulo também será um forte apelo a sintonizar-nos com tantos adolescentes e jovens que nos pedem para não serem deixados sozinhos, mas serem acompanhados: jovens com famílias estruturadas ou desestruturadas que precisam da presença de um educador e de um amigo para suas vidas e a suas famílias.
A prioridade da atual missão juvenil deve abrir nossos olhos e sermos sensíveis às necessidades dos adolescentes e dos jovens que com a sua linguagem, o seu ponto de vista e compreensão pertencem ao mundo digital. Outros são sensíveis ao cuidado e ao respeito da criação e da natureza. Há jovens sensíveis à dimensão social na qual ajudar e servir, jovens que desejam oportunidades de voluntariado. E também jovens que desejam trilhar um caminho autêntico e profundo de fé. Essa mesma prioridade permite-nos entender, hoje mais do que nunca, que quando os jovens têm uma família, esse caminho só pode ser feito juntos. Esse também é o grito da Igreja e do Papa.
Isso tudo e muito mais bate hoje às portas da nossa fidelidade como Salesianos e pede-nos uma reflexão sobre o que fazer, sobre como fazer e sobre como nos prepararmos para ter algo importante e significativo a dizer e oferecer, a compartilhar.
2.2. Perfil do Salesiano para os jovens de hoje
Falar dos Salesianos de hoje e de amanhã exige que todos nós orientemos o nosso olhar a Dom Bosco porque ele é o nosso modelo. Como o CG21 já escrevia, Dom Bosco «não é para nós uma simples lembrança do passado, mas uma presença carismática, viva, operosa e projetada para o futuro. Nele nós compreendemos melhor a nós mesmos, e encontramos o verdadeiro sentido de pertença à Congregação».[12]
2.2.1. Com Dom Bosco como modelo
Tendo Dom Bosco como modelo, o Salesiano descobre:
- O Dom Bosco “homem de Deus”, cuja característica mais admirável era a unidade da sua pessoa, da sua vida e do seu trabalho.[13] A harmonia admirável entre graça e natureza magnificamente manifestada na sua pessoa faz com que o Salesiano intua facilmente que a fé enriquece toda a vida humana e que a vida encontra plenitude na fé. De fato, Dom Bosco sabia ler a realidade em que vivia e em que estava imerso, com um olhar extraordinário de fé. Por isso dizer Salesiano hoje deveria ser o mesmo que dizer homem de profunda fé.
- No centro da sua vida descobrimos o “da mihi animas cetera tolle”, como paixão apostólica cheia de motivações e de sonhos em favor dos seus jovens. A fonte disso tudo, porém, são o Evangelho e a pessoa e o coração de Cristo apóstolo do Pai. E é em Dom Bosco que podemos ver como o Espírito Santo inspira certo “modo salesiano” de intuir o rosto e o coração de Jesus Bom Pastor e a sua missão, num projeto de vida fortemente unitário no qual o aspecto humano e o divino estão intimamente unidos em vista de uma única missão: a salvação dos jovens.[14] Por isso, dizer Salesiano hoje deveria ser o mesmo que dizer paixão apostólica pelos jovens.
- À imitação de Dom Bosco, o Salesiano descobre a infinita paternidade de Deus e procura viver diante d’Ele, o Pai, com o coração cheio de alegre gratidão e de confiança. Sente que a sua missão de educador e pastor tem o seu vértice na revelação do Pai aos jovens e compreende mais a fundo Dom Bosco na sua união com Deus e no seu extraordinário senso de paternidade. E ao perceber que o modelo supremo de Dom Bosco é Cristo, o Salesiano tem a oportunidade de viver sempre mais consciente de que «o mundo atual precisa descobrir urgentemente o verdadeiro rosto de Deus e a vocação “filial” de todo homem».[15] Por isso, dizer hoje Salesiano deveria ser o mesmo que dizer filho de Deus que sabe ser e se sente pai dos jovens.
- Ser Salesiano é o nosso modo de ser intensamente Igreja. «Não é pensável qualquer dualismo entre a vida salesiana e a vida da Igreja universal ou particular. É o mesmo Espírito que anima e unifica a Igreja e que inspirou a nossa vocação salesiana».[16] Hoje, a fidelidade a Dom Bosco pede-nos como Congregação para vivermos atentos aos sinais dos tempos, atentos ao “grito” dos jovens dos quais falamos, sem perder-nos no que poderia desfigurar a nossa identidade carismática. Por isso, como dizem as nossas Constituições, já na primeira redação de Dom Bosco, editada em 1875, devemos ter no coração a paixão de ser evangelizadores dos jovens, especialmente os mais pobres, de cuidar especialmente das vocações apostólicas, de ser educadores da fé nos ambientes populares, sobretudo com a comunicação social, e de anunciar o Evangelho aos povos que ainda não o conhecem,[17] pois a paixão do “da mihi animas” não conhece fronteiras. Por isso, dizer hoje Salesiano deveria ser o mesmo que dizer identidade carismática na comunhão eclesial.
- Afirmar Dom Bosco como modelo e afirmar a fidelidade ao carisma também significa para nós retorno ao genuíno espírito do Dom Bosco do Oratório,[18] não para fazer o que ele fez, mas certamente para imitar como ele o fez, descobrindo um Dom Bosco sempre flexível em muitos aspectos, mas intensamente ligado à própria missão pelos jovens. Entende-se que não nos referimos ao Oratório para limitar-nos a uma atividade concreta entre tantas que Dom Bosco mesmo realizou. Entendemos, todavia, colher o espírito que o moveu e guiou em todos os instantes: a sua força, a sua paixão educativa e a sua criatividade, o seu dinamismo e a sua flexibilidade com toda a clareza e a firmeza que teve e que hoje representa para nós um ensinamento magistral de fidelidade dinâmica à sua específica vocação apostólica. Dom Bosco apresenta-se para nós, portanto, como verdadeiro modelo de docilidade ao carisma originário; docilidade ao chamado e à missão que lhe foi confiada, com abertura à realidade, aos tempos e às variadas exigências. Por isso dizer Salesiano hoje deveria ser o mesmo que dizer apóstolo dos jovens sempre fiel, sempre flexível e criativo.
- Ter Dom Bosco como modelo significa para o Salesiano de hoje ter a mente e o coração cheios dos valores do espírito salesiano e da espiritualidade que nos distingue e caracteriza. No espírito salesiano, a caridade é o meio e o método fundamentais do seu apostolado: a incansável amabilidade e a familiaridade são os nomes salesianos da caridade vivida entre os jovens. A simpatia, a capacidade de dar o primeiro passo, o reconhecimento prestado a todas as pessoas, o otimismo e a alegria, o espírito de família..., devem ser os elementos distintivos e específicos do nosso DNA salesiano. Por isso, dizer Salesiano hoje deveria ser o mesmo que dizer sempre educador, sempre amigo.
Dizer vocação e formação é sempre um modo de responder à pergunta: «Qual Salesiano para os jovens de hoje?». O perfil do Salesiano brotará sem qualquer dúvida do trabalho do Capítulo, e essa certeza é fonte de grande esperança.
Para ajudar a reflexão futura, indico três elementos a serem levados em consideração:
a) O Salesiano deve viver com a consciência de que o seu é um chamado, uma vocação consagrada à qual deve responder todos os dias.
b) A missão é realizada em conjunto e a formação deve ajudar-nos a vivê-la assim.
c) Para responder hoje adequadamente às exigências da formação e da missão, precisamos investir certamente em equipes formadoras de qualidade, capazes de ajudar a formação dos Salesianos para serem autênticos educadores e apóstolos dos jovens de hoje.
a) Formação como resposta permanente ao chamado de Deus
A formação, compreendida e vivida na fé, leva cada Salesiano, ao lado de seus irmãos, a responder a Deus, que é quem toma a iniciativa e o chama a seguir a Cristo de perto. É Deus que nos consagra e nos envia aos jovens, como exprimimos na nossa Profissão religiosa.[19] A vocação não é algo abstrato. É Deus que chama sempre num determinado momento da história, num determinado contexto familiar, social, religioso, cultural e econômico. É um chamado de amor e de graça que recebemos, não como um direito ou merecimento, mas com gratidão e humildade. O Salesiano jovem, filho da própria época, deve responder a esse chamado específico de Deus, e a tarefa da formação é ajudá-lo no caminho de amadurecimento e de completo abandono de si a Deus no seguimento de Cristo.
Em todo caso, esse itinerário de amadurecimento não pode ser feito fora da realidade do mundo atual, na sua diversidade e, talvez, na sua complexidade. O conjunto das necessidades e das aspirações do tempo[20] marca intensamente uma vocação.
Dom Bosco tinha grande sensibilidade para saber ler e interpretar a realidade e as exigências do seu tempo. Com essa sensibilidade deu vida à Congregação Salesiana e superou as dificuldades. Os primeiros Salesianos foram formados nesse espírito e podemos dizer que hoje é urgente assumir essa característica também no campo da formação.
Nas sociedades como as atuais, com mudanças muito rápidas e profundas, o Salesiano deverá ser capaz de permanecer aberto a essas mudanças, superando a resistência natural que se experimenta diante das novidades, das realidades desconhecidas; deverá habituar-se a buscar soluções novas, quando for necessário, sem se refugiar no “sempre se fez assim”; deverá estar disposto a aprender o novo e enfrentá-lo, disposto a dialogar sem fechamento, disponível para distinguir o que é permanente do que é mutável, capaz enfim de viver como religioso nesses contextos.
Não é estranho pensar, como a Congregação já afirmou em várias ocasiões, que as estruturas de formação devem adequar-se às necessidades dos tempos, dos lugares e das pessoas; que devem ser plurais, descentralizadas, flexíveis e funcionais. O Salesiano jovem deverá ser formado em contato com a realidade do ambiente em que vive: as famílias, os jovens da mesma idade, a vida salesiana real com as suas atividades apostólicas. Haverá de ser formado como fazem muitas pessoas, com o próprio esforço, sacrifício, sobriedade, austeridade, longe de qualquer status que seja de privilégio ou de elite. Isso tudo deveria levar a refletir sempre com flexibilidade sobre a formação do Salesiano no mundo de hoje para os jovens de hoje.
A formação deve levar-nos, certamente, a assimilar os aspectos típicos da personalidade salesiana com um estilo de vida espiritual[21] centrado em Deus Pai e no Cristo Salvador, baseado numa fé concreta que ajude o Salesiano a ler a presença de Deus no cotidiano, na história e nos acontecimentos humanos. O espírito será o da caridade inspirada na doçura de S. Francisco de Sales, como quis Dom Bosco. Com Dom Bosco como modelo, o Salesiano deverá distinguir-se por uma esperança que seja fonte de otimismo e alegria, também nas dificuldades. E será sustentado por uma sincera piedade eucarística e mariana.
Como filho de Dom Bosco, o Salesiano se distinguirá pela maturidade humana que deve caracterizar as nossas relações cheias de jovialidade, sinceridade, compreensão, capacidade de amizade e afeto verdadeiro e maduro. Isso tudo enriquecido por um estilo de relações fraternas e educativas típicas do espírito de família que nos distingue.
Naturalmente, esse caminho não pode ser percorrido sem mediações, que são várias. No início do caminho é preciso encontrar os primeiros acompanhantes. Pensando no Salesiano de hoje, são necessários e sempre mais urgentes o verdadeiro discernimento e acompanhamento.[22] É certamente importante o papel da comunidade, dos leigos da comunidade educativo-pastoral e dos irmãos da própria inspetoria; mas, antes de tudo e especialmente nos primeiros anos, a eficácia da renovação formativa dependerá em grande medida do clima que descrevemos, do verdadeiro discernimento, do acompanhamento constante e da capacidade dos formadores. Eles devem estar muito conscientes de que a formação dos irmãos será influenciada pelo seu modo de pensar e de agir. Por isso, é necessário individuar o modo de obter as melhores equipes de formadores, equipes estáveis, não improvisadas, preparadas para esse serviço. Formadores com personalidades diversas e complementares, mas muito sólidas no seu ser Salesianos.
Bem sabemos – e esse é sem dúvida um grande desafio em toda a Congregação – que a formação deve ser o resultado da ação de todos os irmãos, das comunidades formadoras, mas também das comunidades de vida ativa de cada inspetoria. Todas devem sentir-se de algum modo comunidades formadoras que, através da mesma vida cotidiana, comunicam aos irmãos jovens os valores autênticos da vocação salesiana e a alegria de vivê-los como tais.
Pensar no perfil do Salesiano para os jovens de hoje e ao mesmo tempo pensar na sua formação, haverá de colocar-nos diante de alguns desafios conhecidos[23] e em situações e convicções que devemos corrigir:
- A formação entendida como sucessão de etapas que terminam com a profissão perpétua ou com a ordenação presbiteral, sem a certeza de ter concluído o itinerário pessoal e profundo de identificação com a vocação.
- A formação entendida sobretudo e principalmente como aquisição de conhecimentos acadêmicos de natureza filosófica, teológica, pedagógica e psicológica.
- A vocação salesiana confundida, às vezes, com projeto individual que relativiza os conselhos evangélicos e esquece a importância que tem para nós a fraternidade evangélica, que deveria ser o aspecto distintivo de todas as comunidades nas inspetorias.
- A deficiência que encontramos nos “formadores”, que nem sempre são capazes de transmitir de modo evidente os valores da vida consagrada e ministerial e que não sabem como acompanhar ou guiar o processo de discernimento
- Certa falta de alegria e de vida nas comunidades apostólicas nas quais há escassez de diálogo, de afeto fraterno e de participação da própria experiência cotidiana de Deus.
Observamos com senso de responsabilidade e preocupação que não poucas vezes falta direção e objetivo nos processos de formação. Pensa-se facilmente na formação como uma etapa da vida salesiana que termina com a conclusão dos estudos. A isso, associa-se erroneamente a ideia de que, com a obtenção de um diploma ou de um mestrado, alcançamos os objetivos da formação. Precisamos reconhecer com humildade que na Congregação nem sempre há a consciência clara, com a consequente prática, de sermos formados para e em uma missão, e de ser formados para e em uma comunidade: seja a comunidade religiosa salesiana, seja a comunidade educativo-pastoral.
Quando, porém, se entende a formação como resposta permanente, por toda a vida, a Deus que nos chama para sermos servos dos jovens e profetas de fraternidade, então a direção e a finalidade ficam claras em todos os processos formativos; e, seja a missão, seja a vida em comum, têm aquela direção clara e aquela finalidade.
Eis alguns indicadores que evidenciam o risco de a formação afastar-se da missão e do valor da vida fraterna, e, portanto, da verdadeira formação do perfil salesiano para os jovens de hoje:
- Tendência a identificar “missão” e “trabalho”, esquecendo que a nossa missão na Igreja é ser sinais e portadores do amor de Deus aos jovens, para aproximá-los de Cristo, indo bem além dos serviços sociais que possamos oferecer.
- Irmãos que não consideram o acompanhamento dos jovens e o discernimento vocacional como parte integrante da pastoral juvenil.
- Propostas para a formação dos nossos jovens irmãos que dão importância secundária ou quase inexistente às experiências pastorais entre os jovens, especialmente os mais pobres. Isso está muito distante do pensamento de Dom Bosco, que acreditava que o Salesiano não devia ser formado fora da vida real, nem mesmo durante o noviciado.
- Programas de formação nos quais a reflexão sobre as experiências pastorais dos formandos é carente e falta o acompanhamento no seu ministério pastoral.
- Programas de formação nos quais os docentes são vistos apenas como professores e não como formadores; isso nos diz da necessidade de ter verdadeiros formadores e não só professores.
- Situações nas quais o tirocínio é reduzido simplesmente a um tempo de trabalho numa comunidade local, mas não representa para o Salesiano em formação inicial uma fase importante em que a experiência vivida é acompanhada e verificada e na qual se pode contar com a ajuda e o testemunho da comunidade inteira.
- Comunidades formadoras que vivem à margem ou são indiferentes em relação aos enormes e cruciais desafios missionários da Igreja e da Congregação.
c) Equipes formadoras de qualidade - [24]
A formação do Salesiano para os jovens de hoje exige equipes formadoras consistentes em termos de qualidade e quantidade, com harmonia e unidade. “Qualidade” significa que os formadores devem “viver os valores da vocação salesiana” para depois acompanhar a vida dos jovens candidatos e dos Salesianos. A “qualidade” exige educadores que vivem a sua vocação salesiana consagrada com alegria e sabem transmitir essa mesma alegria e felicidade; formadores que aprenderam a arte de discernir a voz do Espírito na vida cotidiana e sabem reconhecer a presença de Deus na vida dos jovens. Formadores autênticos e honestos, embora não perfeitos, com boa dose de paciência e respeito. A “qualidade” exige formadores que sabem acompanhar as experiências: experiências de vida comunitária, de oração, de apostolado, de vivência dos conselhos evangélicos. A “qualidade” refere-se também aos formadores que sabem trabalhar em equipe, com o diretor ou o encarregado da fase formativa específica.
Quando falamos de formadores pensamos também na presença de leigos, homens e mulheres, e na presença das famílias durante os processos de formação. Quando essas pessoas pertencem à Família Salesiana ou tiveram formação salesiana, tornam-se recursos preciosos para a formação dos jovens irmãos.
Naturalmente, como nos argumentos anteriores, devemos ter a lucidez necessária para perceber os pontos fracos que encontramos, a humildade suficiente para reconhecê-los e a vontade da Congregação de tomar providências para superá-los.
Algumas situações problemáticas e de risco que encontramos são:
- A frequente realidade de obras complexas, com poucos irmãos disponíveis para a formação inicial e equipes formadoras numericamente frágeis.
- Irmãos preparados para serem docentes de filosofia ou teologia nas primeiras fases formadoras, mas não preparados para a formação e o acompanhamento espiritual.
- A presença de irmãos formadores nas casas de formação, mas incapazes de dialogar com os jovens Salesianos.
- Formadores que não demonstram ter paixão por Deus e pelos jovens.
- A dificuldade de um modelo “vertical” de formação que não toca o coração, as motivações, as atitudes e as convicções.
- É uma pobreza a realidade de formadores com pouca experiência pastoral e uma pastoral inspetorial ligada mais a atividades isoladas do que aos processos.
- Em algumas inspetorias, países e culturas mantém-se uma nítida divisão entre os irmãos das casas de formação: formadores e formandos com grande distância entre si, muito distantes do espírito de família desejado por Dom Bosco e do clima do oratório que tanto amava e do qual cuidava diretamente.
2.3. Com os leigos na missão e na formação
Depois de muitos anos compartilhando a missão com os leigos na comunidade educativo-pastoral, a Congregação sente a necessidade de fazer uma avaliação do caminho feito, dos resultados alcançados e também das resistências encontradas. A missão compartilhada com os leigos manifesta-se claramente, sobretudo desde o CG24, como um verdadeiro caminho de redescoberta da identidade carismática e, atualmente, o único modo de realizar a missão salesiana na complexidade do mundo e na diversidade dos contextos das nossas presenças.
Outro elemento de reflexão é constituído pelo sujeito mesmo da missão, que não pode ser mais limitado à pessoa do Salesiano ou apenas à comunidade religiosa como núcleo animador. Hoje, a missão deve ser considerada como integração de Salesianos e leigos, juntos, que, por isso, se empenham juntos também na formação.
2.3.1. Concretizações e resistências na missão compartilhada com os leigos - [25]
Ao longo do caminho percorrido pela Congregação nestes anos, a realidade apresenta-se muito diversificada. Há países e inspetorias nos quais grande parte do caminho aberto pelo CG24 e por todo o magistério anterior e sucessivo da Congregação, foi realizado. Os resultados são muitos e atestam que o discernimento dos vários Capítulos gerais como também as orientações emanadas pela Congregação não são apenas possíveis, mas em algumas partes do mundo representam a única solução capaz de garantir o carisma de Dom Bosco em favor dos jovens que precisam de nós. Aprendemos muito, colhemos muitos frutos e a Congregação deve mostrar os resultados obtidos para o bem da missão.
Entretanto, em relação ao caminho das comunidades educativo-pastorais, é preciso reconhecer que em algumas partes do mundo e inspetorias surgem resistências à missão compartilhada com os leigos, e, ainda mais, resistências à formação comum em vista da comum missão juvenil. Este dado demonstra claramente que o caminho iniciado, a velocidade e as medidas adotadas são diversas e variadas, a ponto de fazer considerar prioritário esse tema quando se fala de Salesianos e leigos juntos.
Existem modelos pastorais ligados à missão muito diversos, que favorecem a confusão e, às vezes, um apreço inadequado dos estados de vida do cristão e uma valorização não adequada da pessoa consagrada e do leigo no interior de uma visão cristã correta e sinérgica.
Mantêm-se modelos de gestão errados e equivocados que, em alguns casos, nos fazem sentir como “patrões e proprietários”, “chefes” que de bom grado ostentam “poder”; há também outros modelos pastorais carismaticamente corretos, nos quais nós somos “guias”, companheiros e formadores no sistema educativo-pastoral salesiano. Às vezes, sentimo-nos encorajados a transformar esse modelo em realidade; enquanto em outros casos parece haver um cansaço que nos faz passar da sinergia da comunhão à “divisão dos poderes” sem força e sem uma visão educativo-pastoral.
Trata-se, às vezes, de resistências profundas que atingem diretamente o modelo da “Igreja de comunhão” proposto pelo Concílio Vaticano II; modelo que a própria Igreja procura realizar na compreensão de si mesma; Igreja da qual, naturalmente, nós fazemos parte.
As resistências profundas exigem de nós, como pretendemos fazer no CG28, parar para nos interrogarmos e fazer uma diagnose corajosa dos sucessos e das dificuldades encontradas na vida salesiana cotidiana. Essa diagnose é necessária porque as situações de resistência nem sempre são declaradas e acabam por ser consideradas como algo normal, um “status quo” imutável.
2.3.2. Reciprocidade nas relações entre Salesianos e leigos - [26]
Nas relações entre Salesianos e leigos entram em jogo elementos comuns como o senso de pertença à mesma comunidade educativo-pastoral, a participação no carisma de Dom Bosco, em muitos casos a mesma fé cristã, a confiança na eficácia da prática do Sistema Preventivo. Quanto mais numerosos são os elementos comuns entre Salesianos e leigos tanto mais sólida é a relação e a convergência educativo-pastoral que resulta não só mais fácil, mas também mais rica.
Estamos cientes das diferenças existentes entre Salesianos e leigos: diferença de vocação, diferença de estado de vida... Essas diferenças oferecem uma contribuição específica e própria; são uma riqueza; podem e devem contribuir muito mais para construir a harmonia mais do que a separação ou a divisão. Entre os próprios leigos das presenças salesianas no mundo encontramos diferenças importantes: crentes de fé cristã e pertencentes a outras religiões ou indiferentes; membros da Família Salesiana; leigos realmente corresponsáveis na missão e outros que se sentem “simples” subordinados; jovens imersos no carisma e jovens distantes ou indiferentes no interior da obra; voluntários e agentes pagos; famílias próximas e distantes...
Reconhecer a grande diversidade e as numerosas diferenças é o ponto de partida para imaginar, sonhar e construir um caminho comum nas nossas comunidades educativo-pastorais, com a mais ampla participação e a maior contribuição possível, valorizando de modo ímpar e positivo a contribuição que nos vem da condição específica de homens e mulheres; certamente, a presença educativa da mulher e a sua contribuição devem ter maior reconhecimento.[27]
Deve-se evidenciar outro elemento essencial da relação entre Salesianos e leigos na missão compartilhada. É a reciprocidade. Ela ajuda a superar as distâncias, a assimetria que deriva das diversas funções e do senso de superioridade que, às vezes, se manifesta. A reciprocidade deve ser construída sem anular as diferenças: o Salesiano deve conservar sempre a própria identidade consagrada e não “agir como leigo” e vice-versa. A reciprocidade ajuda a viver relações fraternas e de amizade, ricas de humanidade e de maturidade, respeitosas das pessoas sem “trair” a unicidade e a singularidade de cada uma.
A reciprocidade é um dado e produz os melhores frutos quando se evita cair em algumas tentações. Da parte dos Salesianos prevalece em algumas ocasiões a mentalidade “patronal” mais do que a do serviço prestado a todos. Somos todos servos da mesma missão na Igreja e no mundo e o nosso olhar comum deve se voltar sempre para os nossos jovens, especialmente os mais necessitados. Quando se tem uma adequada visão e assimilação do carisma, é evidente que os leigos não são nossos servidores nem simplesmente nossos “empregados”, embora com a maior parte deles, excetuados os voluntários, a relação é sempre regulada pelo contrato de trabalho. Mas é possível fazer muito mais.
Devemos estar muito atentos a essa tentação como também ao perigo de “clericalizar” os leigos. O clericalismo, longe de dar impulso às várias propostas e contribuições, aos poucos, vai apagando o ardor profético do qual a Igreja é chamada a dar testemunho no coração do povo. É oportuno reconhecer nesse mal uma visão redutiva e parcial ou distorcida e uma não aceitação consciente da eclesiologia de comunhão, que exige reconhecer igual dignidade a todas as vocações.
Ao mesmo tempo, a forte tentação experimentada por alguns leigos é a de querer obter o controle e o domínio que desaprovam nos Salesianos. Pode ser um modo de dizer, consciente ou inconsciente: «É o nosso tempo! Agora podemos comandar e manter o “poder”». Isso tudo não pode levar a nada de bom porque é trair igualmente o carisma e a corresponsabilidade em favor dos nossos destinatários.
A única via possível será a da identidade carismática, que sempre deve ser mantida e assegurada, como também da liderança compartilhada. Essa única via possível depende tanto da capacidade das pessoas e das circunstâncias como da formação, desenvolvendo um sistema de acompanhamento entre Salesianos e leigos e um sistema de controle e monitoramento da gestão das obras, das várias funções, da própria economia.
2.3.3. Formação conjunta de Salesianos e leigos - [28]
Desde o CG23 foi pedido a cada inspetoria que instituísse o Projeto Leigos. O CG24 pediu a elaboração de um Programa de Formação Salesianos-Leigos[29] com conteúdo, definição de funções, intervenções dos inspetores e das respectivas estruturas de animação inspetorial.
Nos últimos vinte e cinco anos, muitas inspetorias desenvolveram diversos planos para a formação específica dos leigos (e às vezes para Salesianos e leigos juntos), segundo as próprias necessidades em relação à missão. A formação dos leigos incorporados pela primeira vez na obra salesiana (professores, educadores, mestres, pessoal de serviço, agentes sociais...) foi percebida como um autêntico desafio. Em algumas ocasiões, diante da complexidade de algumas presenças salesianas, foi desenvolvida uma formação sistemática voltada às pessoas que devem prestar serviço de guia e coordenação: diretores leigos, coordenadores de pastoral, administradores...
Foi observado em diversos encontros interinspetoriais ou durante algumas visitas de conjunto, que há grande diversidade de qualidade e de desenvolvimento nesse âmbito. As diferenças são atribuídas à falta de um “referente central” a serviço de toda a Congregação, a quem as inspetorias poderiam dirigir-se. Nos últimos Capítulos gerais não se enfrentou a questão de modo resolutivo, embora o problema tenha sido levantado em muitas ocasiões. O próximo Capítulo geral, se for considerado oportuno, dará a possibilidade de dizer uma palavra ou tomar algumas decisões a respeito.
Tendo por base o modelo de comunhão missionária da Igreja, enriquecida pela diversidade dos carismas e do maior conhecimento dos mesmos, aceitamos o princípio fundamental de precisar um do outro, permutando os dons de cada vocação específica, tanto leigos como consagrados. O enriquecimento recíproco pede que todos tenham humildade para aprender, espírito de escuta, disponibilidade para uma maior qualificação e um itinerário formativo de qualidade na participação do carisma salesiano e na prática do Sistema Preventivo; tudo isso, tanto nas casas salesianas como nas famílias, porque a sua influência positiva transcende muitas fronteiras que são mais teóricas do que reais.
2.3.4. Obras com gestão compartilhada ou entregues aos leigos - [30]
O CG24 enfrenta esse tema referindo-se a algumas «situações novas», oferecendo orientações e critérios,[31] mas, como acontece habitualmente, a vida destes vinte e dois anos levou-nos por caminhos talvez nem sequer pensados naquele momento.
A realidade existente é muito diversificada:
- Quanto aos setores servidos, são escolas, obras sociais, oratórios...
- Quanto à colaboração dos Salesianos nas obras com gestão laical, algumas têm um Salesiano presente todos os dias; em outras, o Salesiano está presente apenas algumas horas durante a semana; em outras, o encarregado inspetorial está presente algumas vezes durante o ano.
- Quanto ao funcionamento, algumas obras deram vida à comunidade educativo-pastoral e ao seu conselho; outras têm um conselho da obra formado apenas por leigos e outras têm o conselho da obra formado por leigos com a presença de um Salesiano.
- Quanto à relação com o projeto inspetorial, algumas obras têm uma comunidade salesiana de referência; outras, referem-se apenas ao Inspetor e seu Conselho; outras são agrupadas com o critério da proximidade territorial e têm um Salesiano de referência.
- Quanto ao modelo de gestão, há obras com gestão laical que respondem diretamente ao Inspetor e seu Conselho; outras têm um estatuto especial e único e outras fazem parte de um grupo de obras reguladas por um estatuto especial para aquele grupo de casas.
- Quanto ao modelo de acompanhamento das obras, algumas recebem a visita inspetorial do próprio Inspetor; outras recebem a visita do Delegado do Inspetor, na pessoa do Vigário do Inspetor, do Coordenador inspetorial das escolas ou de algum outro chamado para essa finalidade. Outras não têm visitas inspetoriais e o acompanhamento e controle são feitos mediante a gestão econômica e financeira através do Ecônomo inspetorial, e, a revisão da animação pastoral, pelo Delegado inspetorial para a Pastoral juvenil.
Em relação ao serviço prestado e à presença dos Salesianos nas obras confiadas aos leigos há diversas visões e algumas tendências:
- Estranhamente, em alguma inspetoria, pensa-se que uma vez estabelecida a gestão laical de uma obra, os Salesianos consagrados não devam mais entrar nessa obra; ou seja, acredita-se que a sua presença não seja mais necessária.
- Em outras, os Salesianos intervêm apenas para a animação litúrgica e o acompanhamento dos jovens.
- Em outras ainda, o Salesiano é membro da comunidade educativo-pastoral.
Na variedade desse mosaico, como podem ver, as inspetorias procuraram pôr em prática o que é indicado pelo CG24 como acreditaram oportuno segundo as situações locais, as urgências, as necessidades e os contextos. Tudo parece indicar que se devam harmonizar a reflexão e a praxe para que no futuro o perfil do Salesiano para os jovens de hoje e a missão compartilhada por Salesianos e leigos possam garantir a única coisa importante: ser uma resposta viva e digna, carismática e fiel a serviço dos jovens de hoje. Isso requer da nossa visão, capacidade de reflexão e decisão, porque, caso contrário, as urgências da vida nos levarão por caminhos não pensados.
Com muita probabilidade também nisso o CG28 oferecerá uma resposta em vista das decisões a tomar, especialmente quando os dados nos disserem que em algumas inspetorias da Congregação as obras com gestão laical são tão numerosas que chegam quase à metade das presenças com comunidade salesiana. Outro caminho importante, que sem dúvida, poderá ser desenvolvido ulteriormente, pois é incipiente, é o da missão compartilhada com algum grupo da Família Salesiana (dos 31 grupos que a compõem), ou o da entrega total dessas presenças garantindo a identidade carismática e o serviço à Igreja local e à sociedade.
Caríssimos irmãos, posso garantir-lhes que o Conselho geral e eu meu mesmo de modo todo especial temos uma grande esperança neste Capítulo geral, que será certamente a continuação do caminho significativo que a nossa Congregação iniciou nos últimos oito Capítulos gerais após o compromisso de renovação da vida consagrada promovida pelo Concílio Vaticano II.[32]
O CG28 poderá ser um Capitulo no qual, mais do que concentrar a atenção num argumento da vida eclesial ou religiosa que não cremos suficientemente aprofundado, seremos chamados a discernir com realismo, coragem e determinação a orientação do caminho a percorrer no século XXI, num momento eclesial muito especial de renovação e purificação.
Somos chamados a:
1. Dar, de fato, prioridade e centralidade nas nossas escolhas à missão salesiana pelos adolescentes e jovens mais pobres e necessitados, por aqueles que, como não têm voz, precisam da nossa voz e das nossas escolhas em favor deles. Dar também prioridade ao acompanhamento de tantos milhares de adolescentes e jovens desta era digital, que se movem em “outro universo”, do qual podemos ficar alheios, e que nos pedem uma presenta afetiva e eficaz e um acompanhamento, para eles e talvez para suas famílias.
2. Continuar a nos formar e, sobretudo, acompanhar a formação dos Salesianos jovens de hoje e de amanhã, para que o desejo dos seus corações seja serem “outro Dom Bosco hoje”, apaixonados por Cristo, por esta humanidade muitas vezes sofredora e pelos seus jovens. Salesianos em processo permanente de fidelidade, empenhados em evidenciar e erradicar as tentações de superficialidade, banalidade, ostentação, clericalismo, poder e comodidades; os jovens de hoje, que nos salvam disso tudo, precisam sobretudo do Salesiano educador-pastor, amigo, irmão e pai que, simplesmente por viver cheio de Deus, dá a vida sem buscar a si mesmo.
3. Continuar com “passos de gigante” explorando todo o potencial apostólico que temos, Salesianos e leigos, na missão compartilhada; ser audaciosos em diagnosticar o que até hoje não nos permitiu desenvolver plenamente a visão profética que teve a nossa Congregação e que será decisiva no futuro para o desenvolvimento da missão, da força pastoral da Congregação e da qualidade da vida consagrada de todos os Salesianos, como consagrados “mais livres de” e “mais livres para”, como o Senhor Jesus.
Estou convencido de que na grande maioria dos irmãos é forte o desejo de uma maior autenticidade humana, de uma grande profundidade espiritual e de uma mais radical coerência vocacional. Peçamos ao Espírito Santo que o Capítulo Geral 28 seja uma oportunidade para dar esse passo, perguntando-nos: Quais Salesianos para os jovens de hoje?
Concluo esta carta de convocação do Capítulo Geral convidando-vos a invocar o Senhor pela intercessão de Maria sua Mãe,[33] que é Mãe da Igreja e da nossa Família, Mãe ao redor da qual Dom Bosco quis construir as suas comunidades e as suas obras como verdadeiras famílias.
Senhor Jesus Cristo,
deste a Dom Bosco
como Mãe, Mestra e Auxiliadora
a tua mesma Santíssima Mãe,
e, por seu intermédio, lhe indicaste
o campo da missão,
inspirando-o a fundar a nossa Sociedade.
Continua a olhar com benevolência esta tua Família,
e faze com que sintamos sempre viva entre nós
a presença e a ação de Maria,
«Mãe da Igreja e Auxiliadora dos cristãos».
Entregues a ela e sob a sua guia,
dá-nos ser entre os jovens
testemunhas do teu amor inesgotável. Amém.
Ángel Fernández Artime
Reitor-Mor
[1] Const. 146.
[2] Ibid.
[3] CGE, 127
[4] EG, 55 e 57.
[5] MB VI, 335.
[6] Cf. Const. 24.
[7] Francisco, Como Dom Bosco com os jovens e para os jovens. Carta do Papa Francisco ao Reitor-Mor dos Salesianos, LEV, Cidade do Vaticano 2015, 9 [Tradução do Boletim Salesiano, julho de 2015, Rede Salesiana Brasil].
[8] Cf. CGE, 18.
[9] Const. 2.
[10] Reg. 1.
[11] EG, 53.
[12] CG21, 163.
[13] Cf. CGE, 83 §1.
[14] Cf. Const. 26.
[15] CGE, 90.
[16] Projeto de vida dos Salesianos de Dom Bosco. Guia à leitura das Constituições salesianas, Edebê: Brasília, 2016, p. 122.
[17] Cf. Const. 6.
[18] Cf. Const. 40.
[19] Cf. Const. 24.
[20] Cf. GS, 4-10
[21] Cf. Cost. 11, 12; CGE, 667; CG25, 191; CG27, 67§ 3.
[22] Cf. Sínodo dos Bispos, Os jovens, a fé e o discernimento vocacional, Documento preparatório, II “Fé, discernimento, vocação”, 2017.
[23] Cf. CG21, 47.
[24] É interessante saber o que dizem os formadores salesianos no recentíssimo estudo feito depois de longa e ampla pesquisa entre os formandos e os formadores de toda a Congregação: M. Bay, Giovani, salesiani e accompagnamento. Risultati di una ricerca internazionale, LAS, Roma 2018, 377-420.
[25] Cf. CG24, 19-21, 30-31, 36.
[26] Cf. CG24, 106,117
[27] Cf. CG24, 25,33,74,166,177-179.
[28] Cf. CG24, 43,55,101,103,138,140.
[29] Cf. CG24, 145.
[30] Cf. CG24, 39,44-47, 180-182.
[31] Cf. CG24, 180-182.
[32] Cf. ACG 394 (2006), 28-31.
[33] Projeto de vida dos Salesianos de Dom Bosco, op. cit., 132