“Isto é o meu corpo entregue por vós. Fazei isto em minha memória (1 Cor 11,24)
FAIRE L'EUCHARISTIE POUR DEVENIR EUCHARISTIE 1.1 A Eucaristia na caminhada recente da Igreja.1.2 A Eucaristia na caminhada atual da Congregação.
1.3 A Eucaristia na vida dos irmãos. 2. RECORDANDO A EXPERIÊNCIA DOS DISCÍPULOS.2.1 A primeira defecção dos discípulos (Gv 6,66-71).
2.2 O abandono consumado pelos Doze (Mc 14, 17-31).
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2.2.1 Seguir Jesus não nos garante que não iremos traí-lo.
2.2.2 Prometer muito a Jesus não nos livra de renegá-lo.
2.2.3 A aliança, traída tão logo instituída, deve, contudo, ser recordada.
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3.1.1 A vida consagrada, "memorial" mediante a obediência.
3.1.2 A vida consagrada, "sacrifício" mediante a castidade.
3.1.3 A vida consagrada, "ágape" mediante a pobreza.
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3.2.1 Da celebração à conformação.
3.2.2 Da conformação à adoração.
3.2.3 Da adoração à missão.
Roma, 7 de junho de 2007
Solenidade do Corpo e do Sangue do Senhor
Caríssimos irmãos,
cumprimento-vos com grande afeto, ao retornar de Aparecida, Brasil, sede da V Conferência do Episcopado Latino-americano e do Caribe, que contou com a participação de 13 bispos salesianos e duas FMA, além da do Reitor-Mor. Foi uma extraordinária experiência eclesial da qual falarei em outro momento. Basta-me, agora, exprimir os votos de que esta grande assembléia possa dar esperança e vida aos povos daquele continente, através de uma Igreja - e nós SDB nela - que se torne discípula enamorada e fiel do Cristo e missionária convicta e corajosa. Hoje, prefiro falar-vos de um tema que tenho muito a peito e sobre o qual venho refletindo desde o ano passado, a Eucaristia.
Estou plenamente consciente de que alguém dentre vós poderia pensar redundante, senão supérflua, uma nova carta sobre a Eucaristia. Não tereis esquecido, seguramente, a que o P. Vecchi escreveu sobre o tema no Ano Jubilar de 2000 "para redescobrir o mistério eucarístico e o seu significado em nossa vida e em nossa pastoral". [1] Confidencio-lhes, porém, que já há algum tempo sentia a urgência de retomar o argumento e de vos tornar presentes as minhas preocupações. Os motivos são realmente prementes.
Empenhados como estamos no "retorno a Dom Bosco", na recuperação criativa de suas opções carismáticas geniais, de suas intuições pedagógicas acertadas, como eu gostaria que se vivesse na Congregação - sempre melhor, sempre mais - da Eucaristia, celebrada com regularidade e reconhecimento, contemplada na adoração pessoal e comunitária! Como anunciar melhor a morte do Senhor até que Ele venha, senão comendo desse pão e bebendo desse cálice, e sendo nós mesmos "pão partido" para os irmãos e para os jovens e "libação", para que eles tenham vida em abundância? (cf. 1Cor 11,26). Como levar os nossos jovens a conhecerem com mais eficácia o Deus que nos amou por primeiro (cf. 1Jo 4,8-9.19) e sem limites (cf. Jo 13,1)?
1.1 A Eucaristia na caminhada recente da Igreja
Fonte e cume da vida e da missão da Igreja, [2] o dom da Eucaristia, "sempre religiosamente conservado como preciosíssimo tesouro", [3] acompanhou e estimulou a caminhada de renovação percorrida pela Igreja desde o Vaticano II até aos nossos dias. Dificilmente poderia ter sido de outra forma: "a celebração eucarística está no centro do processo de crescimento da Igreja"; [4] na verdade "a Igreja vive da Eucaristia. Esta verdade não exprime apenas uma experiência cotidiana de fé, mas encerra sinteticamente o núcleo do mistério da Igreja". [5]
O Concílio ainda não tinha sido concluído e Paulo VI já publicara a carta encíclica Mysterium Fidei (3 de setembro de 1965) sobre a doutrina e o culto da Santíssima Eucaristia: "os Padres do Concílio" - escrevia o Papa - "tiveram sobretudo a peito exortar os féis a participarem ativamente, com fé íntegra e com a maior piedade, na celebração deste sacrossanto Mistério". [6]
Foi, porém, no longo magistério de João Paulo II que se registrou "uma extraordinária concentração no sacramento da Eucaristia". [7] Nos primeiros anos de seu magistério ele escreveu a carta apostólica Dominicae Cenae (24 de fevereiro de 1980), em que realçava "alguns aspectos do mistério eucarístico e da sua incidência na vida de quem é o seu ministro". [8] Mais tarde, "para sublinhar a presença viva e salvífica na Igreja e no mundo" João Paulo II quis que, por ocasião do grande Jubileu, se realizasse em Roma um Congresso Eucarístico Internacional; "o Dois mil - esperava - será um ano intensamente eucarístico". [9] Três anos depois, em 2003, na Encíclica Ecclesia de Eucharistia (17 de abril de 2003) fez questão de recordar-nos que "o olhar da Igreja está continuamente dirigido ao seu Senhor, presente no Sacramento do Altar, no qual ela descobre a plena manifestação do seu imenso amor". [10] No ano seguinte, com a Carta apostólica Mane nobiscum Domine (7 de outubro de 2004), João Paulo II proclamou um ano inteiro no qual desejou a Igreja "particularmente empenhada em viver o mistério da Santa Eucaristia... na caminhada dos nossos questionamentos e das nossas inquietações, às vezes das nossas ardentes desilusões". [11] O Congresso Eucarístico Internacional, realizado em Guadalajara (México) de 10 a 17 de outubro de 2004; a Assembléia Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre o tema: "A Eucaristia fonte e cume da vida e da missão da Igreja", realizado no Vaticano de 2 a 23 de outubro de 2005; e a Jornada Mundial da Juventude, celebrada em Col&ocric;nia, Alemanha, de 16 a 21 de agosto de 2005, para fazer da Eucaristia "o centro vital" ao redor do qual os jovens deviam recolher-se "para alimentar sua fé e seu entusiasmo", [12] foram os eventos que marcaram esse Ano da Eucaristia, com o qual culminava uma caminhada específica "no sulco do Concílio e do Jubileu". [13]
Duas dessas iniciativas, "desenvolvimento natural da direção pastoral" que João Paulo II quis imprimir à Igreja no início do Terceiro Milênio [14] , foram assumidas de bom grado e levadas a termo por Bento XVI.
Durante a vigília de 20 de agosto de 2005, na esplanada de Marienfeld, o Papa voltava a conclamar os jovens à adoração do mistério, antes de convidá-los na celebração eucarística do dia seguinte a participar do mistério e identificar-se em Cristo: "pão e vinho - disse o Papa - tornam-se seu Corpo e Sangue. A esta altura, porém, a transformação não se deve deter, antes é aqui que deve começar plenamente. O Corpo e o Sangue de Cristo são-nos dados para que nós mesmos sejamos transformados por nossa vez. Nós mesmos devemos nos tornar o Corpo de Cristo, consangüíneos dele... A adoração [...] torna-se união. Deus não está mais apenas diante de nós, como o Totalmente Outro. Está dentro de nós, e nós estamos nele". [15]
Bento XVI, que presidira pessoalmente os momentos relevantes da Assembléia sinodal, publicou depois a Exortação Apostólica pós-sinodal Sacramentum caritatis (22 de fevereiro de 2007), para "retomar a multiforme riqueza de reflexões e propostas [...], com a intenção de explicitar algumas linhas fundamentais de empenho tendentes a despertar na Igreja novo impulso e fervor eucarístico". [16] Além de aceitar e citar expressamente tantas intervenções valiosas dos Padres sinodais, o Papa quis "colocar esta Exortação na linha da sua [minha] primeira Carta Encíclica - a Deus caritas est -, na qual várias vezes falou [falei] do sacramento da Eucaristia pondo em evidência a sua relação com o amor cristão, tanto para com Deus como para com o próximo: «O Deus encarnado atrai-nos todos a si. Assim se compreende por que motivo o termo ágape se tenha tornado também um nome da Eucaristia; nesta, a ágape de Deus vem corporalmente a nós, para continuar a sua ação em nós e através de nós»". [17]
A caminhada da Igreja, nestes últimos anos, particularmente a partir do ano Jubilar, "foi, sem dúvida, caracterizado em sentido fortemente eucarístico". [18] Não poderia ser de outro modo: "a Eucaristia é Cristo que se entrega a nós edificando-nos continuamente como seu corpo... A Eucaristia é, portanto, constitutiva do ser e do agir da Igreja"; [19] se é verdade que "a Igreja vive do Cristo eucarístico, por Ele é nutrida, por Ele é iluminada", [20] é igualmente verdade que "graças à Eucaristia a Igreja sempre renasce de novo!". [21] A Igreja não pode permanecer fiel às suas origens, nem pode crescer sem a celebração da Eucaristia: "quanto mais viva for a fé eucarística no Povo de Deus, tanto mais profunda será a sua participação na vida eclesial". Mais, "toda grande reforma está, de algum modo, ligada à redescoberta da fé na presença eucarística do Senhor em meio ao seu povo". [22]
1.2 A Eucaristia na caminhada atual da Congregação
"Também para nós", escrevia-nos há alguns anos o P. Vecchi, "a renovação pessoal e comunitária, espiritual e apostólica [...] compreende a redescoberta convicta e alegre das riquezas que a Eucaristia nos oferece e das responsabilidades a que nos chama". [23] Faço minhas as suas palavras e vo-las proponho de novo como tarefa inderrogável para assumir e realizar o programa espiritual e apostólico de Dom Bosco que, assim espero, nos garantirá "reencontrar a origem do nosso carisma, a finalidade da nossa missão e o futuro da nossa Congregação". [24]
Na verdade, eu vos confiava na carta de convocação do próximo Capítulo Geral que "amadureci há algum tempo a convicção de que hoje a Congregação precisa despertar o coração de cada irmão com a paixão do "Da mihi animas". Ela poderá ter então a inspiração, a motivação e a energia para responder às expectativas de Deus e às necessidades dos jovens". [25] Nossos corações haverão de despertar somente se conseguirmos realmente sentir a paixão de Deus pelos seus, ou melhor, a senti-la com Ele. E não há caminho mais rápido e eficaz do que a celebração eucarística; pois "a Eucaristia é fonte e ápice não só da vida da Igreja, mas também da sua missão... Não podemos abeirar-nos da mesa eucarística sem nos deixarmos arrastar pelo movimento da missão que, partindo do próprio Coração de Deus, visa atingir todos os homens; assim, a tensão missionária é parte constitutiva da forma eucarística da existência cristã". [26]
Sem vida eucarística não há, portanto, vida apostólica. Dom Bosco, "homem eucarístico", [27] é, para nós, paradigma exemplar, a prova decisiva: "ele prometeu a Deus que até seu último suspiro seria pelos jovens. E foi verdadeiramente assim. A participação sacramental no sacrifício de Cristo leva a nos identificarmos em seus sentimentos apostólicos e em sua dedicação generosa pelas exigências do Reino". Assim escrevia o P. Vecchi, e acrescentava: "o elemento mais revelador, porém, de até que ponto o mistério eucarístico marca a vida de Dom Bosco [...] é a relação com a caridade pastoral que ele expressou no lema Da mihi animas, cetera tolle. Essas palavras [...] constituem o propósito e o caminho de Dom Bosco para configurar-se a Cristo, que oferece ao Pai a própria vida pela salvação dos homens". [28] Como ele, o salesiano haure da Eucaristia "conforto e impulso para ser, também em nosso tempo, sinal do amor gratuito e fecundo que Deus tem pela humanidade". [29] "Mantende, portanto, os olhos sempre fixos em Dom Bosco - encorajava-nos o saudoso João Paulo II -. Ele vivia inteiramente em Deus e recomendava a unidade das comunidades ao redor da Eucaristia". [30]
Se tornar-se missionários dos jovens, apaixonados pela salvação deles, leva-nos a viver eucaristicamente, o fato de sermos consagrados a Deus, apaixonados por Ele, obriga-nos a sermos homens da Eucaristia por "coerência eucarística, à qual a nossa existência é objetivamente chamada". [31] É fácil de entender: "memória viva do modo de existir e de agir de Jesus como Verbo encarnado diante do Pai e diante dos irmãos", [32] os consagrados vivem para fazer memória sacramental, eficaz, portanto, do sacrifício de Cristo ou, melhor ainda, para ser memória do Cristo que se sacrifica e continua a entregar-se por nós e pelos outros através de nós. A eficácia sacramental da memória eucarística não se limita a recordar a entrega pro vobis de Jesus, mas tende também, e aqui se joga a sua eficácia real, à entrega da própria vida por parte daqueles que fazem memória dele. Como todos os batizados, mas de maneira mais apropriada e exigente, os religiosos, "participando do sacrifício eucarístico, fonte e ápice da vida cristã, oferecem a Deus a Vítima divina e a si mesmo com ela"; [33] e é através dessa oferta de si que se tornam memória viva de Cristo: a entrega de sua vida repete, e por isso mesmo, 'recorda' o sacrifício de Cristo. Os consagrados vivem eucaristicamente não tanto se celebram freqüentemente a Eucaristia, mas porque gastam a vida pelos outros.
Nós salesianos, enquanto consagrados que escolheram Cristo como único sentido da própria existência, não podemos deixar de desejar instaurar com Ele uma mais plena comunhão existencial, que se atualiza no dom da própria vida. A Eucaristia, celebrada no sacramento quando recebemos o dom do Corpo entregue de Jesus e, sobretudo, celebrada com a vida sempre que nos entregamos de corpo e alma aos outros, "é viático cotidiano e fonte da espiritualidade do indivíduo e do Instituto. Nela, todo consagrado é chamado a viver o mistério pascal de Cristo, unindo-se com Ele na oferta da própria vida ao Pai através do Espírito". [34]
Caros irmãos, não consigo pensar em nós como salesianos consagrados se não conseguirmos encontrar "na celebração eucarística e na adoração, a força para o seguimento radical de Cristo obediente, pobre e casto". [35] Como poderíamos responder à nossa vocação pessoal e comunitária, se não vivermos da e pela Eucaristia?
1.3 A Eucaristia na vida dos irmãos
Tenho a impressão, vo-lo confesso um tanto preocupado, que nem todos dentre nós conseguimos fazer a caminhada que a Igreja e a Congregação esperavam de nós. Do estudo dos relatórios das visitas extraordinárias às Inspetorias, como também em minhas visitas de animação, cheguei a compreender que há na Congregação, certo déficit de vida eucarística, situação an&ocric;mala, embora não nova; o P. Vecchi, de fato, já a identificara e descrevera com exatidão; [36] por exemplo, olhando tão somente para a qualidade de nossas celebrações comunitárias, ele acenava «à confusão, às exaltações da espontaneidade, à pressa, à subestima da gestualidade e da linguagem simbólica, à 'secularização' do domingo»". [37]
Sendo correta a minha percepção, haveria motivo fundado de preocupação. Certamente este estado não é exclusivo nosso; atinge toda a comunidade cristã; manifestava-o com "profunda dor", João Paulo II que escreveu a Encíclica Ecclesia de Eucharistia justamente para "contribuir eficazmente para dissipar as sombras de doutrinas e práticas não aceitáveis, para que a Eucaristia continue a resplandecer em todo o fulgor do seu mistério". [38] Em nosso caso, porém, uma malograda ou insuficiente vida eucarística atingiria em cheio um elemento basilar do carisma e da pedagogia salesiana; chamados como somos "todos e em qualquer ocasião, a ser educadores da fé [...] caminhamos com os jovens para conduzi-los à pessoa do Senhor ressuscitado" (Const. 34).
E bem sabemos que para Dom Bosco "o fascínio e o desejo da Eucaristia são [...] o lugar onde é possível descobrir o enraizamento da fé e da caridade, o gosto pelas coisas celestes e, conseqüentemente, o grau de perfeição cristã". Jesus, sobretudo Jesus eucarístico, "domina a vida espiritual de Dom Bosco e do ambiente que tem nele o centro [...]. É este o Jesus com quem o próprio Dom Bosco conversa na visita cotidiana, feita à tarde na igreja, o Jesus diante do qual coloca seus jovens em oração enquanto vai à cidade mendigar por eles. Tratando com Ele nos últimos anos da velhice, nos quais já não consegue controlar-se plenamente, Dom Bosco trai o próprio afeto e suas Missas são banhadas de lágrimas". [39]
Como educador, Dom Bosco elevou a "princípio de pedagogia" [40] aquela que era sua convicção e experiência pessoal: "a confissão freqüente, a comunhão freqüente, a missa cotidiana são as colunas que devem reger o edifício educativo, do qual se quer manter distante a ameaça e o chicote". Com percepção educativa, acrescentava: "jamais obrigar os jovenzinhos a freqüentar os santos Sacramentos, mas simplesmente encorajá-los e oferecer-lhes a oportunidade de se servirem deles". [41] Estes princípios de pedagogia eucarística foram aplicados 'literalmente' em Valdocco, e "como orientação geral" envolveram todo o sistema educativo. [42]
O déficit de vida eucarística que, segundo meu modo de ver, pode esconder-se e crescer por trás de uma vida comunitária regular e de uma práxis apostólica às vezes frenética, manifesta-se basicamente, em primeiro lugar, com a incapacidade de fazer da celebração da Eucaristia "o ato central cotidiano de toda a comunidade salesiana, vivido como festa" (Const. 88). E, em segundo lugar, a ausência daquela "surpresa pelo mistério de Deus", [43] que nasce na contemplação assídua do seu amor sem limites revelado no Cristo eucarístico, cuja presença "em nossas casas é para nós, filhos de Dom Bosco, motivo de freqüentes encontros" (Const. 88). O mistério eucarístico, porém, "não permite reduções nem instrumentalizações; deve ser vivido em sua integridade, tanto no evento celebrativo, quanto no colóquio íntimo com Jesus logo que recebido na comunhão, como também no momento orante da adoração eucarística fora da Missa. A Igreja, então, é edificada solidamente". [44]
Determinar os sintomas do mal-estar ainda não é diagnosticar a sua verdadeira causa. Estou pessoalmente convencido de que as falhas que surgem em nossa práxis eucarística são inerentes, em certo sentido, à mesma essência do sacramento eucarístico, mas crescem na intimidade do nosso coração, e ali permanecem. "A possibilidade que a Igreja tem de 'fazer' a Eucaristia está radicada totalmente na doação que Jesus lhe fez de si mesmo [...]. Deste modo, também nós confessamos, em cada celebração, o primado do dom de Cristo [...]. Ele é, por toda a eternidade, Aquele que nos ama primeiro". [45] Esta "precedência, não só cronológica, mas também ontológica", do amor de Deus nos embaraça. A Eucaristia é mistério porque nela nos é revelado tanto amor (cf. Jo 15,13), um amor tão divino que, ultrapassando as nossas capacidades, nos consterna e nos deixa aturdidos. Embora nem sempre estejamos conscientes disso, temos normalmente dificuldade para receber o dom da Eucaristia, o amor de Deus que se tornou manifesto na entrega do corpo de Cristo (cf. Jo 3,16) que excede a nossa capacidade e desafia a nossa liberdade; Deus é sempre maior do que o nosso coração e chega lá onde não podem chegar os nossos desejos melhores.
Alguns, precisamente por entenderem como não possível, não racional, desmesurada essa vontade de entregar-se de Deus, acumulam desculpas para não recebê-lo na celebração sacramental e evitam contemplá-lo no silêncio que adora. Um amor tão extremo assusta-nos, revela a pobreza radical do nosso ser; e a necessidade profunda de amar não nos deixa tempo, nem energias, para nos deixarmos amar. Preferimos, então, ficar azafamados, refugiar-nos no fazer tanto pelos outros e dar-lhes tanto de nós, [46] privando-nos da surpresa de sermos tão amados por Deus. Perceber isso obrigaria a nos sentirmos, e nos querermos, em débito para sempre com Deus, de cujo amor adorado na contemplação e recebido na comunhão eucarística, jamais estaremos livres.
2. RECORDANDO A EXPERIÊNCIA DOS DISCÍPULOS
Não nos admiremos. Esta incapacidade não é nova; antes, é conatural a quem segue Jesus de perto. Quem a sente - não quem a consente! - confirma-se como verdadeiro discípulo, pois a adverte só quem recebe Cristo, em corpo e sangue, como dom inesperado, gratuito e incompreensível. Quem nos disse que aceitar a Cristo, pão da vida, é coisa pacífica, que podemos dar por certa, que não exige preparação, que não leva a conseqüências? Ninguém em absoluto! Não é esse o testemunho do Novo Testamento.
2.1 A primeira defecção dos discípulos (Jo 6,66-71) [47]
No-lo recorda o quarto evangelho. Quando Jesus identificou-se, na sinagoga de Cafarnaum, como pão do céu e ofereceu a sua carne como verdadeiro alimento e o seu sangue como verdadeira bebida (cf. Jo 6,55.59), "muitos discípulos", pela primeira vez, manifestaram publicamente a própria incapacidade de "digerir estas palavras" (Jo 6,60).
Não nos esqueçamos que no evangelho de João os discípulos começaram a seguir um Jesus que passava, advertidos pelo Batista e curiosos sobre o lugar de sua morada (Jo 1,35-38); não foram chamados pessoalmente por Jesus (cf. Mc 1,16-20), eles é que desejaram estar com Ele (Jo 1,39). Só começaram a crer nele quando, tendo faltado vinho durante um casamento em Caná da Galiléia, Jesus interveio para providenciá-lo com abundância para os convidados (Jo 2,1-11). Aquela fé, contudo, nascida num banquete, fenece quando foi anunciada outra nova e estupenda refeição, na qual Jesus não seria mais dono de casa ou comensal, mas alimento e bebida à mesa. Jesus revela-se não tanto como alguém que dá de comer, mas como alguém que se entrega como alimento (Jo 6,55-56).
Jesus faz esta surpreendente promessa depois de ter saciado a fome de uma multidão imensa, "aproximadamente cinco mil homens" (Jo 6,10), apresentando-se no dia seguinte como "o pão da vida" (Jo 6, 35), justamente porque, se comido, fará viver para sempre (Jo 6,58). Acrescenta-se à incredulidade do povo o escândalo dos discípulos e a deserção de muitos. [48] Pela primeira vez, não última infelizmente, Jesus pão do céu, provocou dissenso entre os seus e o abandono de muitos: a fidelidade dos seguidores foi posta à prova quando Jesus lhes anunciou a entrega do seu corpo como verdadeiro alimento e do seu sangue como verdadeira bebida. Os discípulos, que viram Jesus multiplicar o pão (Jo 6,9.13) e caminhar sobre o mar (Jo 6,19), não podiam entender que a vida eterna fosse alcançada alimentando-se da sua carne. Então, enquanto Jesus anuncia a entrega de si mesmo, os discípulos murmuram (Jo 6,19) e a maioria volta atrás (Jo 6,66).
Casual? Não, em absoluto! Este discurso (Jo 6,60a), a oferta de si, foi - e continua a ser - verdadeiro obstáculo, pedra de escândalo para os mais íntimos. Será sempre mais fácil ao discípulo seguir a Jesus do que se alimentar dele; será mais digerível acompanhá-lo do que tê-lo como alimento. Não bastou ao discípulo de então, e jamais bastará, seguir o Mestre; ele deverá alimentar-se da sua palavra e do seu corpo. Que Jesus ofereça o seu corpo como verdadeiro alimento é árduo, inadmissível (Jo 6,51-58), a ponto de p&ocric;r à prova a nossa capacidade de escuta.
O evangelista afirma que, desde o início, Jesus conhecia a incapacidade à fé de muitos de seus discípulos (Jo 6,60.66). A desilusão pessoal do discípulo, consumada por muitos, primeiramente no abandono e depois na traição, é explicada teologicamente por Jesus. O enigma da infidelidade do discípulo recebe assim uma resposta paradoxal: não crê quem o quer, mas aquele a quem é concedido crer; a fé e a fidelidade são decorrência da graça de Deus (Jo 6,64-65). Mais escandaloso ainda: não basta a simples permanência com Jesus, a convivência com ele; na verdade, o evangelista recorda-nos que, entre os que ficaram com Jesus, estava também o traidor. E Jesus o sabia (Jo 6,64; cf. 13,27): aquele que não lhe é entregue pelo Pai (Jo 6,65), vai entregá-lo (Jo 6,70-71). A eleição pessoal da parte de Jesus ainda não constitui uma salvaguarda contra a defecção.
Entretanto, onde se consumou o abandono, lá pode solidificar-se a fidelidade. Os discípulos serão incapazes de compreender e permanecer fiéis, continuando apegados às próprias evidências, às aparências superficiais; haverão de crer, porém, aqueles aos quais "foi concedido pelo Pai" (Jo 6,65): aqueles que não forem levados a ele por Deus não poderão sentir-se atraídos por Jesus nem ser seus comensais. Acolher Cristo como pão entregue é dom do Pai; e somente o crente que souber ser dom de Deus a Cristo poderá comer do corpo de Cristo e beber do seu sangue sem p&ocric;r em risco a própria vida.
A graça da fidelidade foi concedida a alguns poucos, aos doze [49] que permanecem. O seu porta-voz, Simão Pedro, reconhece que não sabem para onde ir; ficam porque - eis o motivo autêntico da fé - só Jesus tem palavras de vida, só Ele promete vida sem fim (Jo 6,68). "Nós cremos e reconhecemos" (Jo 6,69), diz em nome de todos; porque conhecer Jesus é simultâneo ao crer nele: ele torna-se conhecido ao se crer nele, ao se confiar nele; e só quem confia, permanece fiel. A fidelidade não floresce na boa vontade pessoal, nem nos melhores desejos; nasce da vontade de Deus, que nos amou sempre, por primeiro. A fidelidade torna-se possível apenas quando recebida como graça.
2.2. O abandono consumado pelos Doze (Mc 14,17-31) [50]
Fidelidade prometida ainda não é fidelidade comprovada. Os Doze, em Cafarnaum, optaram por ficar com Jesus; mas, embora advertidos durante a última ceia, no Getsêmani "abandonando-o, todos os discípulos fugiram" (Mc 14,50). Tinham-se compromissado em permanecer com quem se lhes oferecera como pão de vida; mas quando Jesus tornou realidade a sua promessa (Mc 14,22-25), teve que prenunciar a traição de um deles (Mc 14,17-21), a negação de outro (Mc 14,29-30) e o escândalo e fuga de todos os demais (Mc 14,26-27).
É realmente trágico, e nisto os quatro evangelhos são concordes, que a infidelidade dos discípulos, o seu anúncio (Mc 14,17-21; Mt 26,20-25; Lc 22,14.21-23; Jo 13,21-30) e a sua realização (Mc 14,26-42; Mt 26,30-46; Lc 22,33-34.40-46; Jo 13,37-38), tenham como contexto um ágape com Jesus, a última ceia (Mc 14,22-25; Mt 26,26-29; Lc 22,15-20), em que Jesus colocou em ação a sua promessa de entregar-se como pão e vinho (Mc 14,22.24). O anúncio da traição nesse contexto, além de unir morte de Jesus e Eucaristia, dom da vida e do pão de vida, faz com que a entrega de si na cruz seja o último, e o mais difícil, dos escândalos que os discípulos deverão enfrentar. Durante a última ceia, a primeira Eucaristia, a treva ainda estava no coração dos discípulos: só a hora da cruz dissipará a noite (Jo 13,1.27).
2.2.1 Seguir Jesus não nos garante que não iremos traí-lo
Marcos, o primeiro cronista da paixão e morte de Jesus, descreve a traição de Judas em três cenas escandidas ao longo da narração do último dia de Jesus, antes de sua morte (Mc 14,1-72). Com neutralidade surpreendente, o narrador mostra a vontade decidida de Judas de entregar Jesus às autoridades e o empenho resoluto de Jesus de entregar-se a si mesmo. O plano é concebido por "Judas Iscariotes, um dos Doze", que se oferece aos sumos sacerdotes "para lhes entregar Jesus… e procurava uma oportunidade para entregá-lo" (Mc 14,10). Jesus, "enquanto estavam à mesa comendo" (Mc 14,18), antes ainda de instituir a Eucaristia (Mc 14,22-25), revela a próxima traição e o traidor. Mais tarde, no Getsêmani, em plena noite, Judas apresentar-se-á "acompanhado de uma multidão com espadas e paus" e paradoxalmente trairá Jesus com um beijo, como se fosse seu amigo (Mc 14,43-49).
O compromisso assumido de trair Jesus não faz com que Judas renuncie a tomar lugar à mesa com Jesus; nem o fato de ser comensal com ele (Mc 14,18) e ter molhado a mão no único prato (Mt 14,20) faz com que desista de seu propósito (Mc 14,45-46). Admira, por isso, que enquanto Judas se prepara para entregar Jesus, Jesus entrega-se a si mesmo aos seus no pão partido e no vinho derramado. Se a presença à primeira celebração da ceia eucarística não salvou Judas da perfídia de trair o seu Mestre, a presença do traidor não impediu a Jesus de entregar-se por todos. Isso quer dizer que, hoje como ontem, pode-se participar da Eucaristia e, ao mesmo tempo, alimentar no coração deslealdade e má fé. Também Judas deixara tudo, um dia, para ficar com Jesus (cf. Mc 3,13); mas, depois, acabou por deixá-lo, por dinheiro, nas mãos dos inimigos (Mc 14,11).
Entretanto, pior ainda que a traição de um, talvez seja a insegurança de todos: os outros discípulos, superada a surpresa inicial, ficam tão incertos em relação à própria fidelidade que, um após outro, perguntam a Jesus se não fosse ele o traidor anunciado: "Acaso, serei eu?" (Mc 14,19). Na última ceia todos recebem o pão que é o seu corpo e o vinho que é o sangue da nova aliança (Mc 14,22-23); um deles, porém, continua a pensar em trair Jesus e os outros não estão seguros de permanecer-lhe fiéis.
A passagem do evangelho de Marcos é realmente perturbadora, não só porque descreve o que aconteceu entre Jesus e seus amigos, mas, sobretudo porque continua atual ainda hoje. Ter sido eleito pessoalmente como companheiro de Jesus (Mc 3,13), ser comensal à mesa onde Jesus serve um pão que é o seu corpo, não é garantia de fidelidade. Os Doze, aqueles que ficaram com Jesus porque tinha palavras de vida (Jo 6,68), caíram todos naquela noite da última ceia. Perguntemos-nos: como será possível que estar com ele não seja suficiente para permanecer com ele? Como será possível que comer com ele não baste para permanecer fiel?
2.2.2 Prometer muito a Jesus não nos livra de renegá-lo
Não basta nem mesmo a prometida expressão de amor entusiasmado, autêntico sim, mas imaturo. Na verdade, logo depois de ter acabado de comer, já instituída a Eucaristia, no caminho para o monte das Oliveiras, Jesus anunciou que Pedro o renegaria por bem três vezes (Mc 14,26-31); Pedro, porém, negava-o com insistência, e "o mesmo diziam também todos os outros" (Mc 14,31). Por um lado Jesus quis preveni-los, mas por outro eles se obstinam em declarar a própria disponibilidade, até mesmo a morrer com o Mestre. O mais dramático é que aquele que mais prometeu, mais renegará.
Pedro, que aqui não fala como porta-voz dos Doze, confirma o seu apego pessoal a Jesus: "mesmo que todos..., eu não" (Mc 14,29). Confiante em si, crê que pode prometer fidelidade, transformando sua segurança em temeridade; ama tanto o seu Senhor, que não consegue ouvir e acolher suas predições: "Ainda que eu tenha que morrer contigo, não te negarei" (Mc 14,31). Ele não se opõe à morte anunciada de Jesus (Mc 8,32), antes, diz-se disposto a morrer ao seu lado. Dificilmente se poderia pensar num maior amor (cf. Jo 15,13) e fidelidade; mas, na verdade coloca-se em evidência a distância que os separa. Jesus sabe que será renegado por Pedro, reiteradas vezes; Pedro, reiteradamente, recusa-se a aceitar essa advertência. O discípulo que promete fidelidade deveria lembrar-se de Pedro: a fidelidade é fruto não das promessas, mas da graça, porque é a prova do amor até ao extremo.
Marcos, com habilidade magistral, coteja as negações de Pedro no pátio com a confissão de Jesus diante do sinédrio; paralelamente a Jesus, que põe em risco a própria vida, Pedro nega tudo a fim de salvá-la (Mc 14,50-52). O único discípulo que ainda seguia Jesus não consegue enfrentar as perguntas de alguns servos. Pedro, o único que se negou a abandonar Jesus, acabará por negar que fora seu seguidor. Pedro personifica dessa forma os discípulos que renegam o próprio Senhor desde que não se reneguem a si mesmos (cf. Mc 8,34): atitude tudo mais que eucarística!
2.2.3 A aliança, traída tão logo instituída, deve, contudo, ser recordada
O corpo entregue e o sangue derramado de Jesus selam a aliança e anunciam o reino de Deus (Mc 14,24-25). A aliança instaurada na ceia não se circunscreve àqueles que a sancionaram pouco antes. O sacrifício de Jesus é para muitos (Mc 14,24; Mt 26,28). Os Doze foram os primeiros, mas não serão os únicos.
Ao narrar a instituição da Eucaristia, a tradição evangélica não quis dissimular, para nossa advertência, que todos os que comeram e beberam à mesa com Jesus na última ceia abandonaram-no logo depois (Mc 14,27.50). O fato de terem sido dignos de receber por primeiro o corpo e o sangue do seu Senhor não fez deles mais fiéis.
O caminho de Jesus para o calvário começa, não quando os inimigos o capturam, mas quando os discípulos o abandonam. A proximidade da cruz revelou a fragilidade dos discípulos e a pobreza de suas motivações no seguimento de Jesus. Não é possível a alguém seguir a Jesus e dar a vida por ele, se Jesus não entregou a sua por primeiro. Os Doze, que comeram com Jesus, quando se lhes entregou no pão e no vinho, não sabiam disso, mas poderão recordar, depois de Jesus ter morrido e ressuscitado, que entregar a vida por Ele é a tarefa de quem o recebeu na mesa eucarística.
Esta é a "memória" a ser feita (1Cor 11,24), a recordação de Jesus a reavivar continuamente até que Ele volte (1Cor 11,26). E fazer memória não é questão de livre escolha; é um mandato explícito de Jesus, transmitido àqueles que comiam com ele, antes de entregar-se. Embora Jesus soubesse que seus discípulos não seriam fiéis, não obstante vinculou-os a fazerem memória dele e do seu gesto. Este comportamento de Jesus é no mínimo curioso! Não espera que os discípulos permaneçam fiéis para ordenar-lhes que façam memória dele. Entretanto, também isso é graça: para fazer a Eucaristia não é preciso ser perfeito, basta sentir-se amado por Jesus até ao extremo.
2.3 O gesto da hora de Jesus: amar ao extremo (Jo 13,1-20) [51]
O quarto evangelho oferece-nos novamente a resposta. É bem conhecido o fato, singular e ainda não bem explicado que João, na narração da paixão de Jesus, não nos tenha transmitido as palavras da instituição da ceia; ele preferiu centrar-se no cumprimento da hora de Jesus e do seu amor extremo (Jo 13,1) "dando ênfase à relação do indivíduo crente com Jesus Cristo", [52] relação que é exemplificada no gesto feito pelo Mestre de lavar os pés de seus discípulos "durante a ceia" (Jo 13,2). O evangelista revela assim "o sentido da instituição da santa Eucaristia [...]. Jesus se abaixa para lavar os pés de seus discípulos como sinal do seu amor que chega ao extremo. Esse gesto profético antecipa o despojamento de si até à morte na cruz". [53]
O gesto de Jesus, inesperado e surpreendente, [54] só pode ser explicado por ele (Jo 13,6-20); e ele o faz no diálogo com Pedro, antes ainda de efetuar o lava-pés (Jo 13,6-11) e depois, como mestre, sentado novamente à mesa, instruindo todos os discípulos (Jo 13,12-20). Segundo Jesus, o gesto simboliza o dom total de si, o amor extremo aos seus, [55] tendo chegado a hora da passagem deste mundo ao Pai (Jo 13,1). O amor aos seus arremata sua vida, uma vez que a entrega; a vida entregue prova o seu amor sem limites. O lava-pés não é outra coisa que a figura e o sinal desse amor último (Jo 13,5). E, na verdade, a ação de Jesus, antes ainda de ser descrita (Jo 13,4-5), foi definida como um ato concreto de amor (Jo 13,1), de fidelidade extrema (cf. Jo 10,17-18).
Com a humilde ação de serviço prestado aos seus, Jesus estabelece a comunidade dos discípulos: [56] quem quiser ter parte com ele deverá deixar-se servir como senhor pelo seu Senhor (Jo 13,9.14). A "comunhão com Cristo", que se realiza na bênção do cálice e no partir o pão (1Cor 10,16), é apresentada agora como "ter parte" com ele (Jo 13,8); o preço a pagar é, justamente, deixar-se servir pelo próprio Mestre e Senhor. As objeções de Pedro são mais do que razoáveis (Jo 13,8), embora continue a não entender e a pensar de modo humano (Jo 13,7; cf. Jo 7,24; 8,15). Ele tenta recusar um gesto impróprio que humilha o seu Senhor (Jo 13,6) e contraria a imagem, os desejos, que alimenta por ele (cf. Mt 16,22). Mas, quem não se deixar servir até esse modo extremo - garante Jesus - corre o risco de não compartilhar a sua sorte (Jo 13,8). O discípulo chegará à herança do seu Senhor só se permitir ser servido por ele.
Que Jesus fale seriamente a Pedro torna-se evidente quando acrescenta: é possível ser lavado, mas não purificado (Jo 13,10; cf. 1Cor 11,26); pode-se comer com Jesus e levantar o calcanhar contra ele (Jo 13,18). A purificação não é automática, deve ser aceita, mesmo quando realizada com um humilhante lava-pés. Quem não se deixa purificar por Jesus servo, quem não o acolhe como ele é, como ele quer ser para nós (Jo 13,20), não merece permanecer com ele, e será excluído da comunidade dos crentes (Jo 13,27-30). O traidor continua impuro, porque incrédulo, e é incrédulo porque não aceita Jesus como dom (Jo 13,11; 6,64.70.71). Quem não se deixou servir por Jesus não permaneceu por muito tempo em sua comunidade; antes, continuou a comer das mãos de Jesus, mas o seu alimento foi satanás (Jo 13,26-27a; cf. Lc 22,3)! Só quem permite que Cristo se entregue no pão eucarístico, só quem se deixa servir pelo seu Senhor, será seu companheiro, não mais à mesa, mas por toda a vida. Não é fortuito que somente depois de Judas ter saído do cenáculo, Jesus se 'sentisse na glória' (Jo 13,31) e ordenasse aos seus que se amassem como ele os tinha amado (Jo 13,34-35). Jesus deu o mandamento do amor àqueles que se deixaram amar ao extremo.
"Depois de lavar os pés dos discípulos e vestir o manto" (Jo 13,12a), Jesus senta-se, recobra sua autoridade e se põe a instruir os discípulos. O gesto feito por ele não deve ser conservado como excepcional; é modelo de conduta, norma de comportamento entre eles (Jo 13,12b-14). Jesus não quer que fique como uma bela reminiscência; exige que se transforme em lei da existência cristã. O gesto é mais do que um sinal, é uma demonstração do novo modo de viver o discipulado de Jesus em comum: quem nela comanda, serve a todos (Jo 13,15; 1Jo 3,16).
Quem se reconhece como servo não pode sonhar em ser patrão; quem está consciente de ser enviado não pode evitar deixar-se enviar; para os enviados de Cristo o serviço recíproco não é de livre opção, mas norma obrigatória de comportamento (Jo 13,16). A prática do serviço fraterno constitui, além disso, a alegria do cristão, a sua bem-aventurança (Jo 13,17). É notável que a primeira bem-aventurança joanina (cf. Jo 20,19) esteja vinculada ao fazer como Jesus. O gesto extraordinário deve converter-se em prática habitual; porque não é exemplo a ser imitado, mas dom a ser acolhido. O como da ação de Jesus fundamenta o mandamento: a pessoa de Jesus, o seu gesto, é norma a seguir nas relações interpessoais em comunidade. Uma comunidade que nasceu de um ato de serviço de Jesus não pode manter-se em vida se não repetir nela esse serviço. [57]
Sendo assim, o "fazei isto em memória de mim" (Lc 22,19; 1Cor 11,24), a anamnese eucarística de execução obrigatória na Igreja, torna-se em João "fazei também vós como eu vos fiz ". O gesto 'eucarístico' a ser repetido pelas comunidades cristãs será sempre a entrega da própria vida até o fim, ao extremo, recordado no partir do pão e no serviço aos irmãos. Por que, então - eu ousaria perguntar - o lava-pés não conseguiu ser memória eucarística do Senhor Jesus até que ele volte? O serviço aos irmãos é, também, um modo eficaz de fazer memória de Cristo. Viver servindo os irmãos deve ser a outra forma concreta de recordar Cristo eucarístico.
Partir de Cristo, programa espiritual para a Igreja do Terceiro Milênio, [58] deve ser o "centro de qualquer projeto pessoal e comunitário", recordava João Paulo II aos religiosos, e acrescentava: "encontrai-o e contemplai-o de modo especial na Eucaristia, celebrada e adorada todos os dias, como fonte e cume da existência e da ação apostólica". [59] Não lhe faltavam razões. Além de "aderir sempre mais a Cristo", partir dele "significa proclamar que a vida consagrada é [...] 'memória viva do modo de existir e de agir de Jesus'". [60]
Pois bem, vo-lo repito, não há outra memória tão eficaz como a da eucaristia: só ela torna presente o Cristo rememorado. É verdade, "na celebração eucarística e na adoração" nós consagrados, encontramos "a força para o seguimento radical de Cristo". Mas não só; o mistério da Eucaristia, "viático cotidiano e fonte de espiritualidade do indivíduo e do Instituto", [61] "arrasta-nos no ato oblativo de Jesus. Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica da sua doação". [62] Fazer a eucaristia chama-nos a "viver o mistério pascal de Cristo, unindo-nos com Ele na oferta da nossa própria vida"; isto é, somos convidados a nos identificarmos com Ele, fazendo da própria vida entregue memória viva de Cristo. "Com efeito, participando do Sacrifício da Cruz, o cristão comunga com o amor de doação de Cristo e fica habilitado e compelido a viver essa mesma caridade em todas as suas atitudes e comportamentos de vida". [63] Dom Bosco exprimia-o com aquelas palavras que nos são tão caras: "Eu por vós estudo, trabalho, santifico-me". Em suma, "no próprio 'culto', na comunhão eucarística, está contido o ser amado e o amar por sua vez aos outros. Uma Eucaristia que não se traduza em amor praticado concretamente é em si mesma fragmentária. [64]
"'Fazer-se eucaristia', que é fazer-se dom de amor pelos outros" [65] é, justamente, "a contribuição essencial que a Igreja espera" [66] de nós. Não nos será possível dar essa contribuição à Igreja se não vivermos fazendo a eucaristia e fazendo-nos eucaristia; a Eucaristia está, na verdade, "na origem de toda forma de santidade [...]. Quantos santos tornaram autêntica a própria vida graças à sua piedade eucarística!" [67] entre os quais, bem o sabemos, também Dom Bosco.
Para melhor vos animar a partir de Cristo Eucaristia no caminho para a nossa santidade, "a nossa tarefa essencial", [68] "o dom mais precioso que podemos oferecer aos jovens" (Const. 25), permiti-me outra reflexão sobre a essência da vida consagrada e uma existência eucarística.
A vida consagrada encontra sua identidade quando espelha em suas obras a memória viva do modo de existir e agir de Jesus. Sendo peculiar à pessoa consagrada, viver estes valores evangélicos do mesmo modo como Jesus os viveu, é bom sublinhar que este Jesus, morto e ressuscitado, é por nós encontrado vivo e presente na Eucaristia; portanto, "a Eucaristia, pela sua própria natureza, está no centro da vida consagrada, pessoal e comunitária". [69] Mais ainda, poderíamos dizer que a vida consagrada, se quiser permanecer coerente consigo mesma, deve ter uma forma de ser plenamente eucarística. Na verdade, os consagrados encontram na Eucaristia o próprio modelo e a perfeita realização das exigências fundamentais de suas vidas.
3.1 A vida consagrada, "vida eucarística"
"Neste quadro" (da espiritualidade eucarística e da vida cotidiana) - e cito uma proposição, a 39