“E JESUS IA CRESCENDO EM SABEDORIA, TAMANHO E GRAÇA(lc 2,52)
A ESTRÉIA 2006Caríssimos irmãos,
escrevo no início do Novo Ano, solenidade da
Maternidade Divina de Maria, vos desejo um tempo de graça que nos faça crescer
“em tamanho, sabedoria e graça diante de Deus e dos homens”, como Jesus.
Para compreender adequadamente o papel materno de Maria em relação ao seu filho Jesus em toda a sua riqueza e profundidade, devemos partir do mistério central da nossa fé: a Encarnação do Filho de Deus que – com palavras de Paulo – “humilhou-se, assumindo a forma de escravo e tornando-se semelhante ao ser humano” (Fl 2,7).
Esta radical humanidade do Emanuel (Deus conosco), Jesus Cristo, implica um aspecto essencial do homem: a historicidade, o fato de o ser humano estar em devir, “vai-se realizando” ao longo da vida, e nunca se torna um ser já “acabado”. Tal característica está presente também em Jesus, de quem diz o evangelho de Lucas que “ia crescendo em sabedoria, tamanho e graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2,52). Essa perspectiva projeta uma luz maravilhosa sobre Maria, que – juntamente com José – teve a missão de “educar” Jesus, de ajudá-lo a desenvolver as potencialidades do seu ser humano, de forma semelhante ao que faz qualquer mãe com seus filhos. O caso de Jesus é certamente único, porque o seu núcleo mais profundo, que constitui o seu ser eterno, é o de ser Filho do Pai Celeste. Pois bem, esta filiação divina foi se desenvolvendo humanamente nele graças à ação educativa de Maria e, sem dúvida, de José, que desempenhou a figura paterna dentro da Sagrada Família de Nazaré, papel indispensável, juntamente com o da mãe, para o pleno amadurecimento de um homem.
Eis, queridos irmãos, a missão mais preciosa da família: ajudar os filhos a atingir a plena estatura humana, a do Cristo. Lamentavelmente esta realidade da família deve hoje enfrentar um desafio gigantesco, isto é, recuperar sua natureza e sua missão. Isso explica o porquê da Estréia para 2006, que aqui vos apresento. Antes, porém, gostaria de partilhar convosco uma experiência inesquecível.
Uma experiência inesquecível
Ainda que nestes últimos três meses, desde minha última carta circular, houve muitos acontecimentos que poderia partilhar convosco, entre outros os do Simposium da Vida Consagrada e da Plenária da Congregação da Vida Consagrada, de que participei, e o Sínodo sobre a Eucaristia, prefiro falar-vos de um outro evento, que me tocou profundamente.
Em 12 de novembro de 2005 vivi uma das experiências mais belas e significativas não somente da minha vida salesiana, mas de toda a minha existência humana. Tinha ido a Valdocco, também para o reconhecimento do corpo de Dom Bosco e devo dizer que qualquer expectativa minha foi absolutamente superada.
Tinha pedido ao Inspetor e ao Reitor da Basílica que, antes do ato oficial, com a presença das autoridades competentes e de alguns SDB e FMA, eu pudesse ficar sozinho com Dom Bosco, deter-me ante seu corpo, para rezar.
Desci então à Capela das Relíquias e desde o primeiro momento, ao contemplar o corpo do meu amado Pai fora da urna que normalmente o conserva e expõe à veneração dos fiéis, senti uma profunda emoção.
Com grande reverência aproximei-me e me pus a seus pés, podendo vê-lo completamente. A primeira coisa que me impressionou foi uma sensação muito especial, a de não me encontrar diante dos restos mortais de um ser amado, mas diante de um vivo. Assim transparecia do seu rosto sereno e sorridente. Parecia-me ouvi-lo dizer aos seus meninos do Oratório de Valdocco: “Dom Bosco não morrerá totalmente enquanto viver em vós”.
Trazia comigo tantas pessoas e situações da Congregação, da Família Salesiana e dos jovens que tenho no coração. Enquanto falava deles a Dom Bosco e a ele os confiava, minha oração tornou-se também uma longa ação de graças.
Pensando que desde 1929 o corpo de Dom Bosco havia sido colocado naquela urna que conhecemos, sem que jamais tivesse sido aberta, parecia-me ser chamado naquele momento histórico de graça a representar todos os Salesianos, os membros da Família Salesiana, os jovens, os colaboradores leigos, em suma todos quantos de alguma maneira se identificam com Dom Bosco, para dizer-lhe o nosso obrigado do profundo do coração por tudo aquilo que foi, por tudo o que fez, por tudo o que nos comunicou.
Somos, de fato, milhões de pessoas que, em todos os cinco continentes, fizemos nossos os seus sonhos, as suas convicções, o seu projeto apostólico, o seu dinamismo espiritual.
Enquanto contemplava seu rosto sereno e sorridente, dizia para mim: “mas, como conseguiste chegar a tanto sem que a vida te roubasse a alegria, a paz, a energia? Não sei quantas coisas terão passado pela tua mente, mas de uma coisa estou certo, de que sempre foram Deus e os jovens que a ocuparam: assim, inseparavelmente, Deus e os jovens, como dois pólos entorno aos quais girou tua vida, sentindo-te enviado por Ele a eles e por eles a Ele”.
Quanto mais o contemplava, mais queria encarná-lo e fazer com que todos os Salesianos o encarnassem. E queria ter a sua mente, o seu coração, suas mãos, seus pés para contemplar a realidade como ele a contemplou na perspectiva de Deus e dos jovens, para imaginar com criatividade e generosidade as iniciativas que levar adiante, as respostas que dar às expectativas e às necessidades dos jovens hoje, para ter a operosidade e o espírito empreendedor que caracterizaram sua própria vida gasta até ao último respiro por eles. Para me pôr a caminho – missionário dos jovens – e ir encontrá-los pelas ruas e subúrbios de Turim, imagem de todas as ruas e subúrbios.
<>Improvisamente ouvi os passos das pessoas que desciam. Dei-me conta de que o tempo tinha voado. Cumprimentei-as e começamos com grande devoção o reconhecimento, ao termo do qual tomamos uma decisão para uma melhor conservação do corpo de Dom Bosco. Devo testemunhar o cuidado extremo com que os irmãos tinham acomodado o corpo em 1929. Com efeito, tudo havia sido apuradamente preparado e decorado: do colchonete recamado à alva e amito bordados pelas Filhas de Maria Auxiliadora, à riquíssima casula com a qual foi revestido, presente do Papa Bento XV ao Pe. Paulo Albera. No fim de tudo fui convidado a segurar na mão sua cabeça, que beijei, em nome de todos, com gratidão e reverência, e dei a beijar às pessoas presentes.A ESTRÉIA 2006
Agora que vos abri meu coração, ofereço-vos o comentário à Estréia deste ano.
“O desafio da vida – dizia o Papa João Paulo II, de venerada memória, na sua última intervenção diante do Corpo Diplomático em janeiro de 2005 – realiza-se ao mesmo tempo naquele que é propriamente o sacrário da vida: a família. Ela é hoje muitas vezes ameaçada por fatores sociais e culturais que fazem pressão sobre ela, tornando difícil sua estabilidade. Mas em alguns países ela é ameaçada também por uma legislação, que lhe corrompe – por vezes mesmo diretamente – a estrutura natural, a qual é e pode ser exclusivamente a de uma união entre um homem e uma mulher fundada sobre o matrimônio. Não se deixe – prosseguia o Papa – que a família, fonte fecunda da vida e pressuposto primordial e imprescindível da felicidade individual dos esposos, da formação dos filhos e do bem-estar social, seja minada por leis ditadas por uma visão restritiva e inatural do homem. Prevaleça um sentir justo e alto e puro do amor humano, que na família encontra uma sua expressão fundamental e exemplar.” [1]
Acatando o convite do Papa de defender a vida através da família, e na oportunidade dos 150 anos da morte de Mamãe Margarida, mãe da família educativa criada por Dom Bosco em Valdocco, pensei em convidar a Família Salesiana a renovar o empenho para
dar
especial atenção à família,
berço da vida e do amor
e lugar primeiro de humanização.
Se o homem é o caminho da Igreja, a família é o “caminho do homem”, o âmbito natural em que o homem se abre à vida e à existência social. Ela é o lugar de um forte envolvimento afetivo, o contexto em que se realiza o reconhecimento pessoal. Lugar privilegiado de humanização e meio de socialização religiosa, garante a estabilidade necessária ao crescimento harmônico dos filhos e à missão educativa dos pais em relação a eles.
Crendo na sua importância estratégica para o futuro da humanidade e da Igreja, João Paulo II fez da família um dos pontos prioritários do seu programa pastoral para a Igreja nos inícios do terceiro milênio: “Deve ser assegurada também uma especial atenção à pastoral da família, ainda mais necessária na época atual, que registra uma crise generalizada e radical dessa instituição fundamental... É preciso fazer com que, por meio de uma educação evangélica sempre mais completa, as famílias cristãs ofereçam um exemplo persuasivo da possibilidade de um matrimônio vivido de forma plenamente congruente com o desígnio de Deus e com as verdadeiras exigências da pessoa humana: a pessoa dos esposos e sobretudo a pessoa mais frágil dos filhos”. [2]
1. Riscos e ameaças que pesam sobre a família hoje
p>O pensamento de João Paulo II foi retomado pelo Papa Bento XVI que, em suas intervenções, falou da família como de uma “questão nevrálgica, que requer a nossa maior atenção pastoral”, (ela) “está profundamente radicada no coração das jovens gerações e sobrecarregada de multíplices problemas, oferecendo apoio e remédio a situações de outra forma desesperadas. E todavia... a família está exposta, no atual clima cultural, a muitos riscos e ameaças que todos conhecemos. À fragilidade e instabilidade interna acresce a tendência, disseminada na sociedade e na cultura, a contestar o caráter único e a missão própria da família fundada no matrimônio”. [3]
Um ambiente cultural contrário à família
Hoje, com certa facilidade e superficialidade propõem-se e apresentam-se presumidas “alternativas” à família, qualificada como “tradicional”. Dessa maneira, a atenção se volta do problema do divórcio ao dos “amigados”, do tratamento da infertilidade feminina à procriação medicamente assistida, do aborto à procura e manipulação das células estaminais retiradas dos embriões, do problema da pílula anticoncepcional ao da pílula do dia seguinte, que também é abortiva. A legalização do aborto praticamente espalhou-se por quase todo o mundo. Acontece também que se confira aos casais efêmeros, que não querem comprometer-se formalmente no matrimônio nem mesmo civil, os direitos e as vantagens de uma verdadeira família. Tal é o caso da oficialização das “uniões de fato”, incluindo os casais homossexuais, que algumas vezes pretendem até o direito à adoção, despertando dessa maneira problemas muito graves de ordem psicológica, social e jurídica.
Destarte, o rosto – a realidade – da família está mudado. A quanto anteriormente dissemos deve acrescentar-se a marcada preferência por uma forma de crescente “privatização” e a tendência a uma redução das dimensões da família que, passando do modelo de família plurigeneracional ao de “família nuclear”, reduz esta à realidade de pai, mãe e um filho só. Mais grave ainda é o fato que boa parte da opinião pública já não reconhece na família, fundada no matrimônio, a célula fundamental da sociedade e um bem de que não se pode dispensar.