“ÉS TU O MEU DEUS, FORA DE TI NÃO TENHO BEM ALGUM” (Sal 16,2)
1. “Dou graças ao meu Deus por todos vós” (Rm
1,8) –2. “Prometi a Deus que até ao meu último respiro...” (MB XVIIII,
258) – 3. O mal-estar da vida consagrada hoje – 4. A excelência objetiva da
vida consagrada – 5. Um modelo em crise – 6. CG25, um convite a orientar-se
nessa linha – 7. Para concluir.
8 de Junho de 2003
Solenidade de Pentecostes
Caríssimos irmãos,
No início da sessão estival do Conselho
Geral ponho-me em comunicação convosco, seguindo o ritmo trimestral das cartas
que habitualmente envio a toda a Congregação. Faço-o na festa de Pentecostes,
que celebra a irrupção do Espírito Santo no Cenáculo, onde se encontravam
reunidos os discípulos de Jesus com Maria. Segundo o relato dos Atos dos Apóstolos
(cf. At 2,1-11), foi um evento que abalou profundamente o coração de cada
um deles, justamente “como um vento que sopra violento”. O Espírito Santo
que é o poder com que Deus intervém na história envolveu-os e “como fogo”
penetrou-os profundamente. O medo se desfez e deu lugar à coragem, a indiferença
deixou espaço à compaixão, o fechamento se dissolveu pelo calor, o egoísmo
foi suplantado pelo amor. A Igreja começava destarte seu caminho na história.
Desejo que o Espírito Santo, qual vento e fogo, atualize a experiência de
Pentecostes na Igreja e na nossa querida Congregação, para que possamos tornar-nos
testemunhas cada vez mais convictas, corajosas e críveis de Jesus e do seu
Evangelho.
Em minha última carta encontrastes a relação das atividades
do meu primeiro ano de serviço a toda a Congregação. Por isso, agora me conheceis
um pouco melhor e estais informados do que o Reitor-Mor faz e pensa. A vida
certamente não pára; nos últimos três meses tive uma agenda muito cheia de
compromissos: o dia no Borgo Ragazzi de Roma, os Exercícios Espirituais em
Fátima, a visita à Inspetoria de Portugal, a viagem à Terra Santa, a reunião
intermédia do Conselho Geral, a visita à Grã-Bretanha, os dias em Treviglio
e Chiari, a visita às Inspetorias da Sicília, Bilbao e Múnique na Baviera,
o dia em Bonn e Colônia, a visita à Inspetoria de Verona, a reunião da União
dos Superiores Gerais, a visita à Inspetoria Adriática.
Posso dizer-vos que conheço cada vez melhor a realidade
da Congregação, seus recursos, seu s problemas, seus desafios, suas potencialidades.
Além disso, aprendo cada vez mais as tarefas que se deve cumprir como Reitor-Mor.
É uma missão muito bonita e exigente, diante da qual me sinto inadequado em
relação às necessidades e expectativas. Sinto, pois, a necessidade da vossa
compreensão e sobretudo das vossas orações, para que possa tornar-me, como
desejo, um Sucessor de Dom Bosco paterno e de longa visão, fiel e dinâmico.
1. “Dou graças ao meu Deus por todos
vós” (Rm 1,8)
Antes de partilhar convosco algumas reflexões sobre
a vida religiosa, esperando vos sejam úteis como estímulo espiritual, pastoral
e vocacional, quereria agradecer a cada um de vós a doação de sua vida a Deus
nas pegadas de Dom Bosco.
Sinto-me na obrigação de agradecer-vos;
faço-o de boa vontade com esta carta, como também o faço pessoalmente quando
vos encontro ao visitar as inspetorias e as comunidades. Por um lado, todo
irmão é um tesouro para a Congregação; não me cansarei nunca de repeti-lo
e de procurar fazê-lo sentir. Por outro, a vocação salesiana, seja laical
seja presbiteral, é um dom extraordinário para cada um de vós. Esta é a minha
experiência e imagino seja também a vossa. Parece-me rezar alguns salmos nessa
luz, como por exemplo o Salmo 16 (15), no qual lemos: “Eu digo ao Senhor:
És tu o meu Senhor, fora de ti não tenho algum bem... O Senhor é a minha parte
da herança e o meu cálice que me dá alegria... Esplêndida é a sorte que me
coube, magnífica a herança que recebi” (vv. 2.6). E não me refiro ao fato
de ser Reitor-Mor, que é um ministério a ser desempenhado temporariamente,
mas o dom inestimável da vocação como projeto de vida centrado em Jesus, que
nos chama pelo nome, escolhe-nos para estar consigo e para partilhar a sua
paixão por Deus e pelo homem (cf. Mc 3,13-15). Ter uma vocação significa haver
descoberto que a vi da tem sentido: um “sonho” bonito – o de Deus – a ser realizado,
uma missão – concedida por Deus – a desempenhar, um meta – pessoas que nos
foram confiadas – por atingir. Isto enche de força e de alegria toda uma vida,
que resulta unificada como foi a de Dom Bosco (cf. Const. 21). Esta é a vocação
salesiana.
Ela é um dom do Senhor tão precioso que deve ser cuidadosamente
cultivado e deve ser proposto decididamente aos jovens porque queremos que
eles sejam felizes como nós. Convenço-me cada vez mais que o problema maior
e mais espalhado entre os jovens não é o que chama a atenção, como a droga
e o álcool, e nem mesmo a confusão no campo da sexualidade, ainda que infelizmente
muitíssimos jovens estejam neles envolvidos – e isto é um problema que não
nos pode deixar indiferentes. O verdadeiro problema é a falta de rumo, de
horizonte, de sentido, de projeto de vida. Isto os leva a viver superficialmente,
consumindo coisas e experiências, sem um elemento que unifique e dinamize
sua vida. Agradeço-vos, pois, pela vossa vocação, que será sempre mais rica
da melhor biografia. Como poder, com efeito, recolher no fim da vida, num
livro ou numa carta mortuária, uma história de fidelidade a Deus pelos jovens,
tecida de alegria e tristezas, sonhos e desilusões, esperanças e frustrações,
suor, lágrimas e sorrisos?
Permiti-me, então, faça minhas as palavras
de Paulo para agradecer a Deus tudo o que sois – consagrados por Deus aos
jovens – e por aquilo que Deus é para vós – o único e supremo bem. Como o
Apóstolo, também eu “primeiramente dou graças ao meu Deus, através de Jesus
Cristo, por todos vós, pois no mundo inteiro se faz o elogio de vossa fé.
Deus, a quem presto um culto espiritual, servindo ao evangelho do seu Filho,
é testemunha de que constantemente faço menção de vós, pedindo sempre em minhas
orações que eu possa, enfim, fazer uma boa viagem até vós , de acordo com a
vontade de Deus. Pois desejo vivamente estar convosco, para vos comunicar
algum dom espiritual, a fim de serdes confirmados, ou melhor, a fim de que
todos nós sejamos reconfortados, eu por vós e vós por mim, graças à fé que
nos é comum.” (Rm 1,8-12).
2. “Prometi a Deus que até meu último
respiro...” (MB XVIII, 258)
Como lembrais, já
na minha primeira carta eu vos expressei o desejo de querer fazer da santidade
um programa de vida, uma opção de governo, uma proposta educativa. Desse ponto
de vista havia-me animado a dizer que aquela primeira carta não era uma entre
outras, mas que queria tornar-se o texto programático do sexênio.
E quando falo de
santidade, não penso em algo genérico ou num ideal a ser proposto indistintamente
a todos; estou pensando em nós salesianos. Por isso, quando falo de santidade,
penso numa vida de santidade que nos é própria: a santidade salesiana,vivida
segundo o modelo do nosso amado pai Dom Bosco. Refiro-me precisamente à santidade
que somente se pode alcançar e viver na qualidade de consagrados por Deus
à missão salesiana: “Nossa vida de discípulos do Senhor é uma graça
do Pai que nos consagra com o dom do seu Espírito e nos envia para
ser apóstolos dos jovens” (Const. 2).
A nossa é, pois,
uma santidade consagrada, um dom específico que Deus nos faz para os
jovens aos quais somos enviados. Tudo isso tem conseqüências. Quereria deter-me
convosco sobre este aspecto da santidade salesiana, que julgo totalmente estratégico,
porque “nós Salesianos de Dom Bosco” entendemos “realizar o projeto apostólico
do fundador numa forma específica de vida religiosa” e porque
“no cumprimento desta missão, encontramos o caminho da nossa santificação”
(Const. 2).
Não raro, visitando
a Congregação, aconteceu-m e encontrar irmãos transbordantes de energias e
coragem apostólica, que trabalham em obras estupendas dedicadas aos meninos,
que, entretanto, não parecem estar sustentados e animados por igual paixão
por Deus. De modo que, se por um lado só se pode apreciar tal doação, de outro
não se pode deixar de perguntar qual o motor real de tamanha atividade. Nós
sabemos que a missão salesiana e a Congregação, que surgiu a seu serviço,
nasceram de Deus e em Deus renascem: o salesiano, com efeito, foi “enviado
aos jovens por Deus” (Const. 15); a Sociedade à qual pertence “não nasceu
apenas de projeto humano, mas por iniciativa de Deus” (Const. 1); além disso,
o traço mais característico da nossa vocação, o que nos é mais caro, “a predileção
pelos jovens”, “é um dom especial de Deus” (Const. 14). Deus está na origem,
como fonte e fundamento, da nossa missão salesiana; e assim deve permanecer.
Essa realidade objetiva é vivida por cada um e transparece através da própria
vida.
Não foi diferente
a experiência pessoal de Dom Bosco. Padre pastor dos jovens por vocação, torna-se
para eles e com eles educador solícito; e o educador-pastor dos jovens faz-se
fundador de institutos religiosos, “religioso ele próprio, formador de consagrados
e, mais tarde, de consagradas... O problema jovens, com efeito, se lhe manifestara
muito complexo e comprometedor para se julgar-se resolvido tão-somente com
o envolvimento ocasional e voluntarista de colaboradores flutuantes”. [1]
“A experiência demonstrava
que o pessoal voluntário não garantia estabilidade, continuidade, homogeneidade
de ação, quando, ao invés, o planeta jovens se revelava sempre mais complexo
e o abandono e a pobreza mais vastos e articulados. Era conseqüencial o repensamento
radical do problema dos operadores, do seu status espiritual e jurídico
e da sua organiz ação. Dom Bosco teria escolhido enfim a forma da sociedade
religiosa, ladeada de outras forças associadas.” [2]
Assim sendo, consciente
de que a missão entre os jovens, especialmente os mais pobres, abandonados
ou em risco, exigia “um vasto movimento de pessoas” (Const. 5), Dom Bosco
teve de buscar entre os próprios jovens os seus colaboradores melhores, os
que compartilhavam com ele uma mesma experiência espiritual e apostólica,
a de Valdocco, e que, convidados por Dom Bosco a “ficar com ele”, tornaram-se
os primeiros salesianos.
“Ele partira de meninos,
que não tinham nenhuma idéia de vida religiosa... Por estarem na casa de Dom
Bosco, ele os induziu gradualmente ao desejo de viver e de trabalhar de maneira
estável, em comunidade, com Dom Bosco, à decisão, enfim, de partilhar sua
missão e ligar-se a ela mediante os votos religiosos, tornando-se membros
de uma verdadeira sociedade de consagrados.” [3]
É verdade que, ao
menos para nós salesianos, foi a missão que exigiu um grupo de consagrados:
os jovens nos levaram a Deus, e não por divertimento ou como passatempo, mas
como meta e motivo. Para garantir o trabalho com os jovens, Dom Bosco descobriu
que tinha necessidade de pessoas doadas por inteiro a Deus; para ter colaboradores
completamente consagrados aos seus jovens, Dom Bosco tornou-se fundador. Não
sei se foi uma opção pragmática do nosso amado pai, quando se deu conta de
que os colaboradores ordinários não garantiam o esforço cotidiano do trabalho
apostólico, ao longo das vinte e quatro horas do dia, todos os dias da semana,
ou antes uma conclusão lógica da sua própria experiência, marcada pelo “sonho”
dos nove anos, que o levou a pensar que Deus tem um “sonho” para cada um de
nós, uma vocação especial que irrompe na consagração por parte de De us para
uma missão específica. A partir da própria experiência espiritual e pastoral,
Dom Bosco descobriu assim as potencialidades de uma vida religiosa, nascida
a serviço da missão salesiana.
3. O mal-estar atual da vida consagrada
É evidente que hoje
existe certo mal-estar em relação à vida religiosa, do qual se ressente também
a nossa Congregação. O declínio numérico e o aumento da idade média dos irmãos,
pelo menos em algumas regiões, são disto um sinal, além do fato da fragilidade
vocacional que é um fenômeno recorrente em todas as ordens, congregações e
institutos. Esse mal-estar é tanto mais difícil de compreender e de assumir,
quando se julga que a Congregação tenha sido fiel aos pedidos da Igreja, às
exigências do mundo e da cultura, às necessidades sempre novas dos jovens,
e que ela tenha procurado responder a isso com fidelidade e criatividade.
Deve-se também admitir que certo mal-estar resulta conatural
à vida consagrada de hoje, que tendo sempre como sua primeira tarefa “a afirmação
do primado de Deus e dos bens futuros”, deve viver hoje num mundo “onde parecem
muitas vezes perdidos os traços de Deus” (VC 85). Além disso, experimentar
Deus, sujeito ao além do provável e até do narrável, é sempre uma tarefa muito
árdua; por conseguinte pode tornar-se heróico, caso seja possível, testemunhar
Deus onde Ele não é mais sentido ou onde Ele foi silenciado; e isso acontece
muitas vezes. Mas o mal-estar que a vida religiosa hoje sofre não nasce apenas
do exterior, da sua natural incompatibilidade com o mundo, [4] mas
brota também do seu interior, porque, entre outras coisas, improvisamente
ela se viu privada das tarefas sociais que lhe deram por tanto tempo segurança
e importância social. [5]
O modo com que hoje se fala de “re- novação”,
“re-criação”, “re-fundação” da vida religiosa não é certamente cômodo nem
agradável, mas nos obriga a verificar se realmente a esperada renovação realizada
pelo Concílio Vaticano II não se tenha tornado uma “accommodata renovatio”
de formas, sem ter atingido em profundidade a mente e o coração das pessoas.
É muito comum afirmar que nos dias que precederam o
Concílio Vaticano II era fácil “identificar” os religiosos, sua forma de vida
e seu lugar na Igreja. A vida religiosa era uma forma de vida caracterizada
pela profissão dos conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência,
segundo as constituições de uma congregação, aprovadas pela autoridade da
Igreja. Os religiosos moravam em casas religiosas, mosteiros ou conventos,
e se distinguiam, dentro e fora de seus institutos, pelo seu hábito e maneira
usual de ser. O estilo de vida e a clara visibilidade de seus membros separavam-nos
realmente do “mundo” e tornavam-nos diferentes dos “leigos” dentro da mesma
Igreja.
O Concílio deu início a uma mudança copernicana, na
qual todas as instituições foram envolvidas e evidentemente modificadas, por
terem sido convidadas a recolocar-se dentro da Igreja “no” mundo (GS),
com uma nova eclesiologia de comunhão (LG), segundo a qual todos os
batizados formam um único povo de Deus com diversidade de vocações, papéis
e carismas.
É verdade que, depois de feito todo o processo de renovação,
a vida religiosa ficou de tal modo transformada que hoje não é fácil “identificá-la”
e definir o seu lugar na Igreja, coisa que ao invés acontece com os leigos
e com os pastores (bispos, padres e diáconos). É óbvio que a dificuldade não
provém de fora, do fato, por exemplo, de ter sido deixado o hábito e ter sido
adotada uma forma burguesa de trajar; vem, antes, de uma interpretação do
chamado universal à santidade e de uma série de fatores externos e internos
que cancelaram, ou quando menos ofuscaram, os traços característicos do seu
verdadeiro rosto. Isto explica a insistência de hoje sobre a sua “excelência
objetiva” (VC 32), a sua “visibilidade” (VC 25), e, pois, a sua significatividade,
a sua credibilidade, o seu primeiro fascínio.
Podemos, então, dizer
que a vida religiosa entrou em crise, externamente pela secularização e internamente
pela perda de identidade.
*
Crise externa
O fenômeno mais grave
do nosso tempo não é mais o ateísmo (GS 19),
[6] mas a secularização da sociedade,
que atingiu níveis de secularismo exacerbado e conseguiu criar uma cultura
da não-crença, uma cultura a-religiosa, praticamente a-téia. Vive-se num clima
de indiferença e relativismo. Não se nega a existência de Deus, nega-se-Lhe,
porém, um espaço onde sobreviver; não se discute a razoabilidade da fé, mas
se vive praticamente desinteressando-se por ela; agora não se deve justificar
a incredulidade, mas a fé. Deus já não é problema, porque a sua presença já
não é evidente.
[7] A prática religiosa torna-se menos visível; o evangelho não
ecoa numa sociedade desgastada por novas mensagens; Deus e o sagrado, se persistem
entre nós, é porque foram interiorizados. O profano conquista terreno, tornou-se
dono do social e se está assenhoreando do privado; a consciência individual
e a própria intimidade já não são o lar de Deus.
Poderia parecer excessivo
o diagnóstico. Cito neste ponto um texto do Pe. Viganó que, escrevendo em
termos semelhantes no fim do ano 1991, continua a ser v álido e eloqüente:
Até há pouco, muitas expressões sociais e culturais achavam-se
impregnadas por uma dimensão religiosa. Foi crescendo, ao contrário, a irrelevância
social do que é religioso, que torna mais difíceis e longos os ritmos da maturação
da fé, como conhecimento dos seus conteúdos e, ainda mais, como prática de
vida. E isto tanto nos jovens das nossas obras como nos jovens salesianos
em formação.
Ser cristãos – ou seja viver a opção batismal – numa
sociedade pluralista, torna-se uma modalidade social entre tantas outras,
com o mesmo direito de cidadania. Pode aflorar assim um clima de relativismo,
de ofuscamento dos ideais tradicionais, de perda do sentido da vida: muitos
jovens parecem flutuar à deriva numa embarcação sem bússola. Perdem a perspectiva
do transcendente, que é o alvo da fé, e se fecham em pequenas respostas sobre
o sentido da vida, absolutamente insuficientes para os grandes anseios do
coração humano. As mesmas respostas que a ciência entende oferecer-lhes resultam
carentes na ótica da busca de significado, porque não se referem à finalidade
última da vida e ao sentido global da história. [8]
Esta secularização
pode ter uma tríplice fisionomia na vida consagrada. Com efeito, pode manifestar-se
em forma de:
-
Perda de transcendência, que se torna evidente quando se enfraquece ou se perde a fé como horizonte
da vida e da vocação, que se tornam destarte um puro projeto humano; torna-se
mais difícil, ou até desaparece, a motivação de viver como consagrado a Deus
e centrado na missão por Ele confiada.
-
Antropocentrismo, que não mais coloca Deus como centro da vida ou como último ponto de referência,
mas o Homem, a tal ponto que a vida é modelada conforme as exigências e pelo
desenvolvimento dos dinamismos próprios da natureza, sem nenhuma margem de
espaço para os valores do Reino.
-
Práxis sócio-econômica, que leva a sentir com paixão o fato que o homem se desenvolve no trabalho
criador, no domínio do mundo e no acompanhar outros em seu amadurecimento
pessoal e sucesso social; a missão apostólica se reduz a trabalho social ou
se identifica com o empenho pela mudança.
No meu entender, nessa perspectiva secularizada da vida
religiosa influiu também – e muito – uma leitura teológica redutiva do princípio
da encarnação, que insiste de tal modo no primeiro termo, o do “quod non assumptum”
de Irineu, que coloca em segunda ordem ou deixa absolutamente a novidade que
nos vem de Deus através da encarnação. Atraídos pela decisão de Deus de se
tornar homem, esquece-se muitas vezes o fato fundamental que jamais o Deus-homem
deixou de ser Deus, e por conseguinte não é o homem que se tornou divino,
mas Deus que se fez homem e, ainda que verdadeiro homem, permanece também
verdadeiro Deus.
Crise interna
Naturalmente, a crise
da vida religiosa não tem nem exclusiva nem preponderantemente uma origem
de fatores externos, embora devamos reconhecer que eles a condicionem fortemente;
ela surge, antes, de dentro dela e se manifesta sobretudo por alguns sintomas:
-
O enfraquecimento
da identidade eclesial da vida religiosa. Estávamos habituados a definir a vida religiosa
como estado de perfeição; o Concílio Vaticano II afirmou que a vocação à santidade
é de todos os batizados. Como definir o significado e a tarefa da vida religiosa
dentro da vocação universal à santidade?
Ainda mais radical se torna o enfraquecimento no aspecto
da missão. Nós crescemos num clima em que se julgava que a dúplice tarefa
do anúncio do evangelho e da diaconia da caridade era uma exclusividade dos
presbíteros e pessoas consagradas. Lembrou-nos o Vaticano II que a missão
é responsabilidade de todos os batizados, cada um segundo a própria vocação;
o crescimento do laicato em todos os níveis é um sinal que o confirma. Qual
pode ser então o significado da presença da vida religiosa?
Percebemos até que nem mesmo o carisma, com a espiritualidade
e a missão que nele estão incluídas, pode ser possuído de forma exclusiva,
como propriedade do Instituto. Ele tem por destinatários todos os que entram
em contato com ele e atinge sua meta quando também é vivido por eles. Que
tarefa têm os consagrados em relação ao carisma?
Tais perguntas, ainda que nem sempre propostas explicitamente,
tornam menos clara e menos forte a consciência da própria identidade e função
na Igreja.
-
A visão da vida
religiosa centrada na função, isto é, a visão funcionalista mais que
ontológica da vida consagrada. A vida religiosa do século XIX era definida,
e muito mais era vivida, como um meio para a missão. Exigiam-no os tempos,
e os serviços oferecidos eram evangelicamente significativos. Mas a evolução
das nossas sociedades modernas fez com que o Estado ou os grupos sociais assumissem
muitos serviços criados e realizados pela vida religiosa. Hoje nas próprias
obras que as comunidades religiosas têm, os leigos participam sem mais na
gestão e na responsabilidade de direção.
As obras dos religiosos funcionam bem, geralmente muito
melhor que as públicas; mas há ainda algo que causa profunda inquietação:
não somente continuam a não aparecer as vocações, mas se constata que o povo
vem tomar de nós prestações e serviços, enquanto procura alhures as razões
para viver. Então começa a insinuar-se uma pergunta que se vai intensificando:
que sentido tem a nossa presença em tal situação?
-
A superação das
estruturas passadas. A vida consagrada correu o risco de fechar os seus
membros numa rede de preceitos e normas que nem sempre ajudaram as pessoas
a amadurecer e a viver segundo a liberdade dos filhos de Deus. Mais ainda,
as formas de vida religiosa, mesmo as renovadas, nem sempre correspondem às
novas situações nas quais devemos hoje realizar a nossa vida e missão: basta
pensar nos esquemas de vida comunitária ou nas formas de oração. Por outro
lado, essas formas e estruturas tradicionais não conseguem exprimir os novos
valores, como os da autonomia pessoal, do sentido do diálogo e da participação.
Há a sensação de que bem sabemos o rumo parra o qual
devemos caminhar, mas na realidade ainda não encontramos um modelo de vida
e ação que facilite e apóie este caminho. Encontramo-nos numa situação muito
incômoda; abandonamos as estruturas passadas e inadequadas, mas ainda não
alcançamos e definimos as novas. [9] Os Superiores Gerais (USG) exprimiram
isso com uma afirmação um pouco forte mas verdadeira: dizem eles que um modelo
de vida religiosa chegou à exaustão e já não consegue motivar nem mesmo os
que se acham dentro. Padre Maccise acrescenta que hoje não estamos capacitados
a saber qual será o modelo de vida religiosa de amanhã.
Estes sintomas já
haviam sido identificados pelo Pe. Viganó [10] e pelo Pe. Vecchi, [11] que
procuraram indicar-nos a solução mediante o desenvolvimento do sentido da
consagração apostólica, da graça da unidade, da especificidade da espiritualidade
salesiana. Hoje talvez nos encontramos em condições melhores para fazer o
diagnóstico das causas mais profundas e por conseqüência encontrar as soluções.
4. A excelência objetiva da vida consagrada
Confirma o que disse
acima, isto é, que a vida consagrada atravessa um “período delicado e penoso”,
o testemunho de João Paulo II, que escreve: “Houve um período rico de esperanças,
de tentativas e propostas inovadoras visando a revigorar a profissão dos conselhos
evangélicos. Mas houve também um tempo não isento de tensões e angústias,
no qual experiências embora generosas nem sempre foram coroadas de resultados
positivos” (VC 13).
Essas dificuldades
não conseguem obscurecer “o valor especial da vida consagra da” na Igreja,
antes, tornam mais urgente uma elucidação da identidade teológica, também
em relação aos demais estados de vida (cf. VC 31-32).
Nesta linha, na última
reunião da Conferência Episcopal Italiana de maio passado, por ocasião dos
25 anos da Mutuae Relationes, um dos Bispos escreveu: “À luz das indicações
acima mencionadas, o carisma da vida consagrada deve ser compreendido e
vivido com maior clareza teológico-pastoral, seja em relação às outras
expressões vocacionais na Igreja, seja em relação à missão no mundo. A
interpretação mais difundida, também dentro da comunidade cristã, evoca
mais uma visão funcionalista que ontológica da vida consagrada... A consagração
não é meio para garantir a funcionalidade dos serviços nas obras, mas é o
conteúdo fundamental da missão dos consagrados: a bem dizer, o primado de
Deus, o valor das realidades últimas, no mundo do esquecimento de Deus, para
um homem muito curvado sobre as coisas penúltimas”. [12]
Como lembrava o Pe.
Tillard, “na raiz de toda vida religiosa autêntica encontramos como motivação
primeira e abrangente não um “para” mas um “por causa de”. E o objeto desse
“por causa de” não é outro senão Jesus Cristo. Não nos fazemos religiosos
“para” alguma coisa, mas “por causa de” alguém: de Jesus Cristo e da atração
que ele exerce”. [13]
Não há espaço para nos determos neste ponto. Geralmente é tido
como evidente, ao passo que se existe algo que não o é, é justamente isto.
O verdadeiro desafio atual da vida consagrada é o de restituir Cristo à vida
religiosa e a vida religiosa a Cristo, sem dá-lo como garantido.
Penso que parte do
problema surgiu quando uma compreensão redutiva da Lumen Gentium levou
a cancelar justamente a identidade específica da vida religiosa, anulando,
ou pelo menos diminuindo, a excelência objetiva da “seqüela Christi”
que ela representa. Repensar o “status” teológico da vida religiosa “é um
dos desafios maiores que os religiosos e as religiosas devem enfrentar hoje”. [14]
Sem prejudicar a
santidade subjetiva de tantos leigos e padres, devemos insistir decididamente
em que a “seqüela Christi” e a “imitatio Christi” encontram na vida religiosa
seu campo mais favorável; ela é, precisamente, “memoria viva do modo de
existir e de agir de Jesus como Verbo encarnado diante do Pai e diante
dos irmãos” (VC 20). “Os conselhos evangélicos, com os quais Cristo convida
alguns a partilhar a sua experiência de virgem, pobre e obediente, exigem
e manifestam, em que os acolhe, o desejo explícito de total conformação
a Ele... A sua forma de vida casta, pobre e obediente, mostra-se, com
efeito, o modo mais radical de viver o Evangelho nesta terra, um modo – pode-se
dizer – divino porque abraçado por Ele, Homem-Deus, qual expressão da sua
relação de Filho Unigênito com o Pai e com o Espírito Santo. Este é o motivo
pelo qual na tradição cristã sempre se falou da excelência objetiva da vida
consagrada.” (VC 18)
No harmonioso conjunto
de dons que formam a Igreja, “está confiado a cada um dos estados de vida
fundamentais o encargo de exprimir, no próprio nível, ora uma ora outra das
dimensões do único mistério de Cristo. Se, para fazer ressoar o anúncio evangélico
no âmbito das realidades temporais, tem uma missão particular a vida laical,
no âmbito da comunhão eclesial um ministério insubstituível é desempenhado
por aqueles que estão constituídos na Ordem sagrada, de modo especial
pelos bispos... Na manifestação da santidade da Igreja, há que reconhecer
uma objetiva primazia à vida consagrada, que reflete o próprio modo de
viver de Cristo. Por isso mesmo, nela se encontra uma manifestação particularmente
rica dos valores evangélicos e uma atuação mais completa do objetivo da Igreja
que é a santificação da humanidade” (VC 32).
Não há dúvida que
a missão da vida religiosa é a de ser sinal, metáfora:
-
Sinal da memória
viva de Jesus, que prolonga a sua presença reveladora através da
vida dos que trazem no próprio corpo “os estigmas” da paixão do Senhor (Gl
6,17). Cabe à vida consagrada viver e exprimir publicamente “a adesão ‘conformativa’
a Cristo da existência inteira” (VC 16), que leva à configuração
com o Senhor Ressuscitado. “Isto implica uma particular comunhão de amor
com Ele, que se tornou o centro da vida e a fonte contínua de toda iniciativa”
(RdC 22).
Com efeito, a vida consagrada é em si mesma uma “progressiva
assimilação dos sentimentos de Cristo” (RdC 15; cf. VC 65). “É necessário,
pois, aderir sempre mais a Cristo, centro da vida consagrada, e retomar com
vigor um caminho de conversão e renovação que, como na experiência primeira
dos apóstolos, antes e depois da sua ressurreição, foi um re-partir de Cristo.
Sim, é preciso re-partir de Cristo.” (RdC 21)
-
Sinal da presença e da primazia de Deus no mundo, do Deus de Jesus, fonte de vida e de humanidade, que se manifesta
na estultice e fraqueza da cruz (cf. 1Cor 1,22-31), que denuncia o pecado
e abre à ação vivificante do Espírito na Ressurreição. É necessário, por conseguinte ,
dar verdadeiramente a Deus a primazia que lhe compete, como valor absoluto
da nossa vida, pessoal e comunitária, íntima e institucional.
Fazer experiência de Deus não é para nós uma ocupação irregular nem
tarefa secundária, mas nossa razão de ser na Igreja e nossa primeira missão:
“na simples cotidianidade, a vida consagrada cresce em progressivo amadurecimento
para tornar-se anúncio de uma maneira de viver alternativa à do mundo e da
cultura dominante. Com o estilo de vida e a busca do Absoluto, sugere quase
uma terapia espiritual para os males do nosso tempo” (RdC 6).
-
Sinal da novidade do Reino de Deus
que está no mundo, mas que não é deste mundo (cf. Jo 18,36), que assume os
valores humanos, mas também os transcende e redime, introduzindo neles uma
verdadeira e absoluta novidade. “A própria vida consagrada, sob a ação do
Espírito Santo, torna-se missão. Quanto mais os consagrados se deixam conformar
a Cristo, tanto mais o tornam presente e operante na história para salvação
dos homens”(RdC 9).
Isso implica viver com alegria e radicalidade as Bem-aventuranças
como programa de vida e como fermento capaz de transformar o mundo.
Missão peculiar da vida consagrada é “manter viva nos batizados a consciência dos
valores fundamentais do Evangelho, graças ao seu magnífico e privilegiado testemunho
de que não se pode transfigurar o mundo e oferecê-lo a Deus sem o espírito
das Bem-aventuranças” (VC 33).
- &nbs p;
Sinal da comunhão eclesial, que é vivida por quem faz profissão de
viver profundamente o mandamento de Jesus na vida de comunidade,
onde se faz “de algum modo palpável que a comunhão fraterna antes de ser instrumento
para uma determinada missão, é espaço teologal, onde se pode experimentar
a presença mística do Senhor
ressuscitado (cf. Mt 18,20)” (VC 42). A contribuição dos consagrados e das
consagradas para a evangelização “consiste, primariamente, no testemunho de
uma vida totalmente entregue a Deus e aos irmãos, à imitação do Salvador”
(VC 76; cf. RdC 34).
Isso acontece graças ao amor recíproco dos que compõem
a comunidade, que, antes de se tornar projeto humano, é parte do projeto divino
(cf. VFC 7). “A vida de comunhão representa o primeiro anúncio da vida consagrada,
pois é sinal eficaz e força persuasiva que leva a crer em Cristo. A comunhão, então, torna-se ela
própria missão, antes, a comunhão gera comunhão e se configura essencialmente como comunhão missionária”
(RdC 33; cf. ChL 31-32): “quem realmente encontrou Cristo, não pode guardá-lo
para si, deve anunciá-lo” (NMI 40).
“A vida consagrada
hoje tem necessidade sobretudo de um relançamento espiritual, que ajude a
passar para a vida concreta o sentido evangélico e espiritual da consagração
batismal e da sua nova e especial consagração. A vida espiritual deve ocupar o primeiro
lugar no programa das famílias de vida consagrada, de modo que cada instituto
e cada comunidade se apresentem como escolas de verdadeira espiritualidade
evangélica.” (RdC 20; cf. VC 93)
Chamados a ser sinais
da novidade profética do Evangelho, novidade que deve iluminar e ser ponto
de referência para todo batizado, temos uma grande responsabilidade na Igreja:
se todos são chamados à santidade, devemos fazer da santidade um estilo de
vida, a nossa verdadeira “profissão”, para nos tornarmos para os cristãos
um chamado vivente. Viver consagrados a Deus é a nossa primeira missão apostólica.
E isso é muito mais
urgente para nós como educadores dos jovens, os quais procuram e têm necessidade
de pessoas que sejam para eles estímulo e proposta de vida, pessoas que com
a própria forma de vida dêem a eles razões de vida e de esperança e os acompanhem
em seu desenvolvimento humano e cristão.
5. Um modelo em crise
A partir dessa identidade podemos individuar melhor
as raízes da crise atual da vida religiosa, da qual a falta de vocações, a
pouca visibilidade e a fraca significatividade não passam de um sintoma.
Foi uma concepção – diria – “liberal” e redutiva
de vida religiosa que julgou que a renovação devia ser uma adequação à modernidade,
assumindo o melhor do Iluminismo, da emancipação, dos direitos humanos. Assim
se passou a colocar no centro a pessoa, sua consciência, sua dignidade, o
próprio projeto. Isto contribuiu para suscitar uma salutar libertação, consistente
num amadurecimento humano mais rico e respeitoso da pessoa, mas também introduziu
elementos de sinal negativo:
-
A recusa de qualquer distintivo
particular da vida consagrada; foram sendo abandonados os traços sociais
de pertença, como o hábito, as estruturas, os costumes, a linguagem, um modo
característico de apresentar-se diante do povo; evitava-se ser reconhecidos
e mostrar-se diferentes. Julgava-se importante a invisibilidade e o
deixar sepultado o tesouro (cf. Mt 13,44).
Mas, se a própria vida consagrada
nega ser sinal visível de alguma coisa, então que senti do tem? Justamente
por isso, hoje tanto se fala da necessidade de recuperar um lugar no mundo
e na Igreja através da sua visibilidade, por meio da qual aparecem
“os traços característicos de Jesus” (VC 1).
-
O desejo ardente de tornar-nos
normais, como todo o mundo, sem que haja alguma coisa que nos possa
distinguir dos outros, sem trazer conosco o nosso sinal característico de
haver sido conquistados pelo Cristo e de estar enamorados por Ele,
isto é empenhados “em viver com amor apaixonado a forma de vida de Cristo”
(RdC 8).
Mas se a vida consagrada não
se destaca por nada a mais, se não desperta sentimentos mais profundos
e recursos menos comuns, por que nos tornarmos religiosos? Se os votos não
têm nada de extraordinário, de insólito, de “louco”, não será talvez porque
foram reduzidos à nossa estatura? Se a vida consagrada se instalou na normalidade
quer dizer que perdeu toda a sua força profética; [15] se faz de tudo, mas
nada de especial, se não antecipa nada de melhor, nem anuncia nem denuncia
algo, para que é que serve?
-
Junta-se a isso a reafirmação
da profissionalização. Antes, talvez, queria-se que a graça da vocação
viesse a substituir a nossa incompetência profissional; “a obediência faz
milagres”, dizia-se muitas vezes. Hoje, ao invés, a necessária preparação
profissional se torna muitas vezes um pretexto para não ser disponíveis para
a missão. Estamos perdendo o frescor da disponibilidade evangélica, a espontaneidade
do apóstolo, para nos tornarmos simples profissionais da educação. Pergunto-me
se todos os salesianos estariam dispostos a deixar a própria profissão para
um serviço à Congregação. Minha experiência convence-me de que são muitos
os que o fazem, e de boa vontade; mas, infelizmente, não somos todos.
Mas se a vida consagrada conta
somente com profissionais da saúde, da educação, da marginalização, deve-se
também admitir que errou, mudando tragicamente o fim pelo meio. O fazer leva
vantagem sobre o ser; mas, é justo privilegiar o trabalho das nossas mãos
mais que a vontade de Deus sobre nós?
-
Introduziu-se, assim, um grande
dose de individualismo, que torna a obediência quase impossível. O
fato é tanto mais grave quanto menos consciente ele é; ou se resulta notório,
então é mais refletido. Diante dos próprios direitos, do próprio projeto,
da realização da vocação pessoal, nada há que fazer: não são postos em questão
nem sequer apreciados.
Mas se a vida consagrada interpreta-se
a si mesma pela perspectiva da auto-realização, perdeu o caminho do
evangelho. Lembremos as palavras decisivas de Jesus: quem quer conservar a
própria vida, perde-a (cf. Mc 8,35; Jo 12,25). A auto-realização coloca no
centro o próprio eu e os próprios interesses. O evangelho, ao contrário, nos
descentra, pondo no centro Deus e o próximo. A cultura da auto-realização
perverte o discernimento comunitário; ele é tomado não tanto como um
processo de desapego e de purificação para sintonizar com a vontade de Deus,
mas como uma estratégia para impor uma decisão pessoal, muitas vezes já tomada.
Onde está, então, a seqüela Christi, onde o fazer, como Jesus, da vontade
de Deus o próprio alimento (Jo 4,34)?
Fazendo assim, perde-se o sentido
da missão comunitária, porque a primazia do eu implica a perda da missão
comum. Mas se a vida consagrada consente e deixa espaço para esta visão individualista
de vocação e de missão, ela se orienta para a autodestruição. O risco não
é imaginár io; é tão real que hoje se tornou um problema para a formação e
para o governo.
-
A redução da oração é
outro elemento desse modelo de vida consagrada “liberal”. As práticas de piedade
se reduzem “ad usum privatum”, perdem freqüência, visibilidade e obrigatoriedade;
fazem-se quando há tempo, porque não há outra coisa mais urgente para fazer;
ou quando se sente necessidade dela, porque há algo que pedir. É verdade que
antes podia haver certa rotina e formalismo e podia faltar espontaneidade
e autenticidade; mas é também verdadeiro que sem praticar a oração, que exige
disciplina e método, regularidade de vida e fidelidade cotidiana, produz-se
um esvaziamento interior e uma profunda fragmentariedade na pessoa que crê.
Mas é um contra-senso a vida
consagrada afastar-se de Deus, porque não o freqüenta. Com efeito, “das pessoas
consagradas se difunde pela Igreja um convite persuasivo a considerar a primazia
da graça e a responder a ela mediante um generoso empenho espiritual” (RdC
8; cf. NMI I38). Como explicar que haja para um salesiano ocupações mais importantes
que Deus? Deste modo produz-se o que já tinha sido dito dos latinos: Corruptio
optimi péssima; nada pior que um religioso secularizado. Para que serve
o sal, se se torna insípido (Mt 5,13)?
-
O tipo de comunidade
que se promove nesse modelo é visto como um espaço de tranqüilidade, de respeito
mútuo, de bem-estar pessoal, de estar bem sem se sentir incomodado. Para chegar
a isso preconiza-se o valor de comunidades homogêneas, formadas por iguais;
e se isso não é possível, recorre-se ao pluralismo e à tolerância, como o
ideal a ser atingido. A coisa mais importante seria a falta de conflitos,
de desencontros, ou simplesmente de diversidade de vistas; e, ent ão, deixa-se
correr, fazendo com que cada um se sinta bem, não indo além do que todos estão
dispostos a dar, nem pedindo o que exige o evangelho. Aumentam destarte o
número de carros, as salas de TV, a independência econômica dos irmãos, a
autonomia para viagens e férias, a abertura para o relacionamento com pessoas
de outro sexo; a pobreza se relaxa, o superior torna-se um facilitador, não
mais o animador e o pai, e a casa se transforma numa residência de indivíduos.
Mas se a vida consagrada não
forma personalidades robustas, homens de comunhão que vêem o irmão como “alguém
que me pertence” (NMI 43), não tem razão de existir, porque a comunhão vivida
e testemunhada é um dos elementos que a tornam significativa, luminosa e evangélica.
Hoje, com efeito, “a Igreja confia às comunidades de vida consagrada a missão
particular de fazerem crescer a espiritualidade da comunhão, primeiro
no seu seio e depois na própria comunidade eclesial e para além dos seus confins,
iniciando ou retomando necessariamente o diálogo da caridade, sobretudo nos
lugares onde o mundo de hoje aparece dilacerado pelo ódio étnico ou por loucuras
homicidas” (VC 51).
-
Talvez o elemento mais fraco
e mais doloroso desse modelo é a dificuldade de despertar vocações.
Dá muito que pensar o fato de serem justamente os novos movimentos e as congregações
recém-fundadas que mais sucesso conseguem neste campo. Algo, sem dúvida, nos
faltou. Quem sabe se o modelo “liberal” de vida consagrada, que se impôs aqui
e ali e indubitavelmente tem aspectos antivocacionais, não explica a situação!
Com efeito, os grupos que obtêm mais sucesso vocacional apresentam três elementos
fundamentais: uma espiritualidade forte, visível, partilhada; uma vida de
comunidade intensa, alegre, atraente; um compromisso seguro, claro, forte
em favor dos pobres, que leva a viver para eles e como eles.
Eis aí: penso que o maior problema do modelo “liberal”
seja o de pretender evangelizar a cultura moderna, assumindo-a em prejuízo
das opções e valores evangélicos. A conseqüência é que dessa maneira somos
transformados pela lógica do mundo, em vez de nos tornarmos evangelizadores
da cultura. Deveríamos ser como o sal, que tem a virtude de poder imergir-se
até dissolver-se, mas sem jamais perder sua identidade, sua eficácia, podendo
assim voltar de novo ao seu estado original.
Este é o modelo de vida consagrada que se acha em crise.
Nós salesianos temos razão de ser se nos mantivermos fiéis à nossa vocação
e missão: ser sinais e portadores de Deus. Refundar a vida religiosa não quer
dizer outra coisa senão voltar ao essencial, ao absoluto de Deus, aos valores
do evangelho, às bem-aventuranças e aos conselhos evangélicos, à força da
comunidade, à presença em meio aos meninos, como nos exortava Dom Bosco na
sua carta de Roma de maio de 1884.
6. CG25, um convite a orientar-se nessa linha
Lendo o CG25, dou-me conta de que a Congregação quis
responder a esses desafios ao enfrentar a realidade da Comunidade Salesiana
Hoje, apresentando uma visão de conjunto de toda a nossa
vida consagrada. O tema é a comunidade, mas o conteúdo compreende a experiência
e o testemunho de Deus, a comunidade fraterna e a presença entre os jovens.
Assim sendo, missão, fraternidade e vida evangélica são postas na perspectiva
do tipo de comunidade que a Congregação sente-se chamada a promover, procurando
sua renovação mais profunda.
A comunidade, com efeito, não foi vista com um “clube
de amigos” ou como uma equipe de trabalho, ainda que importe – e muito, porque
pertence ao espírito salesiano – que haja uma atmosfera cordial e atraente
do ponto de vis ta humano e uma eficácia profissional do ponto de vista educativo
pastoral. Ela foi apresentada primeiramente como uma comunidade consagrada,
de apóstolos, com uma clara identidade carismática, herdeira de um patrimônio
espiritual no qual abastecer-se para poder responder com competência aos novos
desafios.
A segunda ficha, que traz o título Testemunho Evangélico,
tratou explicitamente este tema inspirando-se no “Sonho dos dez diamantes”,
onde se descreve o modelo do verdadeiro salesiano. Estando pelas palavras
do comentário do Pe. Viganó, podemos afirmar que justamente o próprio Dom
Bosco “foi sempre em toda a sua vida a encarnação viva desse personagem simbólico”.
[16] Contemplado de frente, o personagem
faz ver a vida salesiana primeiramente “na sua atividade” (os diamantes do
lado anterior); contemplado pelas costas, o personagem nos faz ver a vida
salesiana “na sua espiritualidade interior” (os diamantes nas costas). Se
se quiser, à frente, a sua figura social, o rosto, o “da mihi animas”;
nas costas, o segredo de constância e de ascese, a nervura e o fundamento,
o “cetera tolle”.17
Aplicando essas características fundamentais à comunidade
salesiana, o CG25 afirma: “Toda comunidade é formada de homens, imersos na
sociedade, que exprimem a paixão evangélica do “da mihi animas, cetera tolle”
com o otimismo da fé, com a dinamicidade e criatividade
da esperança, com a bondade e doação total da caridade. Este compromisso é
apoiado por uma estrutura espiritual forte e essencial, caracterizada em particular
pela dimensão ascética dos conselhos evangélicos e por um estilo de vida trabalhador
e temperante” (CG25 20).
Tem-se consciência de que o ambiente cultural de hoje,
marcado pelo secularismo, pelo individuali smo e pelo hedonismo, não favorece
muito a estima, a assunção pessoal e o amadurecimento de uma vida consagrada;
e assim se tornam mais claros os desafios a serem enfrentados. Mas também
se compreende a força profética que pode ter a vida religiosa vivida em plenitude,
como forma de vida alternativa que manifeste novos caminhos de humanismo segundo
o Evangelho.
“Os conselhos evangélicos não devem ser considerados
como uma negação dos valores inerentes à sexualidade, ao legítimo desejo de
usufruir de bens materiais, e de decidir autonomamente sobre si próprio. Estas
inclinações, enquanto fundadas na natureza, são boas em si mesmas. Mas a criatura
humana, enfraquecida como está pelo pecado original, corre o risco de as exercitar
de modo transgressivo. A profissão de castidade, pobreza e obediência torna-se
uma admoestação a que não se subestimem as feridas causadas pelo pecado original,
e, embora afirmando o valor dos bens criados, relativiza-os pelo simples fato de apontar Deus como o bem absoluto.
Desta forma, aqueles que seguem os conselhos evangélicos, ao mesmo tempo que
procuram a santidade para si mesmos, propõem, por assim dizer, uma “terapia
espiritual” para a humanidade, porque recusam a idolatria da criatura e tornam
de algum modo visível o Deus vivo. A vida consagrada, especialmente em tempos
difíceis, é uma bênção para a vida humana e para a própria vida eclesial.”
(VC 87; cf; CG25, 33)
Não há admirar, pois, que se fale da primazia de Deus, “que entrou na nossa vida,
nos conquistou e colocou
a serviço do seu Reino, como sinais e portadores do seu amor” (CG25, 22);
do valor humanizante e profético do seguimento de Cristo como resposta à idolatria
do poder, do ter e do prazer;
da graça da unidade,
“que é dom do Espírito Santo e síntese vital entre união com Deus e doação
ao próximo, entre interioridade evangélica e ação apostólica, entre coração
orante e mãos operosas, entre exigências pessoais e compromissos comunitários.
Dessa maneira integram-se harmonicamente, na aliança com Deus, a missão apostólica,
a comunidade fraterna e a prática dos conselhos evangélicos” (CG25, 24).
Tudo isso se deveria traduzir na centralidade
da Palavra de Deus na vida pessoal e comunitária, na celebração da Eucaristia,
na qualidade da vida de oração até fazer da comunidade uma “escola de oração”,
na revisão de vida, na direção espiritual, no projeto de vida pessoal e comunitário.
Ainda uma vez, o ponto sobre o qual se deve insistir é a comunidade local
e a vida fraterna da comunidade presente na vida dos jovens.
Concluindo
Não posso fechar esta carta sem lembrar Nossa Senhora,
modelo de consagração e de seguimento. Se “fixar os olhos no rosto de Cristo,
reconhecer seu mistério no caminho ordinário e doloroso da sua humanidade,
até colher seu fulgor divino manifestado definitivamente no Ressuscitado glorificado
à direita do Pai, é a tarefa de todo discípulo de Cristo (RMV 9), nós salesianos
queremos fazer esta contemplação do rosto de Cristo com e como Maria: Ela
é “modelo insuperável”; porque “ninguém se dedicou com assiduidade igual à
de Maria à contemplação do rosto de Cristo” (RMV 10),. “ninguém
melhor do que Ela conhece Cristo, ninguém como a Mãe pode introduzir-nos num
conhecimento profundo do seu mistério” (RMV 14).
“Olhemos [pois] para Maria, Mãe e Mestra
para cada um de nós. Ela, a primeira Consagrada, viveu a plenitude da caridade.
Fervorosa no espírito, serviu o Senhor; alegre na esperança, forte na tribulação,
perseverante na oração; solícita para com as necessidades dos irmãos cf. Rm
12, 11-13). Nela se espelham e renovam todos os aspectos do Evangelho, todos
os carismas da vida consagrada.” (RdC 46)
Pergunto se não reside j ustamente nisso a sua beleza,
o seu fascínio, a sua novidade, o seu esplendor!
Quereria fazê-lo citando um texto de Vita Consecrata, porque também este dado deveria estimular-nos a conhecer
melhor o importante documento; e recomendo vivamente também o aprofundamento
da Instrução “Re-partir de Cristo”:18
“Em todos (os institutos de vida consagrada), existe
a convicção de que a presença de Maria tem uma importância fundamental, quer
para a vida espiritual de cada uma das almas consagradas, quer para a consistência,
unidade e progresso da inteira comunidade. Maria é, de fato, exemplo sublime de perfeita consagração,
pela sua pertença plena e dedicação total a Deus. Escolhida pelo Senhor, que
n’Ela quis cumprir o mistério da Encarnação, lembra aos consagrados o primado da iniciativa de Deus. Ao
mesmo tempo, dando o seu consentimento à Palavra divina que n’Ela se fez carne,
Maria aparece como modelo de acolhimento
da graça por parte da criatura
humana... A vida consagrada contempla-a como modelo sublime de consagração
ao Pai, de união com o Filho e de docilidade ao Espírito, na certeza de que
aderir ‘ao gênero de vida virginal e pobre’ de Cristo significa assumir também
o gênero de vida de Maria.” (VC 28)
Peçamos a Ela que nos ensine a abrir-nos à ação transformante
e santificadora do Espírito. Confiemos a Ela a nossa vocação salesiana para
que nos torne “sinais e portadores do amor de Deus aos jovens”.
Pe. Pascual
Chávez V.
Reitor-Mor
[1] P. Braido, Don Bosco prete dei giovani nel
secolo delle libertà. Vol. I. Roma, LAS, 2003, p. 14.
[2] P. Braido, Don Bosco prete dei giovani nel
secolo delle libertà. Vol. I. Roma, LAS, 2003, p. 360.
[3] P. Braido, Don Bosco prete dei giovani nel secolo delle libertà.
Vol.II. Roma, LAS, 2003, p. 56
[4] C. J. B. Metz – T. R. Peters, Gottespassion.
Zur Ordensexistenz heute. Friburgo/Basiléia/Viena, Herder,
1991, p. 29.
[5] Cf. D. O’Murchu, Rehacer la vida religiosa.
Una mirada abierta al futuro. Madrid, Ediciones Claretianas,
2001, p. 14-15.
[6] Paulo VI, “Ecclesiam Suam”, AAS(1964), p. 650-651.
[7] J. Gómez Caffarena, Raíces culturales de la increencia.
Santander, Sal Terrae, 1988.
[8] E. Viganó, “Há ainda bom terreno para semear”,
ACG 339(1992), p. 12-13.
[9] Cf. A. Arrighini, “Carisma e Isttituzione, Intervista
a Rino Cozza”, Testimoni 10 (2003), p. 9-11.
[10]
E. Viganò, “Convidados a testemunhar melhor a nossa ‘consagração’”,
ACG 342; “II Congresso dos Superiores Gerais sobre ‘A vida consagrada
hoje’”, ACG 347; “O Sínodo sobre a vida consagrada”, ACG 351;
“Como reler hoje o carisma do fundador”, ACG 352.
[11] J. Vecchi, “O Pai nos consagra e nos envia”,
ACG 365.
[12] “A 25 anni dalla promulgazione del documento
Mutuae Relationes”, p. 4 (copiografado, con sublinhas pessoais).
[13] J. Ma. R. Tillard, Carisma e sequela.
Bolonha, EDB, 1987, p. 54.
[14] O’ Murchu, Rehacer la vida religiosa,
p. 67.
[15] F. J. Moloney, Disciples and Prophets: a
Biblical Model for Religious Life. Londres, Darton, Longman
& Todd, 1980, p. 158-170.
[16] E. Viganò, “Profilo salesiano del sogno del
personaggio dei dieci diamanti”, ACS 300(1981), p. 13.
17 E. Viganò, “Profilo salesiano del sogno del personaggio
dei dieci diamanti”, ACS 300(1981), p. 14.
18 CIVCSVA, Ripartire da Cristo: un rinnovato impegno
della vita consacrata nlr terzo millennio. Roma, 2002.