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Lettere circolari di don Luigi Ricceri ai Salesiani 1965-1968

A SERVIÇO DE CADA UM COM CORAÇÃO DE PAI

 Luís Ricceri
Atos do Conselho Superior 242

Um aniversário glorioso. – Nosso compromisso com a Congregação. – Motivos de confiança. – Coração de Pai. – Os resultados do nosso Capítulo Geral. – A presença de Dom Bosco. – Os membros do novo Capítulo Superior. – Prepara-se a promulgação dos Atos do Conselho Geral. – Documento importante e fundamental. – Sempre com Dom Bosco. – Reconhecimento em nome de todos os Salesianos.

Turim, 16 de agosto de 1965

Caríssimos Irmãos e Filhos,

 

1.  Um aniversário glorioso

Apresento-me a vós pela primeira vez num dia caro ao nosso coração de filhos.

Ocorre hoje o 150º aniversário do nascimento do nosso dulcíssimo Pai.

Ontem, na mais intensa comoção, justamente em memória do providencial evento, celebrei a S. Missa na igreja inferior do Colle; estava rodeado pelos Superiores, com o Sr. P. Ziggiotti e o Sr. P. Antal, as Madres do Conselho Geral das Filhas de Maria Auxilia- dora, irmãos, noviços, irmãs, Cooperadores e ex-alunos, jovens, devotos e amigos de Dom Bosco. Através da TV em Eurovisão, assistiam à S. Missa milhões de pessoas de 11 nações. Era natural o contraste entre o humilíssimo incógnito natal do nosso caro Pai e o triunfo daquela hora a 150 anos de distância. O pensamento ia espontâneo à Provi- dência que suscita os instrumentos da sua glória e os conduz por caminhos admiráveis até as conquistas, com sabor de algo inexplicável; e ao mesmo tempo brotava do pro- fundo do coração o Magnificat por tudo o que o bom Deus fizera realizar no mundo nestes 150 anos, primeiramente pelo seu humilde servo e, depois, pelos filhos que amo- rosamente recolheram a sua preciosa herança.

Refazendo o caminho do humilde João e da sua obra, percebe-se de imediato que toda essa grande “aventura” traz a marca do sobrenatural, do divino. A obra de Dom Bosco pontilhada, durante a sua vida e depois, de dificuldades, obstáculos de todos os tipos, cresce, aumenta e realiza-se coerente e prodigiosa, tornando-se, segundo as pa- lavras de Paulo VI, “um dos fatos mais notáveis, mais benéficos, mais exemplares, mais prometedores do Catolicismo no século passado e no nosso”.

Esta afirmação do S. Padre mais do que suscitar em nós sentimentos de ambição in- terior, leva-nos a pensar nos muitos irmãos que, quais autênticos filhos de Dom Bosco, na fidelidade e na dedicação, construíram dia a dia esta realidade operante que é a Con- gregação Salesiana; e, ao mesmo tempo, convida-nos a um compromisso que temos perante à Igreja, ao mundo: o compromisso de fidelidade a Dom Bosco, ao seu verda- deiro espírito, aos seus ideais. Só assim podemos contar com a realização dos votos de Paulo VI: “Queira Deus que assim seja nos séculos futuros”.

 

2.  Nosso compromisso para com a Congregação

O Santo Padre, no discurso aos membros do Capítulo Geral (que deve ser lido, relido e meditado por inteiro) fala assim sobre a nossa Congregação: “Suas finalidades não poderiam ser mais nobres, mais urgentes, mais conformes ao programa apostólico da Igreja de hoje”.

Vós entendeis todo o valor dessas augustas e gravosas palavras que qualificam a Con- gregação há 150 anos do nascimento do Fundador. Estas palavras dão-nos segurança e coragem, mas ao mesmo tempo nos empenham decididamente – cada um no seu lugar de trabalho – para que a Congregação continue a ser no futuro próximo, no segundo século de vida, segundo a palavra de Paulo VI, “uma grande realidade na vida católica mundial”. Parece-me, para não cair no vago e na retórica, que o caminho e o modo de realizar esse trabalho sejam bem claros, simples, eficazes.

O XIX Capítulo Geral, nos dois longos e trabalhosos meses de trabalho, teve uma única preocupação: na fidelidade indiscutível e essencial a Dom Bosco, mirando as dire- trizes da Igreja, sobretudo através do Concílio, fazer da Congregação um instrumento apostólico atual, vivo, que busca os seus fins de sempre com coragem, abertura e sensi- bilidade para as novas condições da sociedade no mundo, sobretudo dos jovens.

Eis, pois, que brota natural e lógico o nosso empenho diante da “Casetta” que nos recorda o nascimento d’Aquele que devia ser o nosso Pai e Fundador, e que devia ofe- recer à Igreja a tríplice Família Salesiana.

Todos nós devemos estar dispostos a dar a nossa contribuição à realização das deci- sões do Capítulo Geral. Nisso somos todos responsáveis, todos nós podemos e quere- mos ser construtores e realizadores.

Da minha parte, sinto-me comprometido em primeiro lugar e creio que terei pres- tado um construtivo e imperativo serviço à Congregação e à Igreja trabalhando nestes anos para a realização das deliberações do Capítulo Geral, no espírito conciliar em que brotaram e foram determinadas.

 

3.  Motivos de confiança

Certamente, olhando para Dom Bosco, e também para os seus Sucessores, sinto toda a minha pequenez, e o quanto seja inadequado para colocar-me nos seus passos.

Duas reflexões dão-me certa sensação de conforto neste meu início, não destituído de preocupações e ansiedades, justamente porque sinto em sua vastidão as carências da minha pobre pessoa diante dos compromissos que o cargo envolve, para hoje e para o futuro.

Conforto-me, antes de tudo, ao pensar que fui chamado a este posto pela Congrega- ção, por vós, através do voto expresso pelos Reverendos Padres Capitulares. O Senhor, que caminha por caminhos diversos daqueles dos homens, dispôs que fosse chamado a governar a Congregação. Façamos juntos a sua vontade: a mim não resta senão ser sem- pre dócil, embora modesto, instrumento nas mãos do bom Deus.

Outro motivo de conforto é a afetuosa e sincera caridade e a grande confiança de que me senti logo rodeado pelos Reverendos Padres Capitulares. E a soma de sentimen- tos expressos pelo Capítulo Geral alargou-se até a periferia de muitas formas, parecendo experimentar na vossa bondade e no vosso espírito de fé que estais ao lado do novo Reitor-Mor para ajudá-lo e confortá-lo, para ser, quais verdadeiros filhos e irmãos, seus colaboradores cordiais e eficientes.

Sim, devemos formar, e concretamente, uma grande família, em que nos sentimos amados, e demos a contribuição generosa das nossas energias, para a realização har- moniosa dos nossos ideais, que são sempre os de Dom Bosco.

 

4.  Coração de pai

Da minha parte, abrindo-vos todo o meu coração, quero dizer-vos que me sinto a serviço de cada um de vós, com o coração de um pai.

A autoridade, estou profundamente convencido disso, hoje especialmente, não é um exercício de poder, mas exercício daquela caridade que se torna serviço, como aquele que um pai e uma mãe prestam aos seus filhos.

E eu ficarei sempre feliz pelas vezes que puder confortar um irmão que sofre, iluminar a quem estivesse por um momento perdido, dar coragem e confiança a quem se abate diante das provas e dificuldades.

Gostaria de, numa palavra, fazer com que cada um de vós sentisse o meu vivíssimo desejo, a minha vontade, de ser e demonstrar-me sempre pai; por isso, peço instante- mente a Dom Bosco e ao Padre Rinaldi que me deem algo do seu coração.

 

5.  Os resultados do nosso Capítulo Geral

Ouço de muitas partes uma pergunta. E não nos fala do Capítulo Geral?

Procurarei responder aos vossos explicáveis questionamentos. Começo dizendo-vos que gostaria de vos ter dado anteriormente algumas notícias a respeito, mas, por um conjunto de circunstâncias, não pude fazê-lo.

O nosso Capítulo Geral fez um trabalho magnífico: podeis constatá-lo tão logo tenhais em mãos os Atos com todos os documentos e o material atinente. Foram dois meses de intenso trabalho: comissões, subcomissões, grupos; consultas, reuniões em assembleia (sessenta e quatro ao todo) com ritmo cerrado. Todos os Capitulares deram a própria contribuição, integrada por um grupo de “especialistas” que puseram cordialmente a serviço da Congregação a sua perícia e a sua ciência.

Contudo, mais do que a dimensão do trabalho, desejo evidenciar o clima em que toda essa atividade foi realizada.

 

6.  A presença de Dom Bosco

Decisões amplas, profundas, vivas e apaixonadas em certos momentos, mas sempre com os olhos em Dom Bosco, na verdadeira tradição, com a preocupação viva de inter- pretar Dom Bosco atuante “hoje”; olhando para a Igreja, o Concílio, o Papa e, enfim, a união dos corações ao redor do Sucessor de Dom Bosco nas conclusões que queriam ser sempre uma síntese concreta do pensamento, da vontade, das diretrizes que Dom Bosco “vivo” teria dado diante das atuais circunstâncias.

A afetuosa e filial união ao redor do Reitor-Mor de todos os Capitulares, idosos e muito jovens, provenientes de terras de missão ou em crise de vida cristã ou de países de antiga tradição cristã, ricos de experiência em prevalência escolar ou de ministério pastoral, parece-me um grande motivo de conforto e confiança não só para quem deve assumir o pesadíssimo trabalho de governo da Congregação, mas para todos os mem- bros da nossa família.

O Capítulo Geral, se foi um grande campo de treinamento para seus membros, pa- rece-me que pode ser um exemplo para os que têm a responsabilidade de estudar os problemas em nível inspetorial ou local.

Um Capítulo Geral com 150 pessoas, que discute na máxima liberdade, mas também no respeito fraterno e na mais cordial caridade, embora nas inevitáveis e úteis diferen- ças de visão, que encontra, enfim, a síntese de ideias e diretrizes olhando para os inte- resses das almas e para Dom Bosco, diz que a Congregação conta com forças vivas, ca- pazes de enfrentar as responsabilidades postas hoje à Congregação pelas novas situa- ções sociais e psicológicas, forças decisivas para enfrentar com senso realista e corajoso os problemas confiados à sua missão na Igreja; mas o Capítulo Geral também soube encontrar os pontos de encontro dessas forças num equilíbrio que quer ser todo salesi- ano, ao qual nos chamou o próprio Santo Padre.

 

7.  Os membros do novo Capítulo Superior

E quando serão promulgadas as deliberações do Capítulo Geral? Trata-se de uma per- gunta que ouço frequentemente: é natural, e é sinal do interesse que se tem ao que se refere à vida da Congregação.

Trabalha-se para acelerar a sua promulgação. Mas é claro que esse trabalho requer certo tempo. Trata-se de uma quantidade enorme de material a reorganizar para dar a todo ele organicidade, clareza e certo sentido unitário. É o trabalho previsto no regula- mento do Capítulo Geral a ser feito por um Comissão Pós-Capitular.

Já está quase no fim a identificação das numerosas deliberações que tocam as atuais Constituições, e que precisam da aprovação da Santa Sé; sem essa aprovação não é pos- sível qualquer promulgação.

A fim de ganhar tempo encaminhamos a deliberação que aumenta de cinco a nove os Conselheiros Capitulares. Essa deliberação já foi aprovada pela Santa Sé e tenho o prazer de comunicar-vos os nomes dos quatro novos Conselheiros: Rev.mo P. Luigi Fiora, Rev.mo

  1. Isidro Segarra, Rev.mo P. Gaetano Scrivo, Rev.mo P. Giovanni Ter Schure.

Cheguei a essa escolha depois de muita oração, longa reflexão, também em relação às novas organizações da nossa estrutura e, segundo o rescrito da Congregação dos Re- ligiosos, de consenso consilii. Os quatro novos Superiores participaram do recente Capí- tulo Geral, têm ótima experiência de governo em vários níveis, prestaram preciosos tra- balhos à Congregação em variados campos da nossa atividade. Temos motivos bem fun- dados de confiança na sua ação em prol da Congregação nos vários encargos aos quais serão destinados. Os quatro novos Conselheiros reúnem-se aos outros Superiores elei- tos pelo Capítulo Geral. O Capítulo Superior passa a ser, por isso, assim constituído:

Reitor-Mor: P. Luigi Ricceri;

Prefeito: P. Albino Fedrigotti; Catequista Geral: P. Modesto Bellido; Ecônomo Geral: P. Ruggero Pilla.

Conselheiros: P. Guido Borra, P. Luigi Fiora, P. Pietro Garnero, P. Ernesto Giovannini,

  1. Archimede Pianazzi, P. Isidro Segarra, P. Gaetano Scrivo, P. Giovanni Ter Schure, P. Bernardo Tohill.

Espero poder comunicar-vos logo como serão distribuídos os vários encargos entre os nove Conselheiros, em respeito às deliberações do Capítulo Geral.

Entretanto, enquanto apresento convosco a cordial saudação e os augúrios mais vi- vos de bom trabalho aos novos Conselheiros, estou certo de interpretar o desejo deles e dos outros Superiores convidando-vos a acompanhar-nos com a vossa oração neste período tão delicado de organização e orientação.

 

8.  Prepara-se a promulgação dos Atos do Capítulo Geral

Contudo, há muitas outras deliberações para cuja aprovação ainda será preciso paci- ência: as Congregações Romanas não têm apenas as nossas questões para estudar. En- tretanto, será concluído o trabalho de organizar todo o material de modo que fique pronto para a impressão e promulgação. À espera, é claro, ninguém por nenhum motivo está autorizado a fazer alterações em qualquer setor da nossa atividade, baseando-se em notícias em todo caso difusas.

Acrescento ainda que depois da promulgação será preciso respeitar em todos os ní- veis as instruções que serão dadas para a sua atuação que, em tantos pontos, não po- derá ser imediata, mas organizada e gradual, e só através dos órgãos competentes, se- gundo as orientações contidas nas mesmas deliberações ou dadas pelo Reitor-Mor no ato da promulgação.

Devemos fazer com que as mudanças e modificações eventuais sejam atuadas na máxima ordem com proveito de todos. Isso é óbvio, e todos percebeis a racionalidade desta norma.

 

9.  Documento importante e fundamental

Gostaria, contudo, de convidar-vos a dar atenção – relendo, comentando – ao docu- mento capitular cuja comunicação aos Irmãos foi autorizada: o Documento sobre a vida religiosa hoje, e sobre os votos, do qual todos os Inspetores receberam uma cópia. Jun- tamente com o discurso do Santo Padre e o do Card. Antoniutti aos Capitulares e com o capítulo da Constituição Conciliar “De Ecclesia” sobre os Religiosos, ele compõe a base essencial e insubstituível de toda a grande “construção” do Capítulo Geral XIX.

As transformações estruturais, a organização moderna de todas as nossas formas de apostolado, do juvenil ao dos instrumentos de comunicação social, a valorização do ir- mão Coadjutor, numa palavra, todo o conjunto do corpus de deliberações que toca os setores da nossa vida e atividade, ficaria praticamente inútil se faltasse a atuação da- quele que é o ponto básico e vital de todas as deliberações do Capítulo Geral. Seria grande ilusão, e diria mais, teríamos perdido tempo, se não se desse a cada salesiano aquele alimento, aquele enriquecimento espiritual do qual hoje mais do que nunca se sente necessidade e que o Capítulo Geral deliberou oferecer, com grande sensibilidade às invocações que chegaram um pouco de toda parte.

Pessoalmente, percebi com alegria que em muitas Inspetorias foram acolhidas com viva satisfação e muita esperança as primeiras notícias sobre as deliberações tomadas pelo Capítulo Geral e, aqui, são oportunas as palavras de advertência de Paulo VI: “... Junto a todos os religiosos que têm um trabalho apostólico de vida ativa, não queremos realmente que prevaleça o falso conceito de que se deva dar o primeiro lugar às obras exteriores e o segundo ao zelo da perfeição interior, com a desculpa de que assim reque- rem as atuais exigências e as necessidades da Igreja. A operosidade zelante e o cuidado com a vida interior, em vez de prejudicar uma à outra, requerem uma estreitíssima rela- ção, de modo a progredirem pari passo” (S. S. Paulo VI aos membros dos Capítulos Ge- rais, 25-5-1964).

 

10.  Sempre com Don Bosco

Retornemos ao querido Pai nesta gloriosa e significativa ocorrência: há cento e cin- quenta anos Joãozinho iniciava, embora longinquamente, a missão que o bom Deus lhe confiara. Sabemos bem como ele se preparou, realizou, coroou essa missão. Hoje, ela é confiada aos filhos espirituais de Dom Bosco e de modo especial ao seu humilíssimo sucessor.

Enquanto da minha parte pretendo dedicar-me inteiramente a essa missão, não me escondo as dificuldades, os obstáculos que se entrepõem para atuar o desejo que o Santo Padre, com paternal bondade, me apresentava no histórico discurso. Ele augurava ao novo Reitor-Mor que “no sulco dos digníssimos Predecessores, saiba guiar a Socie- dade Salesiana pelo caminho tradicional, já seu, voltado sempre a novos desenvolvimen- tos e à inteligente aderência às necessidades dos tempos, como justamente exige a vita- lidade juvenil dos Filhos de Dom Bosco”.

É um programa atualíssimo, como o que certamente nos daria o nosso Pai. Ajudai- me a realizá-lo. Unamos as forças e antes ainda as nossas mentes e os nossos corações, as nossas vontades.

Disponde-vos a ser, cada um no seu campo, colaboradores convictos e concretos na atuação do glorioso e moderno programa, fruto do Capítulo Geral.

Se cada um de nós utilizar estes anos na atuação desse programa, teremos prestado um grande serviço à Congregação, à Igreja, ao Concílio. Teremos celebrado dignamente os 150 anos do nascimento de Dom Bosco, teremos feito da Congregação um instru- mento vivo da Igreja como o Fundador a quis, para chegar às almas do jovem e do ho- mem da nova era; numa palavra, há 150 anos do seu nascimento, teremos dado ainda à sociedade um Dom Bosco vivo, atuante e atual.

 

11.  Reconhecimento em nome de todos os Salesianos

Antes de encerrar esta minha carta, quero dizer uma obrigatória e filial palavra ao amadíssimo e venerado senhor P. Ziggiotti. Ele, depois de ter gasto tantos anos a serviço da Congregação, em tantos postos de responsabilidade, depois de ter levado a cruz do Reitorado com bondade e atividade sacrificada, deu-nos uma grande lição de humildade e desapego, uma lição que vem aumentar ainda mais os méritos que ele adquiriu diante de Deus, diante da Congregação e da Igreja.

Ele, agora, com simplicidade e humildade, dedica-se com serenidade ao Templo-San- tuário do nosso Pai no Colle Don Bosco, edificando a todos com a sua piedade, a sua observância, a sua inexaurível bondade.

Nós lhe repetimos a nossa gratidão, a nossa devoção, com os votos de que o Senhor o mantenha longamente no cuidado do Templo de Dom Bosco com aquele mesmo zelo com que cuidou do monumento vivo do nosso Pai: a Congregação.

Igualmente, ao caríssimo senhor P. Antal, que deixou com modéstia e simplicidade o cargo de Catequista Geral, a gratidão da Congregação à qual deu tanto do seu grande coração. Agora, ele está na casa de formação de Cumiana, onde é considerado pelos irmãos como um dom precioso. O Senhor lhe dê saúde e conceda ver dias melhores para a sua amada e tão provada Pátria.

Tende paciência; devo ainda pedir-vos uma caridade.

Um irmão quis apresentar ao novo Reitor-Mor um gesto simples, mas tão cheio e rico de significado: ele enviou-me um quadro que mostra uma trilha montanhosa, áspera e pedregosa, e, ao longo da trilha, uma capelinha dedicada à Virgem; ao fundo, distante, os montes nevados no esplendor da luz solar. A legenda sob o quadro traz um versículo do Salmo 5: “Aplaina à minha frente teu caminho”.

E o bom irmão (que não assinou) acrescenta de próprio punho: “É o augúrio de um seu filho”.

Enquanto agradeço desde estas páginas a este caro irmão e com ele os muitos que quiseram dar-me conforto e encorajamento de mil maneiras por ocasião da minha elei- ção eu digo a todos: “Caros irmãos, fazei vossa a oração, o sentimento do versículo ci- tado. Ajudai-me com vossa oração cotidiana para que o Senhor aplaine o caminho à minha frente”.

Com o mais sentido agradecimento, tende certeza da minha paterna e fraterna re- cordação in Domino por cada um de vós, especialmente pelos doentes, pelos anciãos, pelos juveníssimos, pelos missionários, por aqueles que não podem viver em liberdade a própria vocação religiosa e salesiana, por todos os que sofrem. E levai a minha sauda- ção e a bênção da Virgem Santa às ótimas Filhas de Maria Auxiliadora às quais estamos tão ligados por vínculos de fraternidade, aos Cooperadores, aos ex-alunos, alunos, a to- dos que olham para Dom Bosco como a um Pai, Mestre e Amigo.

E o querido Pai, a todos, a todos abençoe e conforte. Afeiçoadíssimo em C. J.

Luís Ricceri
Reitor-Mor

 

NOTÍCIAS DE FAMÍLIA

Luís Ricceri

Atos do Conselho Superior 243

Trabalho da Comissão Pós-Capitular. – Encargos confiados aos vários Superiores. – Conselheiros encar- regados de grupos de Inspetorias. – Potencialização dos Dicastérios. – Iniciativas para o 150º aniversário de Dom Bosco.

Roma, outubro de 1965

Irmãos e filhos caríssimos,

esta minha carta é datada em Roma onde estou para participar do Concílio, sem, po- rém, descuidar dos compromissos consequentes ao Capítulo Geral. É urgente, de fato, o início da nossa atividade segundo as diretrizes por ele traçadas, o que exige a minha presença também na Casa-Mãe.

Não estou aqui a descrever-vos os sentimentos que em mim suscita o privilégio de participar do Concílio, deste Concílio.

Neste contato com a Igreja viva e com as questões que ela corajosamente enfrenta para estabelecer um diálogo com o mundo de hoje, no encontro com tantos digníssimos expoentes da Hierarquia, dos Institutos religiosos, da cultura e do apostolado eclesial, encontro elementos preciosos de verdadeiro enriquecimento.

Comprometo-me a falar-vos em outra ocasião, e com certo respiro, dos ensinamen- tos que o Concílio, e esta sessão em especial, oferece à Congregação, a nós, parte viva do povo de Deus e mais diretos e qualificados colaboradores da Igreja, chamados a en- tender com ela a hora de Deus.

Esta minha carta tem a finalidade de levar ao vosso conhecimento notícias que espe- rais com justificada impaciência.

 

1.  Trabalho da Comissão pós-capitular

Reuniu-se, em setembro, em Turim, a Comissão pós-capitular prevista pelo Capítulo Geral XIX, para a revisão formal dos Atos e das Deliberações. Sua finalidade era dar ho- mogeneidade e organicidade aos documentos, eliminando repetições, redundâncias, imprecisões e outros defeitos eventuais de forma. Uma comissão técnica restrita for- mada pelo P. Luigi FIORA, P. Angelo BIANCO, P. Giovanni RAINERI e P. Alfredo FRONTINI, já fizera um precioso trabalho nesse sentido, facilitando a tarefa da Comissão pós-capi- tular.

A esses Irmãos vai o meu e vosso agradecimento pelo trabalho que fizeram com dili- gência e inteligência.

E agora os nomes dos componentes da Comissão:

  1. Archimede PIANAZZI; P. Luigi FIORA; P. Isidoro SEGARRA; P. Giuseppe AUBRY; P. Angelo BIANCO; P. Pietro BRAIDO; P. Enrico DELACROIX; P. Antonio JAVIERRE; P. Ivo PAL- TRINIERI; P. Giorgio SOLL; P. Eugenio VALENTINI; Sr. Francesco BERRA.

O Reitor-Mor, na primeira reunião, deu as diretrizes para o trabalho a fazer; depois, referindo-se ao voto expresso pelo Capítulo Geral de que todos os Irmãos tivessem cópia das deliberações capitulares, achou oportuno que se fizesse a sua tradução nas princi- pais línguas, permanecendo firme que a edição oficial-base será a redigida em italiano.

A Comissão propôs que as várias traduções fossem preparadas e impressas em de- terminados centros da Congregação, sob a responsabilidade dos Inspetores locais. Estes, depois, segundo as orientações dos Inspetores interessados, providenciarão o envio de um número suficiente de cópias para as necessidades das Casas.

Os Atos, portanto, serão publicados, além de em italiano, também em francês, inglês, holandês, português, espanhol e alemão.

Nestes dias fazem-se contatos com os Inspetores que deverão interessar-se pela tra- dução.

A Comissão trabalhou incansavelmente por vários dias discutindo e corrigindo, com a intenção de oferecer um texto que correspondesse fielmente não só à letra das deli- berações, mas também à mens do Capítulo Geral.

Propôs ainda uma ordem lógica segundo a qual distribuir os documentos na sua pró- xima promulgação.

Para todo esse trabalho, além dos textos dos documentos capitulares (22 ao todo), a Comissão tinha à sua disposição as atas das reuniões e as gravações em fita magnética de todas as discussões e das intervenções (25 km de fitas!).

A Comissão examinou também as considerações preliminares (princípios, premissas, etc.) com que cada documento introduz as verdadeiras e próprias deliberações.

As considerações preliminares não foram objeto de deliberação capitular, antes, mui- tas vezes, nem mesmo de discussão; mas, à parte algumas observações, foram aprova- das no seu conjunto e enviadas ao exame detalhado de competentes. Finalidade dessas considerações é fazer compreender a mens do Capítulo ao tomar as suas deliberações.

Agora, enquanto se espera da Congregação dos Religiosos a aprovação das alterações feitas em artigos das Constituições, prepara-se todo o material para a impressão e as traduções. Esperamos assim abreviar ao máximo a espera da promulgação.

 

2.  Encargos confiados aos vários Superiores

Ao mesmo tempo, tenho o prazer de comunicar-vos os encargos confiados aos vários Superiores, como resultam após as deliberações do Capítulo Geral.

O rev. P. Albino FEDRIGOTTI, Prefeito Geral, além das funções definidas para ele pelas Constituições e Regulamentos, se interessará pelas Missões, assistidas até agora pelo Conselheiro Geral das Missões.

O rev. P. Modesto BELLIDO, Catequista Geral, continuará a ter a responsabilidade so- bre a vida religiosa e moral de toda a Congregação, salvo quanto foi demandado ao Con- selheiro Geral da Formação salesiana no que se refere ao ciclo estritamente formativo dos Irmãos.

O rev. P. Ruggero PILLA, Ecônomo Geral, manterá inalteradas as suas atribuições.

O rev. P. Archimede PIANAZZI, Conselheiro para a formação salesiana, ocupar-se-á diretamente de todo o pessoal salesiano em formação: clérigos, sacerdotes e coadjuto- res, do final do noviciado até a conclusão da sua formação.

Assistirá também os estudantados e magistérios, os cursos de pastoral e do quinquê- nio, os Salesianos que frequentam cursos e faculdades universitárias ou semelhantes. Dele dependerá o PAS; acompanhará também as questões da formação dos clérigos e coadjutores em tirocínio. Terá ainda a responsabilidade do pessoal adido à formação dos Salesianos e das questões inerentes a essa atividade.

O rev. P. Gaetano SCRIVO, Conselheiro para a Pastoral Juvenil e Paroquial, fica encar- regado da direção de tudo quanto se refere à formação dos jovens das nossas institui- ções (Oratórios, Internatos, Externatos, Escolas profissionais, Pensionatos, Centros Ju- venis, Círculos, Companhias, Associações juvenis várias) e das atividades paroquiais.

O rev. P. Luigi FIORA, Conselheiro para os apostolados sociais, acompanhará os Coo- peradores e Ex-alunos, ocupar-se-á dos instrumentos de comunicação social e, em es- pecial, das atividades editoriais, de propaganda e informação salesiana.

 

3.  Conselheiros encarregados de grupos de Inspetorias

Há, ainda, os Conselheiros encarregados de grupos de Inspetorias

Estes Superiores, além de participar do governo da Sociedade, cuidarão do relacio- namento entre o Conselho Superior, as Inspetorias e o seu pessoal. Promoverão, pois, relações continuadas que permitam um conhecimento mais preciso e imediato das situ- ações locais e representarão o Reitor-Mor e seu Conselho junto aos Irmãos do seu grupo de Inspetorias.

Estará ainda aos seus cuidados organizar e presidir reuniões de Inspetores e, segundo a oportunidade, encontros por categorias; manterão relações com organizações de ca- ráter nacional ou internacional, com conferências episcopais, etc. Isso tudo evidente- mente sem prejuízo da autoridade dos Inspetores, que permanece intacta.

Continua entendido que, se acreditar oportuno, todo Irmão sempre poderá dirigir-se não só ao Reitor-Mor, como também a qualquer outro Superior.

É natural que a nova estrutura do nosso governo não poderá iniciar a não ser aos poucos. Mas os Superiores estão sem mais à disposição para todos os serviços da própria competência, e logo começarão a exercer as funções próprias do seu dicastério.

São estes os Conselheiros com os agrupamentos de Inspetorias das quais são encar- regados:

Rev. P. Guido BORRA: Inspetorias da Argentina, do Uruguai, Chile, Equador e Peru. Rev. P. Pietro GARNERO: Inspetorias do Brasil, Paraguai, Bolívia, Colômbia e Venezu-

ela.

Rev. P. Ernesto GIOVANNINI: Inspetorias da Itália e do Oriente Médio.

Rev. P. Isidoro SEGARRA: Inspetorias da Espanha, Portugal, Antilhas, América Central e México.

Rev. P. John Ter SCHURE: Inspetorias da Áustria, Bélgica, Checoslováquia, França, Ale- manha, Holanda, Iugoslávia e Polônia.

Rev. P. Bernardo TOHILL: Inspetorias da Inglaterra, Estados Unidos, Ásia e Austrália.

 

4.  Potencialização dos Dicastérios

Como se disse em sede de Capítulo Geral, os vários Dicastérios serão potencializados com pessoal adequado, de modo que os Superiores possam ter uma colaboração efici- ente para o estudo e a solução das respectivas questões.

Estes Irmãos serão gradualmente requisitados, segundo as necessidades, às várias Inspetorias, que estarão alegres por dar ao Centro da Congregação essa concreta e pre- ciosa contribuição para benefício de todos.

A visão embora sumária desse quadro, que de resto não está completo e será apre- sentado a seu tempo integralmente nos Atos do Capítulo Geral, dá logo uma ideia das finalidades que se quer alcançar com a nova estrutura do Conselho Superior (não mais Capítulo Superior) da Congregação como hoje se apresenta e como se projeta no seu complexo e vasto desenvolvimento.

É pacífico que nem tudo nascerá já perfeito; aos poucos, a experiência concreta irá sugerir-nos muitas coisas. Contudo, a nós, a cada um de nós, cabe atuar e dar vida no melhor modo ao plano elaborado com muito estudo e em várias fases do Capítulo Geral, que por sua vez fez tesouro de estudos e propostas vindas um pouco de todas as partes da Congregação.

Por isso, podemos ter a certeza de que da atuação diligente e sistemática da nova organização surgirá não pouco bem à vida da Congregação.

 

5.  Iniciativas para o 150º aniversário de Dom Bosco

Chegam de várias partes relatórios de manifestações comemorativas pelo 150º ani- versário do nosso Pai. Muito bem!

Creio que não faltará em nenhuma das nossas obras uma comemoração solene de evento tão importante, que poderá encontrar também um relevo adequado na im- prensa local, em transmissões de rádio e televisão, em exposições especiais ou em ou- tros modos convenientes.

Mas não nos detenhamos aqui: as manifestações. Mesmo as mais solenes. correm o risco de permanecerem como episódios estéreis que, talvez, sirvam apenas para dar vida a formas triunfalistas, ilusórias e não fecundas de verdadeiro bem.

Preocupemo-nos em dar alma e vida ao feliz acontecimento.

Por isso, será muito oportuno que em cada uma das nossas Casas se celebre por to- dos os Irmãos reunidos na intimidade da família o Dia da fidelidade a Dom Bosco. Onde for possível, seja fixada a data de 31 de dezembro e se faça coincidir com um dia de retiro. Para o maior sucesso da iniciativa apresento algumas sugestões.

  1. Prepare-se bem o ambiente espiritual e a comunidade dos Irmãos, buscando du- rante o mês anterior textos e argumentos inspirados na vida e no espírito do nosso Fun- dador para a meditação e a leitura
  2. No dia escolhido, de acordo com o número dos Irmãos e da natureza da obra, a celebração pode desenvolver-se num dos seguintes modos:

 

  1. Concelebração com homilia, Oratio fidelium de acordo com a circunstância, Ato de Consagração depois da Comunhão (o texto do Ato de Consagração está anexado na p. 11).
  2. Vigília bíblica sobre textos sacros tirados do ofício da festa de Dom Bosco, conclu- ída com o Ato de Consagração.
  3. Hora de Adoração Eucarística com o Ato de Consagração.

Também para os jovens dos nossos ambientes, este ano jubilar haverá de oferecer- nos uma ocasião muitíssimo profícua para estudar e atuar iniciativas de índole espiritual, escolar, organizativa, etc. idôneas para tornar mais conhecidas a figura e a obra de Dom Bosco, e, portanto, aumentar no coração dos nossos jovens a devoção ao nosso Pai e Mestre, alimentando à sua escola, o ideal de uma vida profundamente cristã e genero- samente apostólica.

Os senhores Inspetores e Diretores saberão como traduzir na prática estas sugestões, no próprio ambiente. Ficarei contente, a seu tempo, de receber notícias das iniciativas que se tomarão a respeito.

Ajude-nos o bom Pai a prestar-lhe essa filial, devota homenagem, da qual também teremos renovada vontade de dar a nossa contribuição pessoal para atuar as delibera- ções do Capítulo Geral.

Dessa forma, faremos realmente reviver Dom Bosco na Congregação, na Igreja, para o bem da sociedade.

Recordo-vos a todos in fractione panis; conto com a vossa oração e agradeço-vos por ela.

Vosso afeiçoadíssimo em Dom Bosco,

Luís Ricceri
Reitor-Mor

 

APRESENTAÇÃO DOS ATOS DO CAPÍTULO GERAL XIX

Luís Ricceri

Atos do Conselho Superior 244 

 

Apresentação. – O Salesiano no centro de tudo. – A Congregação num momento de inflexão. – Perso- nalizar doutrinas e normas. – Responsabilidade dos Superiores. – Redimensionamento das obras. – Hi- erarquizar as obras. – Conclusão: caminhar!

Turim, 31 de janeiro de 1966

Caríssimos Irmãos,

tenho a alegria de apresentar-vos os Atos do Capítulo Geral XIX, esperados com viva impaciência em todas as partes da Congregação.

Seria contrário à vossa inteligência se ficasse a explicar-vos quanto trabalho de reda- ção, revisão e correção comportou a preparação definitiva destes Atos. Estou certo de exprimir o comum sentimento apresentando aqui o mais vivo agradecimento a todos os que, e não são poucos, trabalharam nestes meses na preparação e redação dos Atos.

Chegou ao fim a tarefa do Capítulo Geral, dos Superiores Maiores e das Comissões pós-capitulares. Agora, com a promulgação do Reitor-Mor, que segue – no que era da sua competência – à aprovação da Congregação dos Religiosos, os Atos tornam-se pa- trimônio de todos e de cada um dos Salesianos, vida da nossa vida, alimento das refle- xões cotidianas e, antes de tudo, empenho generoso e sincero para a sua atuação.

 

1.  O Salesiano no centro de tudo

Se quisesse recorrer a uma comparação para descrever de algum modo a imagem do nosso Capítulo Geral, eu a tomaria, em espírito de humildade, do Evangelho, dizendo que ele foi e é uma casa construída em rocha sólida.

No centro dessa casa construída, que se tornou nossa, tijolo após tijolo, num longo e laborioso trabalho de ideias, está uma figura humana, uma figura dominantes, viva e palpitante, à qual todos os Capitulares olharam com ansiedade fraterna, à medida em que a casa ia surgindo: o Salesiano.

Não gostaria que a variedade e o volume de documentos que tendes sob os olhos vos distraísse desse horizonte central que foi a preocupação primeira e constante de todo o longo Capítulo Geral: o Salesiano, o Salesiano a formar e fixar com coragem no centro de uma rica e vigorosa tradição na qual se enxerta o novo, que serve justamente para dar vida e vigor renovados ao Salesiano do novo século. Trabalhamos, antes que pelas obras, por vós, caros Irmãos, cada um de vós em particular. Nós vos tivemos presentes todos os dias com alegria e com tremor de irmãos, pensando antes nas vidas preciosas dos irmãos e, depois, nas estruturas e atividades da nossa Família.

Gostaria que soubésseis disso e vos sintais confortados.

A isso mira toda a arquitetura dos documentos, a isso a variedade das iniciativas, novas ou sentidas de maneira nova, como o redimensionamento das obras, a readequa- ção dos vários ofícios e conselhos, a instituição do Vigário ao lado do Inspetor e do Dire- tor, a definição da figura do Diretor Espiritual, o Retiro mensal com organização mais empenhada, os Exercícios Espirituais organizados de modo a dar mais tempo ao trabalho pessoal, os cursos periódicos de atualização ascética para as várias categorias, os cursos de preparação dos futuros elementos dirigentes e formadores da Congregação, a insti- tuição de Consultas, a formulação dos Diretórios para os vários ciclos formativos, a nova normatização do tirocínio, a preparação adequada para a profissão perpétua, a possibi- lidade de um segundo noviciado, etc. É toda uma floração de iniciativas voltadas ao de- senvolvimento do trabalho fecundo da formação do Salesiano como exigida pelo mo- mento histórico em que vivemos e pelo mesmo apostolado que somos chamados a exer- cer hoje.

Ligada a essa exigência formativa há a outra não menos importante da qualificação de cada Irmão para as várias tarefas às quais a obediência o chamará. Hoje, a sociedade recusa-se a inserir genéricos nas suas estruturas, homens sem especialização cultural, técnica, profissional. E, infelizmente, os sinais dolorosos desse duro pedágio são perce- bidos nos fenômenos angustiantes do desemprego, da fome, da emigração, etc.

Por isso, nós não podemos acomodar-nos na cândida ilusão de que baste um pouco de boa vontade para enfrentar as imensas exigências que as nossas obras nos vêm pro- jetando todos os dias, e que em todo caso baste rebocar o carro e chegar à noite cansa- dos pelo tanto e múltiplo trabalho com que nos sobrecarregamos.

As pessoas, a Igreja sobretudo, acreditam que somos especialistas autênticos da pe- dagogia e do apostolado (ver Anexo II: Discurso de Paulo VI aos membros do Capítulo Geral XIX da Sociedade de São Francisco de Sales). Precisamos, o quanto possível, cor- responder a essa expectativa. Precisamos qualificar-nos servindo-nos dos meios que a Congregação generosamente põe à nossa disposição (estudos, cursos, títulos, leituras, etc.). Já não basta certa prática para dar boas aulas ou dirigir oficinas. Agora, qualquer manifestação da nossa atividade exige gente qualificada no campo teológico, litúrgico, filosófico, pedagógico, científico, técnico, escolar, artístico, recreativo, administrativo, etc. Não se diz aqui para fazer coleção de títulos acadêmicos, de altas especializações, muito menos se quer encorajar uma egoísta e ambiciosa corrida a estudos para satisfa- ção pessoal, mas estéreis para o apostolado; requer-se apenas uma preparação real- mente adequada para trabalhar frutuosamente em algum dos inumeráveis campos de ação à qual a Providência nos chama. Entrevem-se logo quais e quantas consequências provêm destas orientações para Superiores e Irmãos.

 

2.  A Congregação num momento de inflexão

Durante os trabalhos capitulares houve uma nítida sensação de que todos os presen- tes olhavam ansiosamente para o Concílio Ecumênico Vaticano II. A atmosfera de Roma alimentou evidentemente esse clima de tensão primaveril, repleta de promessas.

Todos nós concordamos que a Congregação está num momento decisivo de inflexão. Mas não nos equivoquemos com o termo. Se, por inflexão se entende entrar por outro caminho, então não estamos na verdade. Se por inflexão se entende caminhar pelo

mesmo caminho embora com novos incentivos, orientações e estruturas, então, esta- mos na verdade porque, antes de nós, a Igreja fez a mesma inflexão decisiva e corajosa, embora permanecendo no terreno fecundo da sua secular tradição divino-humano.

Surgem aqui oportunas, e devem ser bem consideradas, as palavras que Paulo VI nos dirigiu: “A vossa Sociedade marca uma etapa, faz um balanço, conclui um período e ini- cia outro” (Paulo VI, ibid.). Fizemos uma generosa semeadura no solo da tradição. Ine- gavelmente haverá novidades; mas sempre enxertadas no vigoroso tronco de uma tra- dição que deu abundantes frutos no passado e que, portanto, não pode frustrar-nos no futuro.

Olhemos, portanto, para o futuro com “aderência inteligente às necessidades dos tempos” (Paulo VI, ibid.).

 

3.  Personalizar doutrinas e normas

Para que esse enxerto atue de forma mais feliz e fecunda, é preciso, antes de tudo, criar uma mentalidade mais do que um inventário de coisas a praticar. Como todas as coisas grandes e belas, também devemos sentir o Capítulo em cada um de nós para entendê-lo e apreciá-lo. É preciso que ele se torne essência da nossa mente e do nosso coração antes de transformar-se em ritmo de ação. Com a ajuda do Espírito Santo e sob a amorosa guia dos Superiores, deputados para essa delicadíssima tarefa, devemos es- tudar e aprofundar, antes de mais, as ideias que animam os documentos; só assim po- demos ser os realizadores não tanto de mínimas disposições individuais, quanto do plano de conjunto que entende renovar a nossa vida de religiosos, de Salesianos, de apóstolos.

Não digamos logo diante de um documento: “Isso não se refere a mim, isso é para os sacerdotes, para os coadjutores, para as paróquias, etc.”. Numa família, não se pensa e não se age assim. As coisas de um são as coisas do outro; os projetos de alguém são os projetos de toda a família. Leiamos, então, e meditemos com igual atenção todos os documentos e os anexos contidos no volume. A luz, sabemo-lo muito bem, deriva da síntese de várias cores. Cada documento contribui para a lapidação de todo o precioso diamante do Capítulo; os documentos iluminam-se reciprocamente. Podem-se encon- trar cá e lá alguns particulares que ajudem muitíssimo a descobrir o verdadeiro espírito que animou num só coro de inquietudes todo o Capítulo.

Lede, pois, sozinhos e atentamente; não vos contenteis com a primeira leitura feita em comunidade. A Congregação, quase ousaria dizer Dom Bosco, com este Atos não quer fazer uma bela conferência ou uma bela pregação aos seus filhos; quer estabelecer um diálogo íntimo, construtivo com cada um de vós; quer dizer-vos o que é preciso fazer para retomar o caminho fecundo no nosso segundo século de vida.

 

4.  Responsabilidade dos Superiores

Há nos Atos, evidentemente, algumas coisas que deverão ser esclarecidas e depois aplicadas com prudente gradualidade. Por isso, os Superiores responsáveis não deixarão de dar oportunas e tempestivas normas para evitar interpretações arbitrárias. Depois da promulgação destes Atos, estamos todos de acordo que devem cessar as opiniões pessoais para confluir no álveo de uma ação unitária, sem a qual não se pode fazer uma

obra construtiva. Ou seja, há coisas que não são delegáveis ao modo de sentir, ao espí- rito de iniciativa pessoal. A nossa família é grande e precisa coordenar as forças numa mesma linha de ação, renunciando, se for necessário, às visões pessoais.

Nasce disso o urgente empenho de cada Superior de coordenar, esclarecer, orientar, apelar à união dos colaboradores diretos para passar sem dispersões ou desvios danosos à fase executiva. Colaborar e aconselhar-se. Aqui é o caso de voltar a insistir no espírito de “serviço”, que deve caracterizar a autoridade em qualquer nível e de um serviço or- denado, programático, harmonioso.

Nada seja improvisado. Estudem-se e façam-se estudar os programas de ação. Veja- se o modo concreto de atuar as disposições capitulares com as várias categorias de Ir- mãos atuantes na comunidade: com os sacerdotes e os coadjutores, com os jovens e os idosos.

Para esta delicada trama de trabalho é preciso empenhar a fundo e contar com o senso de colaboração em todos os níveis: no centro da Congregação, nos grupos de Ins- petorias, nas Inspetorias, em cada Casa e em cada setor das nossas atividades.

Redescubramos nesta ocasião a preciosidade do diálogo fraterno e construtivo, tão recomendado pela Igreja na histórica encíclica Ecclesiam suam. É questão de justiça: todos nós tiraremos grandíssimas vantagens disso, sob todos os aspectos.

A nossa Congregação é de vida ativa e dispõe de recursos que devem ser sabiamente usufruídos. Talvez, muitos Irmãos já maduros de anos e de experiência ainda possam descobrir os próprios recursos de apostolado seja para si mesmos seja para a comuni- dade na qual trabalham. Aproveitemo-lo valorizando-os com confiança.

O responsável pela autoridade ouça de boa vontade e com frequência os seus cola- boradores e estes, por sua vez, acreditem que o seu primeiro dever é colaborar, dando nos Conselhos a contribuição da própria inteligência, da própria experiência, sempre e somente no desejo do verdadeiro bem da comunidade, das almas, não certamente para impor a qualquer custo o próprio ponto de vista.

Nenhum de nós é uma fonte: somos todos riachos mais ou menos abundantes de água que devem confluir generosamente para um único leito, o da nossa comunidade abençoada por Deus.

Os problemas não serão nem pequenos nem poucos, tanto nas Inspetorias como nas Casas. Mas o Senhor não deixará de premiar o esforço unânime e sincero de toda a Con- gregação, em todos os seus membros, em todos os níveis, e fará adequar-se aos tempos em novidade de vida, para atuar com método e coragem as decisões que ela mesma decidiu e estabeleceu através do Capítulo Geral, seu órgão jurídico e qualificado.

 

5.  Redimensionamento das obras

As nossas obras já são muito numerosas e muitas vezes também muito complexas tanto pelas suas proporções como pela heterogeneidade das atividades que nelas se realizam. Se devêssemos caminhar sob o incentivo dos pedidos que incessantemente nos chegam de autoridades, benfeitores, entidades, deveríamos aumentá-las excessiva- mente. Contudo, não podemos ignorar as sábias e iluminadas exortações de Paulo VI: faltaríamos ao vigilante senso de responsabilidade que nos deve orientar no governo da Congregação.

Não podemos minimizar as palavras de exortação do Sumo Pontífice: “Existem ten- tações sutis... perigos graves... dificuldades inerentes às mesmas proporções que a Con- gregação vai assumindo” (Paulo VI, ibid.).

É claro que antes de pressionar para aumentar em número e dimensões as obras já existentes, devemos ouvir a todos, com apreensão, a preocupação pelo homem, pelo religioso, pelo Salesiano, pelo protagonista precioso desta atividade vertiginosa. Se as- sim não fosse, daríamos vida a construções também impressionantes para quem olhe de fora, mas acabaríamos por sufocar o homem, o religioso, o Salesiano. Não podemos exigir além de certo limite, pelo bem autêntico do Irmão, pelo próprio rendimento do seu generoso trabalho apostólico. Impele-nos e deve impelir-nos antes de tudo a sua pessoa de religioso, porque ele, ao fazer a sua profissão, pôs nas nossas mãos toda a sua existência para o tempo e a eternidade. Isso não significa que o Salesiano também no futuro não deva ser o grande trabalhador como sempre foi tido pela Igreja e pela socie- dade.

Devemos perguntar-nos, portanto, com um pouco de realismo: qual a finalidade pela qual quereríamos manter abertas certas obras, aumentá-las ou também iniciar outras? Para fazer o bem às almas. Quais almas? As dos jovens e adultos confiados aos nossos cuidados. Mas quem não vê que esse bem é irrealizável, se faltam Irmãos que se dedi- quem a elas ou se aqueles que há se perdem sob o esgotamento cruciante de um traba- lho sem trégua, sem pausas tonificantes para o seu físico, para a sua inteligência, e, an- tes ainda, para o seu espírito?

O Papa disse-nos que há um “primado não só de dignidade objetiva, mas de virtude operativa” a ser reconhecido à vida religiosa tanto para a nossa santificação como para a educação dos outros (Paulo VI, ib.).

Sei é que é preciso muita coragem para dizer ‘não’ a muitos pedidos, sobretudo quando vêm de pessoas beneméritas das nossas obras e de autoridades que desejam ir ao encontro de necessidades sociais urgentes. Sei, caros Irmãos, e vos compreendo. Mas é uma questão de vida ou de morte para a Congregação. Não queremos impor mais trabalho a tantos caros Irmãos que sentem ressecar dentro de si as fontes frescas e pu- ras do seu sacerdócio, da sua consagração religiosa.

O apostolado é uma delicada operação de almas. Não se pode realizá-la com almas exaustas. Se amanhã o Senhor, em vista da nossa resposta generosa, criar situações mais favoráveis, ficaremos bem felizes em dar ouvidos aos pedidos urgentes que nos chegam de todas as frentes da Igreja.

 

6.  Hierarquizar das obras

De Dom Bosco até hoje nos vimos em crescimento desproporcional não só no nú- mero, mas também nos tipos de obras.

Aqui será preciso também um pouco de coragem para nos alinharmos ao que a Igreja, através do Concílio, acreditou oportuno recomendar e o próprio Capítulo Geral afirmou claramente. Nesse sentido, é preciso respeitar duas exigências fundamentais: não se afastar do espírito genuíno da Congregação e dar preferência às classes mais necessita- das do contexto social de hoje.

Faz parte do instinto natural das instituições tender sempre a um nível superior, com risco, não poucas vezes, de se desviar da sua finalidade original. Isso se constata tanto

nas organizações civis como nas religiosas. Agora é preciso que a Igreja, desejosa de chegar às classes sociais mais desprovidas (Paulo VI, ib.), possa contar conosco plena- mente, generosamente.

A nossa Congregação, essencialmente, deve continuar a ser “testemunho... da vitali- dade do Evangelho e do coração da Igreja pelos carentes do mundo, especialmente dos jovens e do trabalhador” (Paulo VI, ib.).

Temos confiança nas “finalidades” à qual a nossa Congregação se “consagrou”, por- que “não poderiam ser mais nobres, mais modernas, mais urgentes, mais de acordo com o projeto apostólico da Igreja hoje” (Paulo VI, ib.).

As nossas finalidades são aquelas voltadas à formação juvenil. Com elas “a Congre- gação participa da missão da Igreja”, com elas “fazemos Igreja”. Neste setor a Igreja conta conosco explicitamente e de forma eminente. “O Salesiano é enviado pela Igreja aos jovens de hoje” (Doc. CG XIX “Apostolado juvenil”, cap. I).

No respeito filial às preocupações que nos foram confiadas pelo Santo Padre, deve- mos alinhar em primeira fila a obra dos Oratórios e da educação, especialmente no setor profissional, pelos jovens das classes menos favorecidas.

O Oratório deve ser novamente a nossa primeira preocupação. Um Oratório que, en- quanto abre as portas às multidões de jovens que se comprimem ao redor dos seus mu- ros, saiba responder fartamente aos problemas impostos hoje pelo tempo livre, com todos os instrumentos e habilidades da técnica e da arte moderna. Um Oratório que não se resuma a um pátio ou uma sala de jogos cheia, mas que seja um “centro juvenil” no sentido mais completo, mais moderno, mais dinâmico da palavra, no qual a Catequese seja apresentada com os métodos e as técnicas mais adequadas ao nosso tempo.

Vem depois a instrução profissional sentida como necessidade inadiável pela socie- dade e, por reflexo, pela Igreja. O Papa e o Episcopado mundial expressaram-se em ter- mos de urgência inadiável. O mundo do trabalho espera uma alma cristã e essa alma só pode ser transmitida sobretudo quando o elemento humano ainda é suscetível de ori- entação e formação. São os jovens aprendizes, os jovens trabalhadores que devem ser aproximados, organizados, acompanhados em nossas escolas, pensionatos, centros ju- venis. O mundo redescobriu o trabalho como fator econômico de primeiro plano; cabe a nós redescobri-lo e fazer com que seja redescoberto como elemento de espirituali- dade cotidiana, de elevação sobrenatural.

Qualquer abandono destes campos, que não seja imposto por circunstâncias particu- lares reconhecidas pela própria Igreja e consagradas pela obediência, soaria como trai- ção, abandono das fronteiras que Deus nos indicou.

Estamos, todos e cada um, empenhados nessas fronteiras. Devemos persuadir-nos de que “a formação integral do jovem é obra de toda a comunidade educativa” (CG XIX, “Formação dos jovens”, cap. I). Todo vazio deixado nesse setor para dedicar-se a ativi- dades e iniciativas pessoais rompe a solidez desse contexto educativo, no qual cada gesto e palavra tem a sacralidade de um ato religioso porque, garante-nos Jesus, “tudo o que fizestes aos pequenos e aos necessitados, foi a mim que o fizestes” (Paulo VI, ib.).

Contudo, prioridade e proeminência não querem dizer naturalmente exclusividade. Nossas Constituições preveem ainda outras atividades apostólicas, que são também perfeitamente salesianas, e como tais devem ser estimadas e cuidadas por quem tem, de algum modo, responsabilidade sobre elas. Pensemos nas Missões, que devem conti-

nuar a ser as trincheiras das nossas conquistas e da nossa glória, no apostolado da im- prensa e nos instrumentos de comunicação social, que são hoje o seu desenvolvimento natural. E como poderíamos desinteressar-nos dos Cooperadores e dos Ex-alunos? As paróquias, depois, são frequentemente uma necessária integração da nossa missão es- pecífica.

O importante é ter, na variedade dos trabalhos abertos à Congregação, o sentido das proporções e a sadia abertura que, enquanto nos faz empregar todas as forças de que dispomos sem exclusões mesquinhas, ao mesmo tempo nos mantém distantes das cor- ridas incontroladas a metas não desejadas para nós pela Igreja, nem pela Congregação, nem pela obediência, e, com frequência, criadas por preocupações ligadas à ambição.

 

7.  Conclusão: caminhar!

Caríssimos Irmãos, quis chamar a vossa atenção para algumas ideias que vos poderão orientar e iluminar na avaliação e, mais ainda, na atuação do conjunto das deliberações do Capítulo Geral XIX.

Espero que elas vos sirvam para entender, segundo a frase de Paulo VI, a hora de Deus, que brotou com o Concílio Vaticano II e, para nós, também com o Capítulo Geral XIX; a ser concretamente factores verbi, realizadores do que a Igreja e a Congregação dispuserem para o bem das nossas almas e das almas das quais somos responsáveis.

De fato, nós todos, depois da promulgação, temos a obrigação de não mais discutir, mas de atuar com boa vontade e generoso fervor, as deliberações do Capítulo Geral XIX, justamente como filhos autênticos da Igreja e de Dom Bosco.

No novo caminho que iniciamos – unidos na caridade e na confiança recíproca – so- mos encorajados pelas paternas palavras de Paulo VI dirigidas aos representantes da nossa amada Congregação, e, portanto, a todo Salesiano. Ele quis garantir-nos “que o caminho percorrido foi reto e benéfico, e deve ser continuado com passo confiante e alegre” (Paulo VI, ib.).

Confiança e alegria.

“Escolhemos bem”. A Igreja confirma-nos “a certeza e o mérito do nosso programa apostólico” (Paulo VI, ibid.).

“Caminhar!” foi a última palavra do Santo Padre na despedida do Capítulo Geral: “Ca- minhar para a mais autêntica fidelidade ao espírito da Igreja e de Dom Bosco” (Paulo VI, ib.).

Caríssimos Irmãos, os Atos do Capítulo Geral XIX que, com o coração de Dom Bosco, entrego a cada um de vós, miram justamente a esta meta.

Assista-nos, no novo caminho, a Virgem, Mãe e Auxiliadora da Igreja e da Congrega- ção.

Luís Ricceri
Reitor-Mor

 

A NOSSA RESPONSABILIDADE PERANTE OS “ATOS DO CAPÍTULO GERAL XIX

Luís Ricceri
Atos do Capítulo Superior 245

A nova série dos “Atos”. – Confortadora união de corações. – A nossa responsabilidade diante dos “Atos do Capítulo Geral”. – Aprofundar os “Atos do Capítulo Geral”. – Algumas ideias fundamentais. – Sobre a Constituição Apostólica “Poenitemini”.

Turim, 19 de março de 1966.

Caríssimos Irmãos e filhos,

 

1.  A nova série dos “Atos”

Com este número dos Atos tem início uma nova série organizada segundo as normas dadas a seu tempo pelo nosso Capítulo Geral. Encontrareis também um relatório sobre as “Atividades do Conselho Superior” nestes primeiros meses. Certamente agradará a todos conhecer as iniciativas e os problemas que ocupam os Superiores no governo da Congregação e servirá para tornar sempre mais intensa e atuante a ligação entre o Cen- tro e a periferia.

Desejo de coração que essa inovação seja ad melius e sirva de modo particular para fazer da nossa amada Congregação uma grande família que, ergue suas tendas também nas terras mais diversas, vive e trabalha unida num único cordial vínculo.

Estou certo de que os caros Inspetores e Diretores, cientes da importante função dos Atos na Congregação, cuidarão da sua leitura na maneira mais oportuna e eficaz para que todos os Irmãos tomem conhecimento deles.

 

2.  Confortadora união de corações

Vivo sob a confortadora impressão das numerosas cartas de muitos Irmãos, que me chegaram de todos os Continentes nas semanas passadas. A celebração do “Dia da Fi- delidade”, os primeiros retiros de um dia inteiro, as solenes e frutuosas celebrações pe- los 150 anos do nascimento do nosso Pai, a conclusão das Conferências Inspetoriais, que aconteceram em todos os Continentes sob a presidência dos Superiores encarregados, e, ultimamente, a chegada das primeiras cópias dos Atos do Capítulo Geral em língua italiana: eis os motivos das muitas cartas enviadas ao Reitor-Mor.

Inspetores, Diretores e muitos Irmão quiseram demonstrar-me os seus sentimentos de satisfação, os seus propósitos de filial e sincera fidelidade à Igreja que se renova e a Dom Bosco que falou através do Capítulo Geral.

O Senhor abençoe esses sentimentos e esses propósitos que são certamente com- partilhados por todos os membros da nossa família. Nota comum em todas essas cartas é o reconhecimento pela Congregação, Mãe particularmente sensível, que dá aos seus filhos o alimento e o conforto de que precisam neste nosso tempo.

É justamente esse o nosso anseio de Superiores: ajudar-vos a ser salesianos autênti- cos e completos segundo as exigências atuais.

Também os membros do Conselho Superior celebraram o “Dia da Fidelidade”. No dia 24 de janeiro passado reunimo-nos no Colle Don Bosco; passamos algumas horas na- quela modestíssima casa, meditando e rezando; renovamos a nossa promessa de fideli- dade ao querido Pai, que também queria interpretar a de todos os membros da nossa família. Concluiu-se com a Concelebração de todos os Superiores, com o venerado P. Ziggiotti, na cripta do Templo dedicado a Dom Bosco.

O Boletim Salesiano de março faz um amplo relato daquele nosso fervoroso “dia”.

 

3.  A nossa responsabilidade diante dos “Atos do Capítulo Geral”

Acenava acima sobre os Atos do Capítulo Geral. Creio que a esta hora as primeiras cópias tenham chegado a todos os lugares. Logo chegarão as respectivas traduções nos vários países.

Quem vê o volume com todo o material nele contido, tem naturalmente aquele sen- timento de admiração e reconhecimento que muitos Irmãos quiseram exprimir ao Rei- tor-Mor.

É realmente um “presente”, um rico e oportuno presente que Dom Bosco, com os

Atos do Capítulo Geral, quis oferecer aos seus filhos deste tempo em profunda evolução.

A Congregação, através do seu mais qualificado órgão, demonstrou uma providencial sensibilidade às exigências atuais, digna do nosso Pai, cujo apostolado por juízo unâ- nime, é marcado não só pelo “senso” dos tempos, mas até mesmo pela antevisão dos tempos.

Podemos dizer, então, tranquilamente, que estamos no caminho da autêntica tradi- ção salesiana quando, em vez de insistir em certas fórmulas ou praxes enfraquecidas pelo fatal consumo do tempo e pela evolução de situações sociológicas e psicológicas, buscam-se outras que, respondendo às alteradas exigências de homens e de coisas, tor- nem-se eficazes e positivas para a conquista de almas que é o motivo fundamental e a meta constante de todas as nossas atividades.

A Congregação (e, antes ainda, a Igreja) é uma videira centenária que, num determi- nado momento pode revelar alguns de seus ramos secos; evidentemente, o agricultor que quisesse conservar os ramos secos a qualquer custo comprometeria a frutificação

da videira; mas seria uma insanidade arrancar a videira expondo suas raízes ao sol pelo fato de nela encontrar alguns ramos secos.

Está sempre no equilíbrio o caminho adequado, a solução realmente positiva e cons- trutiva, equilíbrio constatado no nosso Capítulo Geral (como também no Concílio, no autêntico Concílio, aquele dos Decretos), que, longe de toda iconoclastia indiscriminada do passado, sabe ver com coragem o que é preciso mudar ou acrescentar para manter com vida e fecundo o tronco secular da Congregação.

Cada Salesiano, portanto (e aqui se alarga a visão do nosso trabalho) neste momento histórico definido por muitos como decisivo, com o senso de responsabilidade e equilí- brio inteligente que o deve distinguir, tanto diante da Igreja como da Congregação, evite os dois extremismos igualmente condenáveis e destrutivos: a atitude irracional de quem gostaria de inovar tudo a qualquer custo numa corrida febril para o que é novo, anu- lando todo o passado só por ser passado; e a atitude oposta de quem gostaria tenaz- mente de conservar a bagagem de certas coisas que, no banco de prova da realidade atual, não se sustentam, nem conseguem alcançar o fim pelo qual foram desejadas, e com fruto.

Compreende-se, pois, quanta responsabilidade cai sobre cada um de nós: não é exa- gero dizer que a atuação feliz ou a neutralização dos Atos do Capítulo Geral (como de resto se pode dizer dos Decretos Conciliares) depende – embora nas devidas proporções

– da atitude e da consequente ação de cada um de nós. É supérfluo acrescentar que essa responsabilidade cresce à medida que cresce a autoridade de cada Salesiano.

 

4.  Aprofundar os “Atos do Capítulo Geral”

O Conselho Superior, por sua vez, ciente de que é seu primeiro dever executar e fazer executar as deliberações do Capítulo Geral, pôs-se há tempo ao trabalho.

Com essa finalidade houve dezenas de reuniões do Conselho.

Os Conselheiros encarregados de grupos de Inspetorias já realizaram em todos os lugares as primeiras Conferências Inspetoriais; puderam entrar em contato com cada Inspetor e estudar juntos o modo de concretizar no plano prático as deliberações do Capítulo Geral; também começaram a sentir os vários problemas da periferia referindo- as ao Conselho Superior para um estudo mais profundo e, quando ocorrer, para as pro- vidências do caso.

Esses Superiores retomarão logo as suas viagens, sempre com a intensão de alimen- tar, segundo os encaminhamentos do Capítulo Geral, o intercâmbio recíproco entre o centro e a periferia, que já se revela muito vantajoso.

Gosto de pensar, porém (e muitos elementos me confortam nesse sentido), que vós, caríssimos irmãos e filhos, com o sentido salesiano de inteligência, discrição, critério, já iniciastes o vosso trabalho de colaboradores, tanto do Conselho como do Capítulo Geral; colaboradores convictos e, justamente por isso, eficientes, pacientes, mas decididos.

Eu disse pacientes, sim, porque seria ingênuo e frustrante pensar que tudo possa ser realizado no espaço de meses, de alguns anos.

É preciso começar logo, é verdade; é preciso trabalhar com ideias claras e projetos e método bem definidos; é preciso dar todos os dias um passo a mais na atuação das vá- rias deliberações; não se pode parar e muito menos deixar-se abater diante das dificul- dades previsíveis, ou encontrar nelas álibis para uma atitude passiva; mas devemos tam- bém dar por certo que é preciso tempo para chegar à atuação plena e completa especi- almente de determinadas decisões, e não se pode crer em revoluções milagrosas.

Ao mesmo tempo, convido-vos a valorizar os Atos do Capítulo Geral, que precisam ser bem conhecidos nas nossas comunidades, por cada um de nós, como certamente já procurastes fazer com os Decretos Conciliares.

Faça-se leitura comunitária dos Atos no local e no momento mais oportuno para os Irmãos. Será muito útil, diria necessário, que se façam conferências para ilustrar antes de tudo as ideias que animam todas as deliberações e, também, alguns documentos (p. ex.: As Estruturas – A Vida e formação religiosa – A formação juvenil). Recomento espe- cialmente, porém, a sua leitura pessoal, sem pressa, atenta, profunda. O volume dos Atos é entregue a cada Irmão, com notável despesa para a Congregação, justamente para que cada Salesiano possa fazer dele um verdadeiro alimento: os Atos são destina- dos a ficar nas vossas mãos, na vossa mesa de trabalho, diria, habitualmente; não devem ser materiais de arquivo.

Só com uma leitura feita desse modo será possível assimilarmos o espírito, as ideias que animam e que circulam como sangue vivo pelas páginas dos Atos. E são justamente as ideias que persuadem, as ideias que formam a mentalidade e as convicções, sem as quais não será possível a ação sistemática, constante e confiante, a única que conseguirá traduzir em realidade o projeto orgânico traçado pelo Capítulo Geral. Também o Concí- lio, na vastidão e variedade dos seus ensinamentos, expressou algumas diretrizes gerais que resumem todo o seu espírito renovador, e o nosso Capítulo se fez seu intérprete autêntico.

 

5.  Algumas ideias fundamentais

Aceno, como exemplo, a algumas das ideias que formam como que o tecido de co- nexão dos Atos do nosso Capítulo Geral, dispensando-me de fazer suas citações.

Convido-vos a refletir sobre essas “ideias”; são elas que, compreendidas e aceitas, darão vida renovada à nossa missão, e confiança aos Irmãos.

A pessoa do Salesiano na sua completude de homem, religioso, sacerdote e edu- cador, é o centro para o qual convergem as atenções e as preocupações da Congregação, como de resto é exigido pela Igreja do Concílio (veja-se o Decreto Perfectae Caritatis), para qualificá-lo em todos os seus aspectos, segundo as exigências de hoje, muito dife- rentes das de

Por isso, a seleção dos Salesianos deve ser atuada em todas as fases com seriedade, ciência e senso de responsabilidade, e, portanto, a sua formação deve ser organizada e conduzida em profundidade, para que a vocação possa desenvolver-se e crescer naquele clima de sadia e corajosa abertura, hoje absolutamente necessária, para reforçar e ama- durecer o autêntico Salesiano.

A autoridade é um serviço a prestar gratuitamente; não pode ser regulada pelo egoísmo, mas somente pela preocupação do bem de todos e dos indivíduos: é o prolon- gamento do Bom Pastor. Do mesmo modo, a autoridade não é sinônimo de imposição, nem requer uma obediência puramente passiva, que suprima as iniciativas, as respon- sabilidades e os recursos pessoais dos súditos.

Mesmo na vida religiosa há lugar para o diálogo; ele agora é necessário para tornar eficiente toda a nossa missão. Suscitar e aceitar as iniciativas dos súditos é uma quali- dade dos bons superiores; propor iniciativas e sugestões ao superior é o sinal de uma obediência racional humana; pôr em confronto pareceres e critérios é o melhor modo de colaborar eficazmente num empreendimento. A vida religiosa comunitária assim en- tendida oferece a disponibilidade e os meios para um ministério de conjunto a serviço do Reino de Deus.

Mais concretamente, o Superior é e deve ser, antes de tudo e sobretudo, o Pai dos Irmãos, de todos os Irmãos, dos fervorosos e dos menos fervorosos, dos idosos e dos jovens: cada um de nós Superiores recebe o mandato de servir em paterna caridade aos Irmãos, que deverão ser o vértice dos nossos interesses, das nossas preocupações; a superioridade assim entendida consegue transformar o conjunto dos Irmãos numa au- têntica família de filhos adultos, que se sentem amados e, por isso, compreendidos, va- lorizados e, quando necessário, corrigidos. Por isso, os filhos devem sentir-se empenha- dos em oferecer alegremente a sua cordial e generosa colaboração àquele que, antes de ser chefe, é Pai.

Antes de tudo, a Igreja e a Congregação pedem ao Superior, não a construção de obras, nem a busca de dinheiro, nem a organização de conglomerados técnicos e esco- lares, mas o cuidado amoroso dos Irmãos. O Superior ideal, para a Igreja e para a Con- gregação, é aquele que, vivendo na caridade os problemas e os interesses dos seus Ir- mãos, ajuda-os a resolvê-los para o bem das suas almas e a realização da sua vocação apostólica.

A Comunidade toda é corresponsável pela obra educativa da Escola, do Oratório, da Paróquia; por isso, deve ser sistematicamente cointeressada e corresponsabilizada nas iniciativas, nos projetos, nas orientações,

Quem recebe o mandato de governar uma Casa, uma Inspetoria, a Congregação, não pode fazê-lo, especialmente hoje, com o enorme e complexo acúmulo de problemas que se devem enfrentar continuamente, ignorando aqueles que, segundo o Código, a

Regra e o próprio bem senso, devem integrá-lo e iluminá-lo, para aliviar a pesada res- ponsabilidade de decisões que podem ter consequências até gravíssimas e irreparáveis, pastorais, humanas, econômicas, organizativas.

Essa colaboração é uma das grandes diretrizes que brotaram do Concílio, e se encon- tra continuamente no espírito e nas deliberações do Capítulo Geral. Eis, por exemplo, como se exprimem os Bispos da Alemanha dirigindo aos seus Sacerdotes: “Precisamos aprender muito, para o nosso apostolado na diocese: precisamos, muito mais do que fizemos até agora, escutar-nos uns aos outros, refletir juntos, trabalhar em bom acordo”.

 A ação educativa do Salesiano deve adequar-se às exigências das gerações de hoje,

para alcançar realmente as finalidades que se prefixou.

Por isso, à exemplo da Igreja do Concílio, devemos examinar sinceramente para ver em que medida cada obra nossa tem vitalidade educativa e cristãmente formativa, como exigido pelo nosso tempo; e o que devemos fazer, com método e coragem, para chegar realmente às finalidades indicadas por Dom Bosco e postuladas, como nunca, pela Igreja do nosso tempo.

Trata-se de um trabalho essencial e de grande responsabilidade para a vida e a mis- são futura da Congregação, que requer um estudo sistemático e paciente, corajoso e inteligente, com a colaboração de pessoas qualificadas, para perceber as realidades me- nos agradáveis ao nosso sentimento, para não nos submetermos a hábitos mentais, para vermos de maneira mais clara o melhor emprego das nossas energias a serviço da nossa vocação salesiana na Igreja de hoje.

Por isso, o Capítulo Geral deu para esse estudo o espaço de dois anos. Critérios e finalidades concretas desse estudo já são ilustrados nas Conferências Inspetoriais, para serem conhecidos e aplicados através dos órgãos aos quais são atribuídos em cada Ins- petoria.

Estas e outras ideias de fundo permeiam os Atos do nosso Capítulo Geral e afloram um pouco em cada página ao leitor atento; e são ideias que convidam a refletir e, con- sequentemente, agir.

Nesta ação, todos nós devemos sentir-nos pessoalmente empenhados. É verdade que serão as Conferências Inspetoriais e, depois, cada Inspetor, para muitas disposições capitulares, a dar instruções práticas sobre o modo de atuá-las; é preciso evitar, porém, qualquer iniciativa imprópria ou arbitrária. Depois, porém, todos nós devemos dar a nossa contribuição pessoal, generosa e capilar ao processo de adequação e diria de re- juvenescimento da nossa vocação pessoal e comunitária, que são a finalidade de todas as deliberações capitulares.

Servirá para essa finalidade que a pregação dos nossos Exercícios Espirituais tenha como base, juntamente com o decreto conciliar Perfectae caritatis sobre a renovação da vida religiosa e o decreto De institutione sacerdotali sobre a formação sacerdotal, o

nosso rico documento sobre “A nossa vida religiosa hoje”, “O apostolado juvenil” e a

“Formação dos jovens”.

Para os Exercícios dos Diretores será bom ter presentes a parte do documento sobre “As estruturas da Congregação”, que trata do Diretor, e o documento sobre a “Direção espiritual dos Irmãos”.

Este será um modo muito eficaz para que tantas normas sábias se torem atuantes.

 

6.  Sobre a Constituição Apostólica “Poenitemini”

Permiti-me ainda uma palavra.

Foi publicada nestes dias a Constituição Apostólica Poenitemini, um documento que se liga evidentemente ao Concílio e que nos diz respeito antes de tudo como batizados e ainda mais como religiosos e sacerdotes, como educadores, como pastores de almas.

Tenho a certeza de que o documento, com o espírito que o impregna, terá sido objeto de estudo e meditação em nossas comunidades.

Paulo VI, com a Constituição Apostólica Poenitemini quis apelar aos homens, e nós estamos entre eles, hoje fortemente tentados pelo hedonismo da vida moderna e ata- refados em construir uma sociedade opulenta, ao verdadeiro sentido da penitência, que é principalmente a mortificação interior, meio de elevação espiritual não só do indiví- duo, mas também da comunidade inteira.

Como se vê, o documento, com seus grandes apelos, refere-se a nós como indivíduos e como comunidade, como simples religiosos e como superiores responsáveis das mes- mas comunidades.

A penitência, de fato, não é fim em si mesma; tem caráter interior, religioso, sobre- natural.

Ao fazer penitência, todo batizado torna-se participante e responsável pela vitória de Cristo sobre o mundo, sobre o mal, sobre o pecado, coparticipando dos seus sofrimen- tos, como um membro se liga à Cabeça.

Com a penitência, o batizado assume o empenho de renovar-se, não só individual e interiormente, mas exterior e publicamente, pela própria salvação e pelas exigências do Reino, para que o rosto da Igreja não apareça deturpado em seus membros e não fique protelado o crescimento do Reino de Deus.

Devemos reconhecer, de fato, que muitas vezes também os nossos ambientes, talvez sem o percebermos, absorvem mentalidades e a consequente praxe de vida da assim chamada civilização moderna, que faz seu ideal concreto o bem-estar, o prazer, digamos a palavra, o hedonismo, trazendo aos muitos aspectos da nossa vida cotidiana a busca frenética pelo bem-estar, por tudo que é cômodo e supérfluo, da mesa ao espetáculo, das viagens às férias, e consequentemente chega a ter quase horror a tudo que tenha gosto de renúncia, de sacrifício, de austeridade.

Isso tudo, devemos reconhecê-lo, leva ao esvaziamento da vida religiosa, cria desi- quilíbrios e desigualdade na mesma Congregação, provoca reações nada edificantes nos leigos, hoje especialmente exigentes e sensíveis diante das incoerências e contradições desse tipo no Consagrado, e incide negativamente sobre toda a nossa vocação e a nossa missão.

Enquanto escrevo estas linhas, recebo uma carta de além-cortina. Leio-vos palavras que parecem muito oportunas. Depois de falar da vida difícil e distante de toda como- didade, quem escreve assim se exprime: “Para os Religiosos é uma hora de reflexão...; era muito necessária a renovação espiritual...; nas comunidades, as verdadeiras finali- dades ficam esquecidas”.

Vem espontânea à memória a palavra de advertência do Pai: “Quando começarem entre nós comodidades ou fartura, nossa Pia Sociedade terá terminado sua carreira” (Carta Testamento, 1884, MB XVII, 272).

Convido-vos a todos a aprofundar as grandes e fecundas ideias que animam a “Cons- tituição”, aplicando-as a nós mesmos, à nossa vida de consagrados, pastores, educado- res.

Quanta clareza nestas realidades! Reconhecê-las deve suscitar em cada um de nós sentimentos e propósitos que nos levem, sobretudo no período quaresmal, a uma au- têntica renovação pessoal, através de uma vontade de generosa renúncia e ativa cari- dade, expressões autênticas de verdadeira penitência.

O apelo do Santo Padre em favor de muitos irmãos que têm fome, é um belo convite para que também nós, na caridade feita de sacrifícios, nos preparemos dignamente para a Ressurreição.

Exorto-vos, por isso, a ter presente o meu convite relacionado com o apelo do Papa pela fome na Índia.

Apresento, desde já, a cada um de vós, especialmente aos irmãos impedidos e pro- vados, os votos de que a Páscoa da Ressurreição traga a alegria puríssima e a paz serena de Cristo Vencedor aos vossos corações e a todas as vossas comunidades.

Ficarei muito agradecido se quiserdes recordar-me nas vossas orações. Vosso afeiçoadíssimo em Cristo Jesus,

Luís Ricceri
Reitor-Mor



PROBLEMAS URGENTES E VITAIS PARA A NOSSA RENOVAÇÃO

 Luís Ricceri
Atos do Conselho Superior 246

  1. Obrigatórios e comovidos agradecimentos. – 2. À conclusão do 150º aniversário do nascimento de Dom Bosco. – 3. Casa Geral em Roma. – 4. Nova edição das Constituições e Regulamentos. – 5. Evitar desvios deploráveis. – 6. Frear as impaciências olhando para a realidade. – 7. Abertura corajosa e equi- líbrio sadio. – 8. O exame de consciência nas novas práticas de piedade. – 9. A renovação fruto da cola- boração de todos. – 10. Necessidade e urgência da qualificação do pessoal. – 11. Adequar-se às exigên- cias dos novos tempos. – 12. A qualificação ligada intimamente ao redimensionamento das obras. – 13. As Missões e os interesses gerais exigem a simplificação das obras. – 14. A vocação, problema vital. –
  2. Para ter vocações é preciso uma corajosa revisão do trabalho – 16. Cuidado das vocações no período de formação. – 17. Empenho de todos: renovar-se saindo da mediocridade.

Turim, 24 de setembro de 1966

Irmãos e Filhos caríssimos,

Este número dos “Atos do Conselho Superior” sai com certo atraso. Eis o motivo.

As traduções e a distribuição do número precedente caminham com certa lentidão, o que é explicável, dada a novidade da organização do trabalho. Queria, pois, evitar que este fascículo se sobrepusesse ao outro, cuja distribuição nas várias ainda não fora com- pletada.

Creio que este número terá um ‘iter’ mais rápido e agradeço desde agora os que co- laboraram para essa finalidade prestando um preciso serviço à Congregação. Todos nós, de fato, compreendemos a função que exercem, sobretudo neste momento, os “Atos do Conselho”; gostaria de acrescentar que, justamente por isso, os Superiores que são os seus responsáveis porão um diligente empenho para que os irmãos, todos os irmãos, venham ao seu conhecimento no modo mais tempestivo e oportuno.

 

1.  Obrigatórios e comovidos agradecimentos.

Deixai, agora, que, embora com atraso, renove destas páginas a expressão do meu mais vivo reconhecimento a todos que, por ocasião do meu onomástico, quiseram fazer- me chegar os cumprimentos e a certeza de orações; agradou-me de modo especial a lembrança que se quis fazer dos 150 anos do nosso Pai, o empenho renovado de fideli- dade a Ele e à dileta Congregação com a promessa de atuar cordialmente as delibera- ções do Capítulo Geral, para que a Congregação possa continuar com renovada vitali- dade a sua missão na Igreja.

Estes sentimentos e propósitos expressos por numerosíssimos Irmãos foram e são para mim de grande conforto e de vivo encorajamento na realização da missão, tudo mais que leve, confiada a mim pela Providência. O bom Deus vos retribua.

Também quero exprimir aqui o meu lamento àqueles aos quais, por motivos inde- pendentes da minha vontade, não tenha conseguido enviar uma resposta e o meu mais sentido agradecimento.

Sou vosso devedor de um agradecimento especial também por outra razão. Na qua- resma passada convidei-vos a acolher o dramático apelo de S.S. Paulo VI em favor dos irmãos vítimas da fome. Com tocante edificação pude constatar a generosa e pronta resposta ao meu convite nas várias partes do mundo salesiano, com iniciativas muitas vezes genais, sempre comovedoras.

Quero citar aqui o exemplo de Países com nível de vida muito pobre e que desejaram, com evidentes sacrifícios, fazer alguma coisa, também eles, pelos irmãos em necessi- dade extrema.

A todos, Irmãos e Cooperadores, Ex-alunos, alunos e oratorianos, e especialmente àqueles que, pobres também eles, quiseram fazer alguma coisa pelos irmãos não menos pobres, valha como o mais almejado agradecimento a palavra de Jesus: “Fizeste-o a Mim”.

 

2.  À conclusão dos 150 anos de Dom Bosco

Nestes meses, entretanto, ocorreram em ritmo acelerado e com programações pre- cisas, iniciativas e atividades de vários gêneros, todas relacionadas com a atuação siste- mática das deliberações do Capítulo Geral. Fiquei contente particularmente com a con- clusão dos 150 anos do nascimento de Dom Bosco. As crônicas salesianas reportaram o eco das solenes festividades realizadas no mundo todo com grande ressonância entre as autoridades eclesiásticas e civis, e entre o povo.

Fico feliz ao constatar que as obrigatórias celebrações externas foram uma ocasião para retornar às origens da história salesiana e encontrar toda a genuinidade e toda a força do espírito do nosso Pai. Desse contato floresceu em todos os lugares um propó- sito de renovada fidelidade à Congregação e uma vontade decidida de atuar a sua mis- são segundo as diretrizes e o impulso dado pela Igreja no Concílio Vaticano.

Ao concluir os 150 anos com esta constatação confortadora, peço a Dom Bosco que queira conservar em todos a boa vontade para este grande empenho e tire dele resul- tados que sejam um fundamento válido para os tempos novos que esperam a Congre- gação.

 

3.  Casa Geral em Roma

Passo agora a informar sobre alguns fatos de interesse geral e imediato para a nossa família. Primeiramente, comunico-vos que, em obediência ao voto do nosso Capítulo

Geral, adquirimos em Roma uma ampla área em que deverá surgir a nova Casa Geral. Convido-vos a rezar para que a Providência venha ao nosso encontro, tanto para con- cluir o pagamento do terreno como para enfrentar no devido tempo as despesas da construção.

 

4.  Nova edição das Constituições e Regulamentos

Em breve, os Rev.mos Srs. Inspetores receberão, no texto oficial em língua italiana, as cópias das Constituições e Regulamentos, revistas segundo as deliberações capitulares. Convido aqueles que têm a responsabilidade, a providenciarem com solicitude as tradu- ções. É necessário, pois, que cada comunidade faça sem demora a leitura completa do novo texto, no momento e no lugar mais conveniente. Cada Diretor sinta esse dever diante dos Irmãos e da Congregação. É supérfluo dizer que, como para os Atos do Capí- tulo Geral, também para as Constituições e para os Regulamentos será a leitura indivi- dual que permitirá a cada um o profundo conhecimento e valorização das modificações feitas.

É bom recordar aqui que a revisão, em todos os seus particulares, foi fruto de longo estudo e de grandes debates, primeiramente nas várias comissões e, depois, na Assem- bleia, formada por 150 Padres Capitulares provenientes de todas as partes do mundo salesiano e das situações mais diversas da nossa vida.

A revisão inspira-se no duplo critério de fundo, indicado pelo Decreto Perfectae Cari- tatis: “Sejam revistas convenientemente as Constituições, os Regulamentos e semelhan- tes, suprimindo o que não for mais atual... interpretem-se e observem-se o espírito e as finalidades próprias do Fundador como também as sadias tradições, pois tudo isso cons- titui o patrimônio de cada Instituto”.

O nosso Capítulo Geral, tendo presente a evolução dos tempos e a expansão da Con- gregação já presente em todos os Continentes, eliminou o que pareceu superado ou adequado apenas a situações locais formulando as novas normas de modo que possam e devam ser adequadas ao nosso tempo e válidas em todos os Países.

No entanto, o Capítulo Geral teve bem presente que nas Constituições e nos Regula- mentos se conserva o patrimônio espiritual da Congregação Salesiana e, por isso, quis sempre interpretar, na revisão, o espírito de Dom Bosco, as finalidades da nossa obra e as nossas sadias tradições.

 

5.  Evitar desvios deploráveis

Surge lógico e óbvio, para cada um de nós, o dever da observância, não exterior e diria quase imediata, mas cordial, generosa e convicta, de tudo o que é prescrito nesse pequeno volume que contém a norma mais preciosa e autêntica, que nos faz Salesianos. Infelizmente, a propósito da vida religiosa, seguindo certas correntes ideológicas que circulam no mundo e também não poucas tendências práticas, não é difícil perceber

aqui e ali um espírito de impaciência incontrolada, quase de rebelião, que não só que- reria libertar-se do que não é mais atual e não corresponde mais às finalidades da vida religiosa hoje, mas tende também, mais ou menos explicitamente, tirar autoridade e prestígio à regra, à disciplina, à tradição. Assistimos a algumas inescrupulosas tomadas de posição que pareceriam levar à subversão de tudo o que a vida religiosa sustenta e defende, provocando fatalmente a sua ruína.

O Concílio, o verdadeiro Concílio, não disse nada disso tudo e o S. Padre repetida- mente deplorou e condenou esses desvios.

De resto, não é difícil perceber que essas atitudes extremistas e perigosas, como afir- mou o S. Padre, provêm muitas vezes de certo sentido de excessiva suficiência, de almas superficiais e, às vezes, é triste dizê-lo, de consciências religiosamente deformadas.

Seria preciso fazer um juízo diferente dos religiosos que gostariam de ver o seu Insti- tuto livre de certas superestruturas formadas com o andar do tempo que freiam a sua ação apostólica; que pedem para serem eliminadas as ineficiências que tornam o Insti- tuto menos apto a responder hoje à própria vocação; que, no espírito do Fundador, gos- tariam da adequações de instrumentos, métodos, estilo e ainda mais de mentalidade, sem os quais o Instituto tornaria a sua missão na Igreja sempre mais estéril.0

Eu espero e desejo que na nossa Congregação não haja almas que adiram às tendên- cias de que falava acima, vítimas de perspectivas erradas, que as tornam incapazes de entender o verdadeiro sentido da vida religiosa.

 

6.  Frear as impaciências olhando a realidade

Compreendo, por outro lado, aqueles Irmãos, jovens ou não, que, amantes do verda- deiro bem da Congregação, querem-na viva e disponível para responder às urgentes exigências do nosso tempo e sofrem com certa impaciência porque não veem ser mais atuadas as providências que parecem aos seus olhos urgentes e construtivas.

A estes ótimos Irmãos gostaria de dizer: Moderai a vossa impaciência tomando cons- ciência da realidade. Os problemas que devemos resolver são enormes pelo número, complexidade e dimensões, e complicados por serem frequentemente interdependen- tes de problemas que não são somente nossos. Muitas coisas, porém, daquelas que também vós talvez pensais, deverão ser realizadas pela renovação que todos nós ansia- mos. E creio poder dizer que trabalhamos intensamente para enfrentar essas situações e resolvê-las com coragem, com método, com gradualidade, sem hesitar, mas sem tam- bém precipitar e especialmente caminhando com sentido de equilíbrio e responsabili- dade, resistindo a todo extremismo e a toda improvisação.

O nosso Capítulo Geral seguiu esta linha de inciativa e de sabedoria. Os Superiores do Conselho, naquilo que é da sua competência, não terão medo de dar todos os passos neste caminho que, segundo as prescrições dos decretos conciliares e capitulares e no seu espírito, serão realmente úteis e construtivos para a vitalidade religiosa e apostólica e a renovação da Congregação.

 

7.  Abertura corajosa e equilíbrio sadio

Nós queremos a Congregação não imobilizada em estruturas e barreiras pesadas, que mortifiquem ou retardem o seu progresso, o verdadeiro progresso, que é espiritual e religioso antes que apostólico; mas não permitiremos e jamais aprovaremos qualquer coisa que venha ofuscar substancialmente a vida religiosa, a nossa vocação específica e o espírito que a Igreja canonizou em Dom Bosco e ainda hoje exige da sua Congregação.

Com o Papa Paulo VI, queremos afirmar a nossa confiança na novidade, até mesmo animo juvenil e audácia, para apreciar abertamente o nosso tempo; mas também que- remos “saber conservar o que é vivo, verdadeiro e eterno na tradição”. Somos muito mais confortados nesta disposição de coragem e de prudência enquanto nos parece ser assim inspirada toda a ação de Dom Bosco, que se pôs com intenção ousada e avançada no caminho da renovação e foi por isso um autêntico precursor do Concílio, mas soube manter-se nos justos limites da medida e do equilíbrio, num momento de graves desor- dens ideológicas e práticas. Essa atitude é uma herança que Dom Bosco nos deixou e deve ser uma característica nossa, da nossa ação individual e coletiva.

Trata-se de uma das maiores lições que Dom Bosco nos deixou para definir o nosso comportamento perante a história.

 

8.  O exame de consciência nas novas práticas de piedade

Foi publicado também o opúsculo das modificações feitas pelo Capítulo Geral às nos- sas práticas de piedade. Um simples exame daquelas breves páginas fala logo da plena adequação da Congregação ao espírito – especialmente litúrgico – do Concílio.

Quero chamar a vossa atenção de modo particular para o renovado exame de cons- ciência, que se apresenta com dois esquemas. Tanto o primeiro, teológico e sistemático, que apela para os princípios antes de propor as metas da nossa vocação, como o se- gundo, concreto e simples, são evidentemente animados por um novo espírito.

O Salesiano – Sacerdote, Clérigo, Coadjutor – que medita sobre essas páginas, per- cebe em cada ponto, pelo próprio tom transversal de todo o exame, uma nova sensibi- lidade que reflete fielmente o clima espiritual e apostólico que a Congregação quer que os Sócios revivam hoje.

Cito, por exemplo, algumas entre as muitas perguntas. Sobre a vida de fé: “Sou assí- duo na leitura reverente e religiosa da Sagrada Escritura? Coloco a Eucaristia e as cele- brações do ano litúrgico no centro da minha vida espiritual?”.

Sobre a caridade, propõe-se, entre outras, esta pergunta: “Conheço e estudo os mé- todos e as técnicas que tornam eficaz a nossa ação para a salvação dos irmãos? Prego com um estilo superado? Repito, sem preparação e convicção, coisas já ditas mil ve- zes?”.

E sobre a pobreza, é-nos perguntado: “Estou disposto a facilitar a ação de revisão contínua da nossa pobreza coletiva diante dos homens que nos julgam?”.

Eis uma pergunta no tema da obediência: “Colaboro com os Superiores na descoberta da vontade de Deus, ponto de encontro das nossas vontades?”.

Significativa, também como exemplo, uma série de perguntas insistentes sobre o tema da vida salesiana: “Sou apegado ao verdadeiro espírito salesiano? Gosto das novi- dades pelas novidades? Acomodo-me, quem sabe, na inércia operativa com o pretexto da fidelidade a Dom Bosco? Sou, talvez, daqueles que, em nome da tradição salesiana, são hesitantes na obediência à Igreja?”.

E, para concluir os exemplos, ainda algumas perguntas de significado eloquente: “Possuo verdadeiro espírito de colaboração? Sei unir-me aos meus irmãos de modo a sentir-me membro da ação comunitária?... – Se sou constituído em autoridade, levo em conta os pareceres dos outros, também dos inferiores? – Tenho a preocupação de criar um clima de diálogo aberto e sincero?”.

É bom repeti-lo, o novo exame de consciência, que se refere a todos os Salesianos, espelha com evidência o espírito e as preocupações da Congregação para a potenciali- zação e orientação dos Salesianos deste nosso tempo; numa palavra, o exame de cons- ciência recolhe e propõe, como numa síntese, os elementos e aspectos da renovação que é essencial e condição imprescindível do progresso ao qual Paulo VI nos convidou expressamente no discurso dirigido aos membros do Capítulo Geral, e do qual os Supe- riores se sentem responsáveis.

 

9.  A renovação fruto da colaboração de todos

Disse “os Superiores”. Devo esclarecer o meu pensamento. A renovação para o pro- gresso é confiada primeiramente ao Conselho Superior, é verdade, mas é condicionada depois pela ação solidária e executiva dos demais órgãos, de todos os que têm alguma autoridade e responsabilidade, antes que de todos os Irmãos.

As diretrizes, as normas, as orientações que partem do centro, não só devem ser le- vadas ao conhecimento de todos os Irmãos, mas da parte de quem tem o mandato disso, devem também ser estudadas, para compreender o seu espírito e preocupar-se com a sua atuação, superando as inevitáveis dificuldades.

Algumas explicações servirão para explicar melhor o meu pensamento. Antes de tudo, haja a preocupação de os Atos do Conselho serem sempre lidos com solicitude a toda a comunidade no modo mais oportuno. Seria uma omissão grave descuidar da lei- tura comunitária desses documentos. Os Irmãos ficariam privados de um elemento es- sencial de vida salesiana e de um instrumento insubstituível da renovação em ato.

Depois, quase um ano após a promulgação dos Atos do Capítulo Geral XIX, podem-se fazer algumas perguntas: – Os retiros trimestrais têm sido feitos em todos os lugares? – O exercício mensal da Boa-Morte é praticado segundo as normas taxativas dadas pelo Capítulo Geral? – Os Conselhos locais reúnem-se regularmente, e não só para tratar de

horários e festas, mas de problemas vitais – religiosos e pastorais – segundo as normas precisas do Capítulo Geral?

Se alguém objetasse ainda que não é possível fazer essas coisas, os Diretores ou os Irmãos não têm tempo, empenhados como estão em tantas atividades, seria preciso pensar que não se entendeu o valor das deliberações capitulares ou nos vemos de fato em situações tais de trabalho que é preciso uma profunda revisão.

Obras que não permitem aos Salesianos alimentar o próprio espírito, obras organiza- das de modo que os Salesianos vivam em incessante movimentação, que os enfraquece fisicamente e – coisa ainda mais grave – os esvazia espiritualmente; obras, nas quais o Diretor não pode atender à vida religiosa e espiritual dos Irmãos, deixam-nos perplexos quanto à sua organização e nos perguntamos como podem ser apostolicamente fecun- das. Conheço muito bem a delicadeza de algumas situações das quais não é fácil sair.

Desejo, contudo, fazer aqui um apelo a todos os que na Congregação têm responsa- bilidade de governo – em qualquer nível que seja –, para se sentirem pessoalmente em- penhados em superar qualquer eventual dificuldade na atuação das deliberações capi- tulares, especialmente das que tocam os interesses vitais dos Salesianos; quero dizer dos espirituais.

Conforta-me saber que em muitas Inspetorias não se perdeu realmente tempo e se trabalhou, também depois das orientações práticas recebidas das Conferências Inspe- toriais, tanto nos Conselhos Inspetoriais como nos locais e de ação, com a satisfação de ver coroado o próprio trabalho pelos primeiros frutos consoladores.

 

10.  Necessidade e urgência da qualificação do pessoal

Por sua vez, o Conselho Superior, continuando sistematicamente o próprio trabalho, promoveu várias iniciativas que interessaram diversos setores da nossa vida, como, por exemplo, os cursos de atualização elencados em outra parte dos Atos. Cursos desse tipo serão aperfeiçoados, repetidos e alargados segundo o que a experiência sugerir. Mas é claro que será preciso fazer mais, para dar a todas as atividades dos Salesianos a quali- ficação que não é um luxo, mas uma necessidade sempre mais evidente, caso se queira responder às exigências irrenunciáveis da nossa missão.

Sobre isso, desejo fazer referência a alguns setores da nossa vida.

Atenção especial, em vista da qualificação necessária, deve receber a preparação do pessoal das Casas de formação, para que no mais breve tempo possível sejam capazes de ir ao encontro das necessidades mais urgentes. Para essas Casas, devemos poder dispor de um número suficiente de Irmãos, a fim de ir ao encontro das tarefas sempre mais amplas e especializadas que o apostolado moderno solicita de nós.

Penso nos pedidos insistentes e quase implorantes que recebo de toda a Congrega- ção para os Estudantados Filosóficos e Teológicos e para a Pastoral; nós, do centro, não podemos provê-los, como se fez muitas vezes no passado. É necessário que cada Inspe- toria tenha o seu quadro preciso para a preparação de todos os Irmãos que terão ofícios

nas Casas de formação, tendo presentes os interesses culturais, religiosos e pastorais aos quais é preciso ir de encontro nessas Casas. Só com esse descortino se terão, no momento oportuno, as pessoas preparadas para o ensino específico e se evitarão as consequências das improvisações e das soluções irrefletidas.

 

11.  Adequar-se às exigências dos novos tempos

Penso também no Magistério para os nossos caríssimos Coadjutores. O Capítulo Ge- ral deu normas precisas para a sua preparação religiosa e técnica, adequada aos serviços aos quais serão chamados, tanto nas escolas profissionais como em outros importantes ofícios. O Decreto Perfectae Caritatis diz textualmente: “Os mesmos religiosos não clé- rigos não sejam destinados às obras de apostolado imediatamente após o noviciado”.

Mas, quem os prepara? Também neste campo, que em certo sentido podemos con- siderar novo, é preciso pessoal dotado de cultura, e de títulos, capaz de entender as exigências da vocação dos Coadjutores na Congregação depois do Concílio e do Capítulo Geral.

E os promotores de vocações? É certamente necessário zelo e boa vontade na busca de jovens aspirantes; mas que tato e, por outro lado, que habilidade no uso dos instru- mentos da moderna ciência pedagógica e sociológica para chegar a uma escolha opor- tuna!

Vários decretos conciliares exigem – e com razão – que nas dioceses, como nas pro- víncias, haja indivíduos preparados em Institutos ad hoc para a liturgia, para os instru- mentos de Comunicação Social, para a Música e o Canto sacro, etc.

Deixai-me dizer, embora apenas uma palavra, sobre a Imprensa, sobre as Editoras, que fazem parte da nossa missão específica, de importância enorme hoje.

Dirigir uma revista (e o Boletim Salesiano, por exemplo, tem todas as exigências de uma revista para ser lida eficazmente), organizar e dirigir uma Editora, supõe uma pre- paração técnica, além de cultural, sem a qual toda boa vontade se revela inútil e estéril.

Sabe-se o quanto é difícil fazer hoje uma Catequese eficaz aos jovens e adultos: não se pode enfrentar essa missão sem ter uma preparação adequada.

E para a mesma pregação, hoje que se está habituado à perfeição de quem fala na rádio, na TV?

Desde há algum tempo estão ao lado das escolas “os orientadores psicológicos”. Acontece, cá e acolá, que nossos Institutos precisam pôr seus alunos nas mãos de ori- entadores leigos, homens e mulheres, muitas vezes também não religiosos, materialis- tas. Não é preciso grande esforço para persuadir-nos de que um trabalho tão delicado, que penetra no íntimo dos nossos jovens, não possamos, sem graves consequência, deixá-lo em mãos estranhas e muitas vezes com ideias bem diferentes das nossas.

O Decreto conciliar sobre as Missões diz entre outras coisas que os Missionários “de- vem ser extremamente preparados e formados, fazer estudos de missiologia... estar ci- entes da situação missionária atual e dos métodos que se acreditam mais eficazes em nossos dias. Alguns deles devem receber, ainda, uma mais cuidadosa preparação em Institutos de Missiologia ou em outras faculdades ou universidades”.

As mesmas incumbências tradicionais de Diretor, Mestre dos Noviços, Catequista, Conselheiro, Prefeito, Pároco não podem ser exercidas hoje com a necessária compe- tência e eficácia sem uma preparação especial. Isso é constatado um pouco por todos, primeiramente pelos próprios interessados. Muitos dariam à sua atividade de governo e ação pastoral e educativa bem outra e mais fecunda organização, se a ela chegassem com uma preparação séria e específica. Por isso, diz com razão, o Decreto Perfectae Caritatis: “É dever dos Superiores proverem à escolha e à sólida preparação dos mestres de espírito, dos Diretores, dos Professores”. O Decreto sobre a formação sacerdotal, também requer dos que deverão ocupar-se em atividades pastorais “uma diligente ins- trução... especialmente na Catequese e na pregação, no culto litúrgico e na administra- ção dos Sacramentos, nas obras de caridade, no dever de ir ao encontro dos errantes e dos incrédulos e nos restantes ofícios pastorais”.

 

12.  A qualificação ligada intimamente ao redimensionamento das obras

Alguém diante desse quadro, traçado apenas como exemplo, poderia dizer: mas há realmente necessidade dessas qualificações e dessas especializações? Antigamente, ia- se avante como se podia e se fez muito bem. A resposta é muito fácil.

Nós reconhecemos com admiração e com gratidão a grande massa de trabalho reali- zado pelos Irmãos no passado; eles se prodigalizaram heroicamente, com dedicação ge- nerosíssima. Com o seu sacrifício e com o entusiasmo do seu serviço, realizaram um eficacíssimo apostolado e levaram a Congregação a uma grandeza que surpreendeu o mundo.

É preciso observar, contudo, que eles, impelidos pelo gênio antecipador de Dom Bosco, viram-se, em seu tempo, em posição privilegiada e de vanguarda no apostolado; entretanto, antigamente, as exigências em todos os setores da vida eram muito mais modestas e simples; hoje, as coisas mudaram. Antigamente, numa paróquia pedia-se um “pregador”, hoje pede-se um sacerdote que promova uma semana de conferências sobre os problemas juvenis, um curso de liturgia para sócios da Ação Católica, uma mesa redonda sobre os problemas da família, do cinema, dos instrumentos de Comunicação Social, etc.

Nossas escolas superiores até pouco tempo atrás eram poucas; hoje aumentaram notavelmente; as escolas de “artes e ofícios” tornaram-se hoje escolas profissionais, que dão notável lugar à cultura geral e científica; sem falar que muitos Institutos técnicos

superiores foram abertos recentemente. Até há pouco tempo eram bem poucos na Con- gregação, hoje são centenas; e os problemas de cultura, de pastoral, de relações sociais, de organização postas por elas são bem conhecidas pelos Párocos e Inspetores.

Perguntemos aos Diretores dos Oratórios sobre as enormes dificuldades encontradas por eles para formar os jovens que apresentam problemas não mais fáceis dos das nos- sas escolas, que precisam de pessoas bem preparadas para entendê-los e, portanto, se- gurá-los e interessá-los com fórmulas aderentes à mentalidade atual.

Por isso tudo, é sempre necessário ter pessoas equipadas cultural, psicológica, pas- toralmente, não menos do que nos nossos Institutos Superiores. Concluindo, precisa- mos ter bem presente o convite recorrente em vários Documentos Conciliares: “é pre- ciso perscrutar os sinais dos tempos”; e os nossos são tempos da técnica, da cultura ao alcance do povo, das especializações num mundo que é sempre mais solicitado por aquilo que se chama aceleração da história.

Prevejo outra objeção e vos respondo. Como se poderá fazer tudo isso para a quali- ficação dos Salesianos? Certo, nem tudo se pode fazer num dia e nem mesmo num ano.

Aquilo do que todos precisamos estar convencidos é esta verdade: a qualificação do Salesiano é condição essencial, para que a Congregação faça a sua renovação.

Quem quiser a Congregação renovada e disponível para as exigências dos nossos tempos deverá trabalhar ativamente para essa qualificação. Quem a obstaculizar, quem a subestimar, agirá, mesmo sem pensar nisso, para que a Congregação renuncie ao pro- gresso e à atualização que são indispensáveis para a sua conquista das almas. Dito isso, esclareço e completo o meu pensamento.

A qualificação do Salesiano está intimamente relacionada com o redimensionamento que foi desejado pelo Capítulo Geral XIX. Ela é, por assim dizer, a operação-chave para permitir ao Salesiano, com a qualificação, um trabalho organizado, sereno, proporcio- nado às suas forças; um trabalho que não seja uma incessante e febril agitação exterior, mas uma atividade interior de alma consagrada que encontra em Deus a fecundidade do seu apostolado.

Com a diminuição das vocações que já se percebe em várias Inspetorias, com todos os vazios que constatamos em não poucos setores e com a necessidade urgente de dar aos Irmãos uma formação adequada às sempre maiores exigências hodiernas, ninguém que sinta realmente os interesses da Congregação – é supérfluo dizê-lo – quererá iniciar novas obras e aumentar as existentes. Será, porém, uma ação verdadeiramente salutar e meritória reduzir, simplificar, unificar certas obras.

É certo que não se ignora a delicadeza e a dificuldade dessa operação; e, por isso, há e haverá ainda critérios claros e precisos, também através das Conferências Inspetoriais; e convida-se a não economizar nenhuma consulta prudente e sábia da parte dos que têm a responsabilidade dela. Depois, porém, por motivos meramente sentimentais, por apego a uma determinada obra ou atividade, por visões pessoais ou pressões externas,

não haja quem queira defender o “status quo” a qualquer custo, mesmo contra eviden- tes razões objetivas. Assim agindo não se concretizariam certamente os interesses da Congregação.

Deste estudo, porém, que deverá ser concluído nas Inspetorias até 1967, para ser depois apresentado ao Conselho Superior, surgirá entre outros um primeiro fruto preci- oso: a possibilidade, ao menos gradual, que certo número de Irmãos, especialmente jo- vens, liberados de muitas e pesadas ocupações, atendam aos estudos e aos cursos que lhes darão uma qualificação em algum dos muitos setores do nosso apostolado.

Isso tudo, gostaria de deixar bem claro, não deve levar os Salesianos a uma vida cô- moda e de menos trabalho ou à busca de satisfações pessoais num diletantismo sem finalidade, mas deverá encaminhar suas energias e suas atividades de modo que eles se provejam daqueles autênticos instrumentos de trabalho que permitirão depois um ren- dimento religioso e apostólico mais rico.

 

13.  As Missões e os interesses gerais exigem a simplificação das obras

Outo setor que poderá ser beneficiado pela revisão organizada e inteligente de obras e atividades nossas, é o das nossas Missões.

Não poucas delas, que por decênios praticaram uma atividade preciosa e apreciadís- sima, sofrem hoje uma gravíssima crise de pessoal.

Infelizmente, nestes anos, não só não se pôde sempre aumentar o número dos Mis- sionários, mas nem sequer se conseguiu preencher os vazios, às vezes muito graves, que foram criados aos poucos. Muitos heroicos Missionários já caíram no campo; outros, anciãos ou doentes, foram obrigados a uma atividade muito reduzida, embora admirá- vel pela resistência e o sacrifício.

Ao mesmo tempo cresceu a população a ser assistida. A propaganda de outras cren- ças religiosas, rica de homens preparados e de meios de todos os gêneros, tornou-se mais ativa, mais organizada. Leio com vivíssima aflição os apelos acalorados dos Chefes de Missão, de nossos Bispos, de Inspetores. Escuto, com a mesma dor que Dom Bosco teria provado, os convites insistentes do Papa para a América Latina, a primeira terra missionária salesiana, onde não podemos contentar-nos em enviar modestas ajudas anuais, a maioria das vezes jovens clérigos e raros coadjutores, sempre úteis, mas cer- tamente não determinantes, diante de situações graves e necessidades urgentes.

Pois bem, a simplificação de obras existentes e a renúncia a criar outras novas, deverá permitir-nos uma disponibilidade mais substanciosa de pessoal para ir ao encontro de obras que não pedem para serem aumentadas ou expandidas, mas para continuarem a existir, mantendo as posições conquistadas pelos sacrifícios heroicos de tantos Salesia- nos e honrando os empenhos assumidos pela Congregação perante a Igreja.

Estão ainda relacionados com o redimensionamento os interesses gerais da Congre- gação que, antes ou depois, diretamente ou não, têm os seus reflexos positivos em cada Inspetoria. O PAS, por exemplo, é um organismo destinado a acolher centenas de Irmãos

que, retornando às respectivas Inspetorias, irão trabalhar nas Casas de formação e em muitas outras obras, levando a elas o benefício de uma preparação sacerdotal e salesi- ana séria e superior.

É natural que o pessoal do PAS, discente ou docente, deve ser dado pelas Inspetorias.

Aquilo que todos admitem em teoria deve ser traduzido por todos na prática.

Portanto, enquanto desejo dizer aqui uma palavra de acalorado agradecimento aos Inspetores e aos Irmãos que, com sentido de abertura ao bem da Congregação, colabo- ram com os Superiores quando estes pedem elementos para os quadros do PAS, convido a todos a terem sempre essa mesma atitude, esse mesmo sentido vivo dos interesses da Congregação, que vão além dos limites de uma obra e de uma Inspetoria para trans- formar-se em bem de todos.

O mesmo discurso vale para os Irmãos que devem assumir encargos de caráter geral para a Congregação ou para as Inspetorias. Compreendo muito bem que privar de forças vivas uma determinada obra é um sacrifício, mas devemos procurar ter sempre ampli- dão de horizonte e entender a verdadeira hierarquia dos interesses da Congregação.

Penso, por exemplo, nos Delegados Inspetorias da Pastoral Juvenil e dos Apostolados sociais, nos Promotores de vocações; a sua inexistência determinaria para toda a Inspe- toria uma forma de paralisia, um rendimento muito reduzido em atividades que são da máxima importância. Esse pessoal, é bom repeti-lo, não é nada desperdiçado, mas res- ponde às exigências primordiais de animação e de alargamento do nosso apostolado.

Com o mesmo critério é preciso julgar as passagens de Inspetoria a Inspetoria que podem ser solicitadas, em alguns casos, para a distribuição equilibrada de forças.

As Inspetorias não podem viver como ilhas ou compartimentos estanques, mas como vasos intercomunicantes; como tais as veem os Superiores e assim todos nós devemos avaliá-las, superando as considerações de vantagem particular e imediata. De resto, a Igreja do Concílio dá-nos também nisso um exemplo eficaz: pensemos no novo clima de colaboração e intercâmbio de ajudas que se vai criando entre Dioceses, Conferências Episcopais e Federações religiosas. Entremos, pois, não só na teoria, mas concreta- mente, nesta visão ecumênica de relações, a começar do interior da nossa grande famí- lia: será uma grande vantagem para a Congregação.

 

14.  A vocação, problema vital

É óbvio, porém, que o redimensionamento em todas as suas formas e aplicações será apenas uma parte, embora necessária, das providências que a Congregação deve adotar para realizar a renovação e o progresso desejados por todos. Precisamos, também, em- penhar-nos a fundo, com clareza de ideias, com programas concretos e especialmente com amor ativo à Congregação e à Igreja, para o aumento das nossas vocações.

É supérfluo dizer que se trata de uma questão que está na raiz de qualquer outro problema. Precisamos reconhecer com franqueza que, enquanto em alguns Países, como por exemplo nos Estados Unidos, no México, na Espanha, na Jugoslávia, na Índia,

nas Filipinas, no Vietnã! onde as vocações surgem em número confortador, em muitos outros Países a situação é menos satisfatória. Diante dessa realidade, precisamos estu- dar em todas as Inspetorias o quanto depende de situações objetivas e o quanto diver- samente de carências e erros nossos justamente numa atividade que é vital para a Igreja e a Congregação.

Os vários cursos vocacionais têm demonstrado como muitas vezes, por falta de mé- todo e de critérios comprovados, ao número relevante dos chamados aspirantes, que trazem também graves encargos financeiros, corresponde uma bem-modesta quota de perseverança. Há, pois, que se pôr com serenidade uma pergunta de importância fun- damental: quantas e quais vocações provêm dos nossos Institutos, dos Oratórios, das Escolas? E se esta casa ou aquelas obras, com milhares de alunos, não dão vocações, quais as causas? Constata-se, através de pesquisas sérias, que em muitas escolas, mesmo não religiosas, de Países de vida cristã não certamente fervorosa, encontram-se jovens que demonstram vocação eclesiástica ou religiosa. Pode-se pensar que em mui- tas das nossas obras, cheias de jovens, não haja indivíduos com o germe da vocação? E se esses germes não se desenvolvem nesses nossos ambientes, quais os seus porquês? Gostaria de convidar a todos para procurarem dar uma resposta a esses questionamen- tos.

 

15.  Para ter vocações é preciso uma corajosa revisão do trabalho educativo

É certo que, se as nossas obras formam uma verdadeira família, vivendo juntos na caridade, rezando juntos e trabalhando unida, não podem deixar de ter o prêmio de boas vocações.

Sobre isso, renovo a válida recomendação do Capítulo Geral que fixou os elementos essenciais para que as nossas comunidades se transformem num viveiro de vocações. “Faça-se uma revisão leal, também em nível inspetorial, de todo o trabalho educativo realizado em nossas várias obras e da sua capacidade de programar aquela educação cristã que orienta os jovens para uma consciente opção vocacional. Isso se dê num am- biente adequado, de sólida piedade litúrgica, de formação humana, cultural, espiritual e apostólica, adequada à idade e às características individuais, num espírito habitual de sacrifício e em clima de família. O trabalho de busca, de escolha e de formação funda- menta suas raízes na oração, no zelo e nos sacrifícios dos educadores, dos apóstolos, das almas consagradas a Deus e no exemplo individual e comunitário dos Salesianos” (ACG XIX, p. 49).

Ainda um pensamento. Um Inspetor escrevia-me há algum tempo: “Tivemos grandes perdas de clérigos e coadjutores neste ano e estamos preocupados com isso. Propu- semo-nos a estudar o fato seriamente para buscar as suas causas e encontrar os remé- dios para elas”.

Eis outro aspecto do problema das vocações. As perdas das vocações já adiantadas no currículo salesiano devem levar-nos a estudar a fundo as suas causas. Que trabalho

precioso este para um Conselho Inspetorial e para um Conselho local, auxiliados por especialistas!

 

16.  Cuidado das vocações no período de formação

Sobre isso, podem-se apresentar vários quesitos, que pretendem buscar as causas remotas e próximas das dolorosas perdas. Pode-se perguntar se houve e com qual pre- paração conveniente a ação do Promotor de vocações. Pode-se indagar sobre a serie- dade com que foi feita a busca e a primeira seleção dos candidatos ao Aspirantado.

Às vezes, com efeito, acontece que, somente depois de anos de presença no aspiran- tado ou também mais além, se percebe que o candidato não pode continuar por irregu- laridades canônicas, por taras familiares, por outros motivos graves. Esses fatos levam a considerações úteis. Assim também, é possível avaliar como se dá a seleção gradual du- rante os anos do aspirantado e do noviciado; e em que medida o clima das casas de formação, condicionado naturalmente pelas pessoas, seja aquele exigido pelos recentes Documentos do Concílio e do Capítulo Geral.

Depois, durante o tirocínio: como são observadas as normas determinantes que one- ram a consciência dos Superiores sobre a escolha das Casas e das ocupações para os clérigos e coadjutores tirocinantes e sobre o cuidado particular que deles se deve ter?

É uma grave responsabilidade e ao mesmo tempo uma verdadeira tragédia quando, por inobservância das normas que regulam o tirocínio, perdem-se elementos que de- mandaram anos de esforços, pesadas despesas e duros sacrifícios.

O problema das vocações, fundamental e vital para a Congregação, deve ser, por- tanto, seriamente estudado e enfrentado em todas as Inspetorias (também nas missio- nárias, que devem tender a aumentar sempre mais as vocações autóctones) sem des- cuidar da contribuição das ciências psicológicas e sociológicas.

Se, contudo, insisto de um lado que cada Inspetoria tenha um programa de trabalho orgânico para o aumento das vocações, de outro lado quero chamar a atenção para o gravíssimo perigo que, pela penúria de vocação, se mandem adiante, para o sacerdócio ou na vida religiosa, elementos que não devem absolutamente continuar.

A Igreja, o Concílio e o Capítulo Geral falam claramente contra esse perigoso engano. O decreto sobre a formação sacerdotal diz claramente: “Em toda a seleção dos alunos e ao submetê-los a necessárias provas, sempre se tenha firmeza de ânimo também no caso doloroso de penúria”.

Passando por cima de acertadas graves carências, de certos elementos contraindica- dos por temperamento, capacidade ou por outros motivos sérios, pelo fato que há ne- cessidade de pessoal, presta-se um péssimo serviço à Congregação e à Igreja. Quantas lágrimas, quantas infelizes e muitas vezes irreparáveis situações justamente devido a esse tipo de erro. Será preciso recordar a respeito o pensamento de um grande bispo que conhecia bem os problemas das vocações: “Dez padres errados não valem um bom padre”. É uma afirmação grave e desconcertante que nos impõe muita prudência.

 

17.  Empenho de todos: renovar-se saindo da mediocridade

Já é tempo de eu concluir.

A Congregação vive e serve dinamicamente à Igreja na proporção do seu constante rejuvenescimento. E isso acontece através do influxo incessante de novas levas, sadias, fervorosas e generosas.

O influxo de novas forças é condicionado pela nossa ação. “Deus precisa dos ho- mens”. As vocações são um dom de Deus, é verdade, mas cabe a nós individuá-las, cul- tivá-las, defendê-las. Também se disse com autoridade: “Cada Instituto tem as vocações que merece”.

Somos, pois, todos chamados em causa.

É muito importante recordar as palavras do Decreto Perfectae Caritatis: “Recordem os religiosos que o exemplo da própria vida constitui a melhor propaganda do seu Insti- tuto e o melhor convite a abraçar o estado religioso”.

Pois bem, cada Salesiano, em qualquer posto de trabalho, nos Conselhos Inspetoriais e locais, nos Aspirantados ou nos Oratórios e nas Paróquias, nos Pensionatos ou nas Escolas, sinta-se pessoalmente empenhado a merecer, com a sua vida primeiramente, verbo et opere, vocações válidas para a Congregação: são elas justamente o prêmio e o sinal da nossa fidelidade a Dom Bosco.

Irmãos e filhos caríssimos, eu vos entretive bastante longamente, mas queria abrir- vos o meu coração sobre problemas urgentes e vitais.

Fiz quase um longo elenco deles, não porque quisesse estudá-los a fundo ou propor soluções definitivas e exaustivas. Quis apenas que, do conjunto das situações que vos apresentei e das constatações que fizemos juntos, brotasse mais decisiva e corajosa a vontade de renovação, que é a lei da Igreja neste nosso tempo, e o esforço para sair da mediocridade a fim de tender a uma sempre mais elevada qualificação espiritual, apos- tólica, educativa.

Chega-nos de todas as partes o convite a refazer as nossas energias e a sermos me- lhores e dignos da nossa missão. Trata-se da nossa alma, da nossa Congregação e da Igreja.

Avante, pois! Os problemas prementes não nos permitem demoras e servem de es- tímulo à nossa boa vontade. Caminhemos com os olhos sempre voltados ao Concílio e ao Capítulo Geral; façamos nosso, cada dia mais, o seu espírito e estilo, com o estudo e a oração.

Prestaremos um grande serviço à Igreja e à Congregação nestes momentos muito delicados por tantos aspectos. Dom Bosco nos abençoe a todos. A dileta Mãe Maria Au- xiliadora obtenha-nos luz e coragem no nosso nem sempre fácil trabalho.

A todos, especialmente aos que o sofrimento e a distância mantêm mais próximos do meu coração, a minha afetuosa saudação com a lembrança na oração. Tende, tam- bém vós, uma lembrança por mim e por todos os Superiores do Conselho.

Vosso afeiçoadíssimo em C. J.

Luís Ricceri
Reitor-Mor

 

O DIÁLOGO

 Luís Ricceri
Atos do Conselho Superior 247

  1. Uma premissa: olhemos para o verdadeiro Concílio. – 2. Porque se escolheu este tema. – 3. O redi- mensionamento, nosso grande diálogo. – 4. O diálogo elemento de formação e de vida. – 5. O segredo do verdadeiro diálogo. – 6. A Igreja dá-nos o exemplo. – 7. Diálogo: estilo moderno de relação social. –
  2. Jesus Cristo Mestre do diálogo. – 9. Dom Bosco e o diálogo. – 10. Qualidades e virtudes do diálogo. –
  3. Ambiente salesiano do diálogo. – 12. O diálogo entre Superiores e Irmãos e a Obediência. – 13. Diálogo entre Sacerdotes e – 14. Diálogo entre Anciãos e Jovens. – 15. Os frutos do diálogo.

Turim, 31 de janeiro de 1967

 

Filhos e Irmãos caríssimos,

Volto, com esta carta, a entreter-me convosco, com cada um de vós, e fico contente por isso. Escrevo com os olhos e o coração voltados ao nosso Pai, cuja festa vem fazer reviver em nós generosos propósitos de filial fidelidade. Não se extinguiram, porém, em meu espírito, os ecos das festas natalícias que me trouxeram de todos os ângulos da terra votos e orações, propósitos e agradecimentos. Centenas e centenas de cartas e mensagens de todos os tipos, milhares de assinaturas passaram sob os meus olhos co- movidos.

Dos países do bem-estar e daqueles onde a fome é uma triste realidade crônica, dos países de antiga civilização cristã e dos lugares de missão, dos países da liberdade e da- queles onde se vive na insegurança, no medo, na guerra.

Entretanto, por mais distantes que sejam os países e variadas as condições de vida e apostolado de onde provinham as mensagens augurais, por mais que os textos fossem escritos em línguas e caracteres muito diversos, encontrava em todos, ardorosos novi- ços ou simpáticos aspirantes, irmãos muito jovens ou missionários idosos consumidos pelos trabalhos, um único idêntico sentimento: o afeto filial, o apego afetuoso e incon- dicionado a Dom Bosco e a quem humildemente o representa, sentimentos que se con- cretizavam sempre numa fervorosa promessa de fidelidade e dedicação à comum ama- díssima Mãe, a Congregação.

Pr isso tudo agradeço novamente, antes de tudo, ao Senhor, que me dá o conforto de sentir a união cordial dos filhos ao redor daquele que carrega a cruz bem pesada da paternidade na Congregação; ao mesmo tempo, porém, aqui estou a agradecer a cada

um de vós, pois sois justamente artífices e alimentadores dessa união que é a mais au- têntica e construtiva expressão do espírito de família, herança preciosa que nos foi dei- xada pelo Pai e que todos nós queremos alimentar com a nossa contribuição pessoal.

Sinal e, mais ainda, elemento vivificante desse espírito de família é certamente o di- álogo que o Concílio quer que se torne estilo, método, ou melhor, espírito animador da atividade da Igreja de hoje e que nós, nos passos do nosso Pai e segundo os exemplos da nossa melhor tradição, queremos traduzir em realidade cotidiana e capilar em toda a vida da Congregação e em todos os níveis.

A Estreia deste ano, como sabeis, trata justamente desse tema. Parece-me muito útil para a nossa família tentar ilustrar-vos os motivos, aspectos, aplicações práticas do diá- logo.

 

1.  Uma premissa: olhemos para o verdadeiro Concílio

Hoje também se dizem, desejam e realizam muitas coisas, e com frequência em nome do Concílio: é um modo de apoiar-se na indiscutível autoridade da recente Suprema As- sembleia da Igreja.

Agora, para o diálogo, frequentemente invocado com razão, mas muitas vezes erra- damente, também se recorre ao Concílio. Parece-me oportuno, por isso, esclarecer logo o que “Concílio” é realmente e, portanto, obrigatório e orientador para todos nós, para termos uma ideia adequada e segura não só do diálogo, mas de muitos outros proble- mas muito vivos e candentes.

Certamente, não é Concílio qualquer artigo de jornal ou revista, qualquer livro ou conferência, mesmo de pessoas de grande fama; muito menos são Concílio as ideias e – pior – os autênticos arbítrios que indivíduos exaltados e superficiais pretendem atuar em nome do espírito do Concílio. Constatou-se mais de uma vez que esses indivíduos nem sequer leram os documentos conciliares e muito menos os estudaram.

Somente os Documentos conciliares e pós-conciliares, as interpretações de quem tem a responsabilidade e a autoridade de fazê-lo, são e devem ser para nós os que nos unam, nos guiem e nos orientem.

E devemos acolher o espírito conciliar somente dessas fontes.

Não se trata de estreiteza de ideias, de medo do novo, mas sabedoria obrigatória; diria, é bom-senso.

Dou alguns exemplos. Sobre o diálogo-obediência na vida religiosa há quem pretenda reviravoltas inauditas, abolindo na prática a obediência religiosa, e até mesmo a ideia de obediência, que, é bom recordar, é uma norma de vida social e civil antes de ser uma virtude cristã e religiosa. Percorro as páginas dos documentos conciliares e pós-concili- ares, os discursos do Pontífice e dos órgãos qualificados. Em todo esse material não en- contro uma única palavra que apoie essas interpretações.

É verdade que, em muitas passagens dos documentos, se diz claramente a quem é superior que é preciso agir de modo a levar os súditos a uma obediência “ativa e res- ponsável”, e é óbvio que para chegar a isso o Superior deve usar método e modos ade- quados. Mas de aí à abolição prática da autoridade há um longo caminho a percorrer.

O mesmo se diga da liturgia. É recente o repúdio das autoridades do “Consilium” de certas iniciativas arbitrárias.

Igualmente para a récita do breviário, a devoção a Nossa Senhora, a récita do santo Rosário. Para esta prática mariana, por exemplo, como se poderia justificar certas atitu- des que se diriam iconoclastas, diante da carta do S. Padre do mês de abril do ano pas- sado? Em relação ao santo Rosário gostaria de convidar ainda a contemplar Dom Bosco e, mais próximo de nós, o Papa João.

Caros Irmãos e Filhos, precisamos reconhecer que sob a etiqueta do Concílio são pro- pagadas cá e acolá no mundo, por espíritos inquietos e menos equilibrados, que gosta- riam de agir em nome do Concílio, coisas que são até mesmo contrárias à letra e ao espírito do Concílio. Não é esse o nosso caminho.

Temos um campo muito grande de ação para atuar o verdadeiro Concílio; há real- mente muitas coisas a renovar no espírito do Concílio.

Trabalhemos seriamente e sem atrasos nesse amplíssimo e providencial campo, a começar da renovação pessoal interior sem a qual não é possível qualquer renovação autêntica.

Estudemos, pois, os Documentos conciliares procurando assimilar as suas ideias e o seu espírito. Só assim daremos a nossa contribuição eficaz à renovação que a Igreja es- pera urgentemente do Concílio; caso contrário, dói dizê-lo, a nossa ação seria de demo- lidores mais do que construtores da Igreja renovada.

Tratemos, pois, do grande tema do diálogo, levando-o, sim, ao ambiente da nossa família, mas com o olhar sempre voltado a tudo que sobre ele nos ensinam, através do Concílio, da Igreja e da Congregação.

 

2.  Por que se escolheu este tema

Brotou da decidida vontade de renovação da Igreja a grande realidade do diálogo, que hoje abrange todos os estratos e todos os caminhos do povo de Deus e parece evi- denciar mais o caráter social da Igreja, através do intercâmbio sempre mais amplo das ideias e das atividades.

A vastidão mesma da nossa Congregação e a sua profunda inserção na vida da Igreja abrem-na a esse amplo diálogo que está ocorrendo no mundo.

A própria renovação da vida religiosa, que recebeu o seu impulso do Concílio, condu- ziu-nos pelo caminho do diálogo.

O Decreto Perfectae Caritatis evidencia a necessidade de uma generosa “colaboração de todos os membros do Instituto”, sem a qual “não podem ter lugar uma eficaz reno- vação e uma verdadeira atualização”.1

O Decreto acrescenta explicitamente que “os Superiores, nas coisas que dizem res- peito a todo o Instituto, consultem e ouçam os seus súbditos de modo conveniente”. Ouvir de “boa vontade” os próprios súditos “e promover a sua colaboração para o bem do Instituto e da Igreja”2 está, além de tudo, em absoluta coerência com a reafirmação da norma que confirma claramente e defende a função da autoridade.

A nossa Congregação, empreendendo a obra vital de renovação querida pelo Concí- lio, viu como fácil e plenamente conforme o espírito de Dom Bosco seguir o caminho cordial e aberto do Diálogo. A realização do Capítulo Geral XIX já deu prova do sábio amadurecimento desse método à medida que os trabalhos iam sendo desenvolvidos. Depois, as deliberações tomadas sobre muitos aspectos diversos da nossa vida são não só um convite, mas uma realização do diálogo.

Citemos algumas delas.

As Conferências Inspetoriais com os Superiores que as presidem querem alimentar o diálogo continuado entre as Inspetorias e o Centro, para que se realize a vantajosa os- mose que, sem nivelar povos, países, climas, costumes, exigências, estabelece, porém, a união e o contato continuado e a compreensão recíproca que levam à colaboração construtiva.

Os Conselhos Inspetoriais alargados, com a presença neles de uma nova figura na pessoa do Vigário, querem pôr o Inspetor em condição de manter contatos mais simples e intensos com os irmãos e com as comunidades, direta ou indiretamente, para conhe- cer as necessidades, compreender em profundidade as situações e dificuldades, cuidar dos seus interesses.

Dessa forma, a função dos Delegados Inspetoriais, que não deve ser puramente no- minal, mas real e eficiente, é a de estabelecer contato entre o Centro e as Inspetorias, entre o Inspetor e os campos de apostolado, transmitir e atuar diretrizes, tomar ciência das situações e dificuldades locais, para estudarem juntos como resolvê-las.

E a que servem os Conselhos locais, e ainda mais os de ação, com a introdução, nos casos previstos, também de irmãos coadjutores? Servem justamente para que o anda- mento e o governo de uma obra ou de uma atividade seja o fruto de um diálogo contí- nuo, qualificado, amplo e responsável.

Em várias Inspetorias já funcionam as “consultas” para os oratórios e paróquias, para a pastoral juvenil e os apostolados sociais, as escolas, a economia, etc.

Também o Conselho Superior está apoiando-se em Consultas de especialistas nos vá- rios setores que nos interessam.

1 PC 4.

2 Ib. 14.

Esses organismos têm a finalidade de oferecer aos Superiores responsáveis os frutos da cultura, da experiência e do estudo dos irmãos, sacerdotes e coadjutores, e em alguns casos também leigos que, sem ocupar cargos diretivos, são capazes de oferecer indica- ções, conselhos, orientações preciosas a quem deve governar.

Certamente, todas essas estruturas devem ser postas em ação, e com confiança, por aqueles que têm a obrigação delas.

Sobre isso, exprimo a minha viva satisfação às Inspetorias e comunidades em que essas estruturas começaram a funcionar, e a quem ainda hesita digo que com o novo ano todas elas devem ser atuadas. Não se trata de simples sugestões, mas de disposi- ções precisas do Capítulo Geral. E a elas se obedece providenciando não só material- mente, mas entrando nas intenções que inspiraram essas normas.

Devo dizer ainda que adiar, não enfrentando a solução desses problemas, recorrendo a motivações que não se sustentam, demonstraria apenas imobilismo, que não compre- endeu a importância dessas disposições, e acabaria por ser de dano à Inspetoria, às obras, bloqueando-as e mortificando-as no processo de renovação que a Congregação, a convite da Igreja, pretende dar a todas as suas formas de atividade e de vida.

 

3.  O redimensionamento, nosso grande diálogo

Entretanto, o diálogo mais amplo, mais capilar, mais trabalhoso, que a Congregação iniciou felizmente, é certamente o Redimensionamento.

Com ele, cada irmão é convidado a exprimir o seu parecer sobre muitos aspectos e perspectivas da vida e da atividade da própria Casa. Consequentemente, se poderá co- nhecer também, através dos demais graus da grande pesquisa, o parecer dos irmãos sobre muitos problemas da Inspetoria.

É supérfluo dizer que essa amplíssima pesquisa já em andamento, enquanto expressa toda a confiança que a Congregação tem nos seus filhos, em cada um dos seus filhos, por outro lado exige, da parte de todos, a preocupação com a objetividade e clareza de ideias, uma grande serenidade de julgamento, diligência na preparação das respostas, senso responsável da hierarquia dos valores que a Congregação deve e quer salvar em nós: o Salesiano antes de tudo, como religioso e como sacerdote do nosso tempo, o que é importante de imediato para o cuidado da sua vocação como tal, antes do que como apóstolo.

A nossa vocação é juvenil e popular, válida ainda hoje, como nos disse claramente o Papa, e deve caracterizar-se adequando-se, e não se esvaziar ou se perder em pluralis- mos dispersivos.

Muito da renovação que estamos buscando relaciona-se estritamente com o resul- tado da operação do redimensionamento já em andamento.

Importa muito, portanto, que esse trabalho delicado seja conduzido por todos, Supe- riores e simples irmãos, com método, diligência, seriedade, interesse apaixonado, tendo presente que se trata da mesma vida da Congregação.

Com efeito, como se pode arguir facilmente ao examinar os módulos distribuídos, não se trata do eventual fechamento ou redução desta ou daquela obra, quanto de uma profunda e corajosa revisão de toda a nossa vocação coletiva e da nossa obra apostólica na Igreja.

À luz da experiência e das novas perspectivas da Igreja e da história, trata-se de ver os modos e os meios para tornar eficientes os homens e, depois, as estruturas e as obras para a missão à qual a Igreja nos chama.

Coloquemos essa empresa nas mãos da nossa doce Mãe, a Auxiliadora. Ela que guiou Dom Bosco pela mão em tudo o que interessava à vida da nossa humilde Congregação, queira obter-nos a luz, o discernimento e a clarividência necessária para tornar fecundo o grande diálogo do redimensionamento.

 

4.  O diálogo, elemento de formação e de vida

Todas essas ações e outras que ainda não é possível enumerar, encontram a sua sín- tese melhor no capítulo VI do documento sobre “A nossa vida religiosa”.

Releiamos algumas de suas expressões:

“Todos os membros (da Comunidade), como adultos corresponsáveis, colocam-se, portanto, claramente de acordo sobre os objetivos sobrenaturais da sua ação e dos meios para alcançá-la. Este esforço de colaboração deve ser sempre revisto. Além do Conselho restrito da casa, a Comunidade prevê encontros regulares, sob a principal res- ponsabilidade do Diretor, para examinar situação e a consciência coletiva e elaborar os planos apostólicos. A ‘revisão de vida’, em grupos restritos, aprofundará esse trabalho. Dessa forma, cada irmão pode, sem qualquer desconfiança, situar-se com seu trabalho e seus dotes particulares entre uma equipe coerente, fervorosa, que tem a garantia e o mérito da eficácia educativa depois da graça de Deus, mas antes dos interesses indivi- duais”.3

Contudo, para aumentar o diálogo somos incentivados por outra razão mais pro- funda, que interessa diretamente a nossa mesma formação.

Nós vivemos numa era de velozes e sempre mais numerosos contatos, em situações sempre novas, com extraordinária modificação de experiência e mentalidade, na neces- sidade de abrir-nos ao conhecimento do que nos rodeia, e que condiciona de algum modo a nossa vida, e de defender a solidez dos nossos princípios e do nosso patrimônio espiritual. Já não podemos viver isolados do mundo e devemos ao mesmo tempo salvar- nos dos seus perigosos desvios.

3 Atos do Capítulo Geral XIX, p. 88.

Precisamos preparar os irmãos para essa situação delicada e com frequência dificilís- sima: precisamos ensinar a conhecer as finalidades das nossas relações com o mundo, os limites da nossa ação, os perigos que podemos encontrar no nosso caminho, o que devemos dar aos outros e o que podemos receber. O contato com o mundo para o nosso apostolado jamais deveria empobrecer-nos, antes, deveria favorecer, com a riqueza da sua experiência, o amadurecimento do nosso espírito e o enriquecimento espiritual, que não encontraríamos em nenhuma forma de isolamento pessoal. Numa palavra, nós que- remos aceitar o convite ao diálogo que nos foi feito pela Igreja e que está no espírito do tempo, mas gostaríamos que o diálogo, bem longe de ser uma armadilha para nós, fosse um instrumento autêntico de bem para os outros e de enriquecimento para nós.

 

5.  O segredo do verdadeiro diálogo

Para dizer a verdade, não é raro ouvir, também em nossa família, quem apela, com razão, para o diálogo. Mas este é invocado também para sustentar um parecer pessoal muitas vezes evidentemente errado, ou – pior – em forma de protesto para impor teses insustentáveis, ou para exigir “sins” que o Superior em consciência não pode dizer.

Também não pode ser diálogo aquele de quem sabe discutir sobre si mesmo com abundância de argumentos – todos os reconhecem –, postula com eloquência a sua ne- cessidade e urgência, mas depois na vida comunitária, nas relações com os irmãos, é surdo e impermeável a qualquer ideia que não seja a sua, não aceita senão os seus pon- tos de vista e as suas iniciativas, enfim é fechado no pequeno círculo inflexível do seu “eu”, que na prática quer impor aos demais, talvez também em nome do diálogo. O diálogo, aquele autêntico, seria supérfluo dizê-lo, tem suas raízes numa virtude, sem a qual ele jamais será possível; falo da humildade que é o sentido claro dos próprios limi- tes e apreço e confiança na contribuição da inteligência e da experiência dos irmãos na busca da verdade.

Essencialmente, sendo o autêntico diálogo um esforço sincero, uma comum honesta vontade de buscar e descobrir a verdade, o seu elemento essencial é escutar, mesmo se possa parecer à primeira vista paradoxal. Precisamente isso. Poucos, de fato, são os que escutam realmente os outros, mesmo na troca de milhares de palavras.

Isso acontece porque cada um é tão cheio das suas ideias, finalidades, pequenas ou grandes ambições, do seu eu, enfim, que não tem espaço para prestar atenção no irmão com quem fala.

Com muita frequência, então, o diálogo torna-se um amontado de palavras, de sons em caminhos paralelos, e não o intercâmbio respeitoso e cordial das respectivas rique- zas, pequenas ou grandes que sejam.

Ao contrário, quem possui o grande dom de saber escutar é rico de uma força prodi- giosa que transfunde no interlocutor. De fato, nada leva o interlocutor a abrir-se e entrar em sintonia conosco quanto a atenção que lhe damos e o interesse que demonstramos ao seu discurso, argumentos, dificuldades, dores.

Esse é o grande segredo que torna útil e fecundo qualquer diálogo: entre Superiores e simples irmãos, entre anciãos e jovens, entre sacerdotes e coadjutores, entre salesia- nos e leigos, entre educadores e jovens.

A Estreia de 1967 mira esta meta; ela não obedece certamente a uma moda utópica e nem cede a qualquer negação dos princípios da vida religiosa.

 

6.  A Igreja dá-nos o exemplo

O exemplo decidido e corajoso da Igreja confirma, antes de tudo, na atualidade, vali- dade e urgência de um esforço em favor do diálogo. Retomo o argumento com que ini- ciei. Ela dialogou primeiramente consigo mesma para redescobrir o mistério profundo da sua realidade e a missão que Deus lhe confiara.

Durante o Concílio, quis e solicitou nas formas mais amplas o colóquio com todos os Bispos, representantes do mundo católico, num clima de liberdade e franqueza que, se deu vivacidade às discussões, produziu os seus frutos na elaboração dos decretos con- ciliares: foi um único, grandioso colóquio que a história do mundo ainda não ouvira.

A Igreja também reabriu, depois de séculos de silencio e separação, o diálogo com as demais confissões cristãs, e não só com elas; e hoje, o encontro continua num clima, mais que de respeito, confiança e boa vontade, com a perspectiva de novas etapas no caminho iniciado.

Um diálogo imenso está continuando, agora, sobretudo dentro da própria Igreja, em todos os níveis e com todas as formas de colaboração e entendimento, do Papa com todos os membros da família cristã, entre os Bispos, os Sacerdotes, os Religiosos e os Leigos.

Sei bem que alguns estão preocupados com o risco relacionado a toda nova experi- ência e com os abusos que se podem cometer mesmo com o nobre instrumento da nossa liberdade; mas o apelo ao diálogo chega com a força muito autorizada da Igreja, que nos é agradável, mais do que obrigatório, acolhê-lo e obedecê-lo.

 

7.  Diálogo: estilo moderno de relação social

Convidando-nos ao diálogo com o mundo, a Igreja propõe-nos uma postura e um método que hoje está na base de todas as relações entre os homens. A nossa era é na verdade, a era do diálogo, que se tornou uma exigência insubstituível no plano social, político, econômico, cultural, educativo, religioso. Os encontros tornaram-se uma ne- cessidade para qualquer forma organizada e associada de vida. Já não se dá mais impor- tância à distância e à multiplicidade dos compromissos. Quer-se confrontar a qualquer custo o modo de pensar e agir dos outros para tirar disso o maior proveito para si. Já não ser quer aceitar ideias e projetos, de modo preferencial, através da comunicação escrita e indireta, mas a partir do contato vivo com as pessoas e o ambiente.

O diálogo direto é buscado pela empresa comercial com seus clientes, pelo jornal com seus leitores, pela instituição que deve assumir o seu pessoal.

Não falamos daquele diálogo grandioso e espetacular que a publicidade tende a ins- taurar com o mundo dos consumidores para obter uma atitude de simpatia para com seus produtos.

Devemos reconhecer que o capítulo das “relações humanas” se tornou mais impor- tante dos que tratam de interesses materiais. As próprias características mais acentua- das do nosso tempo, o respeito pelo indivíduo, o sentido da liberdade, o espírito comu- nitário e democrático, parecem favorecer as relações humanas com a fórmula persua- siva do diálogo.

A Igreja, evidentemente, e as instituições que nela vivem, não só não pode ser con- trária ao diálogo que está sendo instaurado com sempre maior amplitude no mundo, mas dele participam profundamente e o apoiam com alguns dos elementos essenciais ao próprio espírito.

 

8.  Jesus Cristo Mestre do diálogo

O diálogo, de resto, não tira a sua necessidade e a sua atualidade somente de motivos históricos e contingentes, mas tem suas raízes nas origens mesmas da nossa santa reli- gião.

Jesus Cristo é Deus que se fez homem, palavra e diálogo com os homens; e como a Igreja deve continuar o encontro que Jesus Cristo veio realizar com o mundo, nós sem- pre devemos olhar a Jesus Cristo para conhecer qual relação devemos ter com o mundo e em quais termos exatos devemos fundamentá-la.

Ora, mesmo o olhar mais superficial que lançamos ao Evangelho nos mostra como Jesus teve a única preocupação de encontrar-se com os homens para abrir suas almas à luz da verdade. O seu diálogo foi sem interrupções e sem distinção de pessoas. Ele ini- ciou conversas na rua e no templo, em casas particulares e diante das multidões, com os humildes e os pobres, com os ricos e os poderosos. Deu o primeiro passo para ir em busca dos que estavam afastados, rompeu por primeiro o silêncio ou tomou por pri- meiro a iniciativa da conversa. Seguiu apenas o método da compreensão e do convite cheio de confiança, não desprezou ou repudiou ninguém, assim como de resto jamais renunciou à coerência da sua doutrina e ao respeito devido à liberdade de escolha da- queles a quem se dirigia.

Conservaram-se as palavras incomparáveis pronunciadas por Jesus no encontro com Nicodemos, com a Samaritana, com Zaqueu, com o jovem rico e com muitas outras pes- soas que Ele encontrou no breve giro da sua pregação. Nós admiramos nelas todo o conteúdo da salvação e a bondade e sabedoria com que Jesus veio redimir o mundo; mas do Evangelho nós também aprendemos a conhecer de forma inconfundível o mé- todo segundo o qual a Igreja e cada fiel deve fazer ouvir novamente hoje ao seu redor a mensagem do Evangelho.

Segundo o exemplo de Jesus Cristo, o diálogo é um serviço prestado à verdade, é inspirado pelo primeiro e maior preceito da caridade e toma as formas e chega aos limi- tes fixados também pela caridade.

 

9.  Dom Bosco e o diálogo

O diálogo, de que Jesus nos deu admirável exemplo e ao qual a Igreja nos convida com particular insistência, contou com um modelo autêntico em Dom Bosco.

Se o diálogo obedece a um “impulso interior de caridade” que nos leva aos outros para buscarmos juntos o dom divino da salvação com a disposição cordial da compreen- são e da bondade, toda a vida de Dom Bosco foi dominada por essa atitude, ou melhor, é uma sua característica distintiva.

Dom Bosco nunca foi alguém isolado e não conseguimos pensá-lo a não ser rodeado dos outros, de jovens principalmente, com o coração aberto a todos e capaz de manter uma correspondência de ânimo com todos. O seu diálogo teve pleno sucesso no saber falar com os outros e saber escutá-los, e é edificante para nós percorrer os diversos as- pectos e momentos da sua vida para buscar as formas e características assumidas pelo seu encontro com o próximo.

Pensemos novamente no incomparável encontro de 8 de dezembro de 1841, quando o santo conquistou o coração do primeiro jovem que lhe foi enviado pela Divina Provi- dência, Bartolomeu Garelli. Que diálogo! E diálogo era a busca que ele fazia dos jovens indo aos bares, às prisões, às casas: diálogo de fatos e de toda a vida quando ele aban- donou a possibilidade de uma posição tranquila e cômoda para ir morar em Valdocco, na periferia da cidade, em meio à gente nada edificante, e lá vivia física e espiritual- mente próximo dos jovens que ele queria redimir e salvar.

A alma do diálogo que Dom Bosco instaurou com o mundo está na sua concepção de apostolado aberta, popular, que se aproxima, mais e antes ainda do que com as palavras de uma conversa.

Contudo, o nosso Pai que se abria com muita espontaneidade ao diálogo com os seus jovens, deixava-se conduzir, por sua vez, na sua multiforme atividade, pela palavra au- torizada do seu confessor, P. José Cafasso, a quem ele pedia conselho em tudo e a quem obedecia com absoluta e filial submissão.

Ele conhecia a generosidade do dar e se fazia de guia seguro dos jovens que o Senhor lhe enviava, mas, justamente pela capacidade e o exercício que fizera do diálogo, acei- tava ele mesmo espontaneamente ser guiado e conduzido.

Dirigindo-me a Irmãos que bem conhecem a vida do Fundador, não posso deixar de destacar a capacidade de Dom Bosco de saber conduzir o diálogo com os seus primeiros Salesianos naquele que era o movimento ordinário da vida religiosa e do governo da Congregação.

Quando se tratava de assuntos da Congregação, que humildade e que interesse na escuta e no pedido do parecer dos outros e no submeter-se ao voto do seu Capítulo (formado, é bom recordá-lo, pelos seus filhos)! Que fineza ao dar confiança a todos, ao valorizar também os indivíduos menos dotados, ao saber servir-se dos recursos de cada um para o bem comum! Que sabedoria ao atribuir no devido tempo graves responsabi- lidades, mas ajudando a carregá-las, educando para o governo, deixando os homens de quem podia dispor no caminho de um apostolado para eles quase impensável! Que sub- missão nas suas relações com os Superiores eclesiásticos, em situações mesmo delica- das e difíceis, para poder unir o vantajoso vínculo do diálogo e da colaboração! Para Dom Bosco o diálogo não serviu de pretexto para impor a sua vontade e limitar a dos outros, e nem de instrumento de compromisso e concessões, mas foi uma disposição profunda da alma que o levou a dilatar a caridade pelo próximo, e, por sua vez, a receber conselho e ajuda, procurando o entendimento e recolhendo forças para que pudessem colaborar no bem.

O diálogo nas primeiras casas de Dom Bosco não atenuou o prestígio e a autoridade do Superior, mas foi expressão de uma autêntica paternidade que se abria a todos os filhos de uma única família em efusão de amor levando-os espontaneamente à unidade, corresponsabilidade e colaboração cordial.

Não podemos esquecer que o entendimento criado por Dom Bosco na Congregação nos seus primeiros decênios de vida foi a que deu solidez no interior e força de expansão no exterior.

Ao redor de Dom Bosco, os irmãos abraçaram-se com simplicidade de coração e ge- nerosidade, assim como viram que ele ia até eles com a simplicidade e a generosidade de toda a sua alma paterna. É um dos mais belos diálogos que a história da Igreja mo- derna nos recorda.

Olhando, à luz do diálogo, para Dom Bosco e os primeiros irmãos, devemos redesco- brir sobretudo a disposição de simplicidade, generosidade e entendimento cordial.

Nesta escola, na desorientação muitas vezes muito confusa do nosso tempo, nós en- contraremos os elementos daquele sadio e autêntico diálogo que porá todas as forças unidas da nossa Família dispostas para a sua renovação espiritual.

 

10.  Qualidades e virtudes do diálogo

O diálogo, para ser eficaz e fecundo, exige uma soma de qualidades e virtudes muito ativas e frutuosas.

Paulo VI enumera quatro delas: clareza, doçura, confiança e prudência. Uma palavra sobre cada uma destas características.

— A clareza do nosso colóquio vem primeiramente da clareza das nossas ideias. E aqui vale a exortação para sair de certa preguiça intelectual que nos torna pouco atentos na busca de ideias claras sobre os grandes e graves problemas dos homens do nosso

tempo. Hoje há uma grande evolução na mentalidade corrente e não é possível desper- tar interesse e convicções com respostas confusas e incertas.

Um sacerdote, estudioso profundo e conhecido professor da Universidade Católica de Milão, vulgarizador afortunado do pensamento e da piedade cristã, Mons. Francisco Olgiati, dizia que para poder vulgarizar a ciência é preciso possuí-la profundamente, ou melhor, até mesmo tê-la “macerado”. Só quem estuda seriamente um argumento pode recolher os seus componentes essenciais e colocá-los com simplicidade em evidência, isto é, conseguir apresentá-los com clareza. Importa muito, portanto, que, ao discutir os problemas, eles sejam realmente conhecidos e aprofundados!

Não poucas vezes o diálogo fica difícil, ou melhor, fica impossível, porque não há na base das ideias a clareza, mas certo equívoco, certa nebulosidade, um conhecimento do problema apenas aproximado, por ouvir dizer!

Olhando mais longe, importa muito que desde o período escolar, habitue-se a apro- fundar, num estudo sério de todo problema, para sair dele sempre com as ideias pesso- ais tão claras que se traduzam em ideias expressas com clareza ao nosso próximo.

— A doçura brota da própria natureza do diálogo, que requer o respeito pelo interlo- cutor e conta com a força da verdade e não com a imposição.

Sobre isso, gostaria de destacar que muitas vezes nós consentimos numa polêmica com prevenção e cautela, e isso fecha o coração do nosso interlocutor; muitas vezes, ainda (o que é muito triste!) não se respeitam nem sequer as normas elementares da cortesia por intolerância com a opinião alheia e a livre e serena discussão.

Pode acontecer também nas casas religiosas, nas reuniões do Conselho ou em outras reuniões, que não se consiga instaurar um diálogo sereno para chegar a decisões cons- trutivas ou juízos adequados, justamente por faltar aquela disposição elementar à do- çura que permite a cada um exprimir o próprio parecer e a quem preside chegar às con- clusões.

Caros irmãos, devemos empenhar-nos, todos nós, para que as nossas reuniões nunca sirvam de pretexto para batalhas caprichosas nas quais naufragam, com o diálogo, a caridade e o bem-comum.

Não podemos arruinar com as nossas faltas de respeito o grande bem que pode vir de um diálogo coordenado.

— A confiança é a terceira característica que o Papa indica para o diálogo, para am- pliarmos ao nosso redor o grande dom da salvação.

Precisamos acreditar na missão que é confiada a cada um de nós, confiar nas circuns- tâncias concretas da nossa vida e nos limites que ela nos impõe. Mas precisamos, ao mesmo tempo, acreditar nos outros.

O nosso otimismo para com o próximo pode fazer brotar muitas energias boas que, caso contrário, não teriam como se revelar. A confiança poderia fazer reflorescer a es- perança e o otimismo também em algumas comunidades, que caminham muitas vezes

com escasso interesse pelo bem, por faltar quem abra o caminho ao diálogo da palavra e da ação.

Fica-se fechado no descontentamento ou na rotina das misérias cotidianas ou nos estreitos limites da mediocridade, nas prevenções ou nos ressentimentos; e acontece que uma invisível, mas clara cortina separe e mantenha separadas pessoas que escolhe- ram também a vida comunitária, ligada pelo vínculo da caridade, para ajudar-se recipro- camente.

Dom Bosco fundamentou todo o seu trabalho educativo na premissa de que nenhum jovem é insensível ao apelo do bem e confiar no seu sucesso já é colocá-lo no caminho da salvação.

Ele levou esse encorajamento de serena expectativa em relação aos outros também aos primeiros irmãos que sentiram como que potencializados nos seus recursos pela estima afetuosa do Pai e responderam-lhe com um abandono e uma generosidade que não podiam ser maiores.

Com essa postura, Dom Bosco infundiu coragem em muitos que teriam ficado detidos nos gargalos do medo e da mediocridade. Foi um exemplo para o qual devemos olhar, sobretudo quando se tem responsabilidade de governo.

— A prudência é a última virtude que nos guia nos passos nem sempre fáceis e aber- tos do diálogo.

Este, com quem quer que seja, não pode ser abandonado à improvisação, ao precon- ceito, à inexperiência e às veleidades de um espírito inquieto, mas deve ser orientado com aquela ponderação que nos garante o bom êxito. A Igreja exorta-nos a ir ao encon- tro dos homens com todo o estímulo da caridade e seguindo a urgência de anunciar a todos a salvação, não esquecida, porém, do apelo à prudência que o próprio Jesus teve dirigindo-se aos apóstolos, futuros mensageiros da salvação no mundo.

Alargando as perspectivas deste tema, gostaria que chegasse a todos a exortação a multiplicar como o nosso Pai as energias e atividades do apostolado, para poder aproxi- mar-se e levar a Cristo almas mesmo distantes, mas peço ao mesmo tempo, com a res- ponsabilidade que sinto por cada um dos irmãos e por toda a Congregação, que a pru- dência oriente e regule a ação de cada um e de todos. O diálogo não pode ser pretexto para experiências imprudentes e leviandades injustificadas, mesmo que para nós pon- deração não signifique imobilismo. Dom Bosco, como recordei outras vezes, dá-nos um exemplo sempre atualíssimo de audácia e de prudência; o resultado e os reconhecimen- tos da sua postura são uma garantia e um ensinamento para a nossa conduta.

 

11.  Ambiente salesiano do diálogo

Digamos, porém, alguma coisa de mais concreto para aqueles que no nosso ambiente devem ser os artífices do diálogo.

Toda casa salesiana, em maior ou menor medida, é, no pensamento de Dom Bosco, um centro de irradiação apostólica, não uma fortaleza isolada. As ocasiões, antes, as necessidades e as pessoas do diálogo são, portanto, infinitas, interna e externamente, com os jovens, parentes, cooperadores, ex-alunos, professores, fiéis.

Esta concepção alarga extraordinariamente as ocasiões de apostolado, contra a afir- mação dos que acreditam ver mortificado o seu zelo sacerdotal com as ocupações que são chamados a executar no interior das nossas comunidades; e, ao mesmo tempo, abre a não ter fim as possibilidades de diálogo, primeiramente nas nossas casas e, depois, fora delas. Tudo isso naturalmente na obediência, na compreensão, na discrição.

Se atuássemos realmente as formas de atividade que são consagradas pelas nossas Regras e pelo exemplo de Dom Bosco, responderíamos, embora só com isso, à maior parte dos apelos apostólicos que nos vieram do Concílio.

Mas vamos ao prático.

 

12.  O diálogo entre Superiores e Irmãos e a Obediência

Este é o diálogo ao qual frequentemente se faz referência também no nosso mundo.

Convém esclarecer as premissas essenciais. Se elas são ignoradas, pode-se chegar às consequências mais extremas e, infelizmente, também mais absurdas e insustentáveis.

O Decreto Perfectae Caritatis diz assim: “Pela profissão da obediência, os religiosos oferecem a plena oblação da própria vontade como sacrifício de si mesmos a Deus, e por ele se unem mais constante e seguramente à vontade divina salvífica de Deus”. E depois acrescenta: “Por isso, a exemplo de Jesus Cristo, que veio para fazer a vontade do Pai (cf. Jo 4,34; 5,30; Hb 10,7; Sl 39,9), e ‘tomando a forma de servo’ (Fl 2,7), aprendeu a obedecer por aquilo que padeceu (cf. Hb. 5,8), os religiosos, sob a moção do Espírito Santo, sujeitam-se na fé aos Superiores...”.

O Decreto diz ainda: “os religiosos, em espírito de fé e de amor à vontade de Deus, obedeçam humildemente aos Superiores, segundo as próprias regras e constituições, colocando as forças da inteligência e da vontade bem como os dons da natureza e da graça na execução das ordens e no cumprimento dos cargos que lhes forem confiados, sabendo que estão colaborando para a edificação do Corpo de Cristo segundo o desígnio de Deus”. A partir destes períodos concisos aparece claro o fundamento teológico da nossa obediência, a sua dimensão ascética, o seu aspecto humano e psicológico, o seu valor social, o dever de praticá-la, os benefícios e merecimentos que dela provêm.

Por isso, o Decreto conclui: “a obediência religiosa, longe de diminuir a dignidade da pessoa humana, leva-a à maturidade, aumentando a liberdade dos filhos de Deus”.

Portanto, a personalidade nada perde com a obediência, porque o religioso a aceita com total conhecimento e a observa com plena liberdade.

Corre nestes nossos tempos certo erro sutil, mas ilusório: pretender que com a obe- diência se faça alguma ofensa à dignidade humana.

Refletindo bem, tender a Deus com a adesão livre da vida vinculada pelo voto de obediência é um gesto de dignidade e de amor; se é um ato de humildade que destrói qualquer orgulho, é um meio que exalta o indivíduo.

Pode-se falar, então, de diálogo para chegar à pratica da obediência?

Se se entende por diálogo uma discussão para levar o Superior a livrar-me a qualquer preço de uma obediência que me custa, que não me agrada, pondo no mesmo plano quem tem a responsabilidade de guiar homens e coisas e quem se obrigou a colaborar com a obediência para o bem-comum, é evidente que estamos totalmente fora da coe- rência religiosa e, diria, humana.

A obediência, antes de ser virtude cristã, é disciplina humana e civil. Com efeito, de- vemos tomar consciência, virilmente, de que a vida social, nos setores mais diversos – e certamente temos exemplos disso entre os nossos familiares e amigos que não fizeram nenhum voto de obediência –, importa execuções de ordens que com frequência reque- rem sacrifícios; e nenhum deles pensa em rebelar-se contra um contrato de trabalho, de um interesse econômico, de ligações certamente menos nobres do nosso voto.

Pois bem, a nossa “relação de trabalho”, passe a palavra, foi sigilado por nós com Deus, com o voto, mas é atuada através da “ligação” dos Superiores, que são interme- diários com todas as responsabilidades deste ofício.

Gostamos de repetir, segundo a orientação do Concílio, que a nossa vida religiosa deve ser testemunho. E com a obediência, que testemunho damos da submissão ofere- cida por Cristo “para compensar a grave desobediência de Um e sermos todos justifica- dos”!

O diálogo com o Superior deve ser, nos casos menos fáceis especialmente, a livre e confiante, mas sincera e respeitosa abertura da alma ao Superior porque assim ilumi- nado por mim, ele possa dizer-me a palavra que definitivamente me deve orientar e que eu aceitarei, pois direi sempre a penúltima palavra, que o Superior escutará; mas, é claro, a última palavra dever ser sempre a do Superior.

Reconheço, porém, que, por um conjunto de causas conhecido por todos, a obediên- cia é às vezes um cilício muito áspero para muitos religiosos, mais do que o da castidade; contudo, eu gosto de pensar que o Salesiano sabe e quer ser não um espírito fechado, mas generoso na sua entrega a Deus. Foi escrito que “só quem tem vocação para a mes- quinhez não sabe obedecer”. A experiência no-lo confirma; e há que se pensar que a obediência, justamente quando é difícil, traz o crescimento da personalidade que nela se empenha totalmente.

Como é bela e rica esta oração: “Senhor, faz-me semear na obediência, para recolher na liberdade”!

Falei até agora para o Salesiano que deve cumprir uma obediência, mas, como ace- nava acima, se é verdade que a relação de obediência é com Deus, é também verdade que há nessa relação um elo, um intermediário, que é o Superior. E também ele tem seus deveres para que essa relação seja atuada na justiça e na caridade.

O Superior deve estará ciente de que para comandar não basta crer que faz as vezes de Deus. A norma mais santa e a garantia mais segura para cumprir essa delicada função de comando é demonstrar, com o próprio modo de agir, a intenção de representar Deus em humildade, com amor, benevolência, respeito, discrição.

Acertadamente, o Decreto Perfectae Caritatis ao falar dos Superiores diz: “Levem os súbditos a colaborar, com obediência ativa e responsável, no desempenho das funções e na aceitação das suas tarefas”.4 São palavras, as últimas especialmente, cheias de sig- nificado e que devem ser bem meditadas.

É, portanto, dever do Superior penetrar no espírito do irmão, acolher as suas justas propostas, escutar as suas sugestões úteis, tomar ciência das dificuldades imprevistas, enfim, pôr em ação todos os elementos que, enquanto favorecem e alimentam o espí- rito de família, entendimento e compreensão, tornem fácil, justamente por isso, a obe- diência e enriqueçam as decisões tomadas, promovam a união das forças para o bem das comunidades, difundindo a paz que, como o demonstrou o Papa João, está indisso- luvelmente ligada à obediência.

À conclusão deste nosso discurso, deixai que vos reporte as sábias, autorizadíssimas palavras dirigidas recentemente por Paulo VI a um grande grupo de Madres Provinciais:

“Diremos, talvez, que a autoridade perdeu o seu prestígio, a sua razão de ser, a sua responsabilidade na estrutura de uma Família religiosa, que justamente pela autoridade é gerada, dirigida, animada, educada e santificada? E diremos que a obediência se dis- solveu em diálogo democrático e na vontade de uma maioria numérica ou de uma mi- noria empreendedora, quando sabemos que esta virtude é essencial para a vida religi- osa e para a comunidade religiosa e que, antes, como ensina S. Tomás ‘entre todos os votos da religião, o voto de obediência é o maior, maximum est’? (Summa Theol. Il-IIae, 186, 8). Certamente não; ou melhor, confirmaremos a necessidade tanto de um sábio exercício da autoridade, como de uma sincera prática da obediência: a estrutura e o espírito da vida religiosa seriam fatalmente comprometidos se viessem a faltar-lhe a au- toridade e a obediência. Mas tanto uma como a outra, vós o sabeis, pedem formas no- vas, mais elevadas, mais dignas da sociedade eclesial, mais virtuosas e mais conformes ao espírito de Jesus Cristo: deve ser essa dupla questão, da autoridade e da obediência, um dos temas mais estudados na reelaboração das vossas regras e na evolução da vossa mentalidade religiosa, e pedirá atenção, prudência e confiança para ser levado às solu- ções que os tempos sugerem e que o Concílio reclama. A vós, Superioras, nós, agora, só faremos citar uma célebre e sempre sábia palavra de S. Agostinho sobre o que respeita à atitude responsável daquela que dirige uma comunidade de religiosas; diz este santo mestre na sua famosa carta às preocupadas monjas do seu tempo (a. 423), que a Supe- riora não se considere dominadora por autoridade, mas sim feliz de servir por caridade.

4 PC 14.

Ele também dissera pouco antes: à Superiora se obedeça como a uma mãe, com a devida honra, para não ofender a Deus nela”.5

 

13.  Diálogo entre Sacerdotes e Coadjutores

Sabemos qual é o pensamento da Igreja e da Congregação sobre as novas responsa- bilidades do apostolado dos leigos e dos religiosos.

Conhecemos também as deliberações e orientações do Capítulo Geral XIX para uma mais ampla e profunda colaboração entre Sacerdotes e Coadjutores. Não tanto para su- perar complexos de inferioridade ou apenas para usar uma atitude de fraterna cordiali- dade, quanto para criar os verdadeiros e operantes pressupostos de uma cooperação de energias, é necessário que o espírito do diálogo sereno e construtivo domine as rela- ções dos Sacerdotes e Coadjutores na ação educativa e apostólica. É preciso sentir in- tensamente as responsabilidades recíprocas que temos para com os jovens e dessa ânsia espiritual comum deve brotar o diálogo do entendimento, da fraternidade e da colabo- ração.

Deve ser uma ideia já ultrapassada que a falta ou diferença de estudos tanto religio- sos como profanos possa ser de dificuldade para o diálogo feito em clima de fraterni- dade e igualdade. É próprio do espírito do Concílio fazer com que os nossos caríssimos Coadjutores tenham “contatos estreitos com a vida e as obras da comunidade”, “com iguais direitos e obrigações”.6 E está no espírito do Capítulo Geral XIX recordar que o coadjutor, segundo a expressão do Servo de Deus P. Rinaldi, “não é nem o segundo, nem o braço direito dos Sacerdotes, seus irmãos de religião, mas igual a eles, que na perfei- ção os pode preceder e superar”.7

A Congregação já caminhou muito nesse sentido, dando aos nossos irmãos coadjuto- res a possibilidade de uma colaboração mais eficiente e qualificada nos vários Conselhos e Grupos de direção e consultivos. Contudo, de pouco serviria tudo isso se não houvesse como suporte também uma abertura serena de diálogo em todos os momentos da vida de comunidade.

Tenho a mais viva certeza de que a compreensão recíproca da insubstituível e carac- terística função do coadjutor será incentivo válido para atuar e intensificar o diálogo.

5 Paulo VI, Discurso às Superioras Maiores dos Institutos Religiosos Femininos da Itália, “L’Osservatore Romano”, 13 de janeiro de 1967.

6 PC 15.

7 Atos do Capítulo Geral XIX, p. 67.

 

14.  Diálogo entre Anciãos e Jovens

Gostaria ainda de evidenciar a necessidade do diálogo entre Irmãos anciãos e Irmãos jovens.

De um lado é preciso humildade, apreço pela riqueza da experiência colhida no tempo, senso do próprio limite, confiança afetuosa, vontade de estudar e aprender de quem caminhou antes; de outro lado, amor, interesse, condescendência, ajuda, esforço para compreender as ansiedades e as motivações profundas das impaciências juvenis.

A esta altura é também oportuna a referência ao contraste que pode aflorar cá e lá entre gerações mais idosas e gerações mais jovens de irmãos. Esta tensão pode ser ori- ginada pelo amor, como disse em outra circunstância, e pode ser fruto de uma fidelidade à Igreja e à Congregação entendida de formas diferentes.

Não creio que estou sendo excessivamente otimista se afirmo que esta situação não é nova na vida da Igreja, embora hoje seja mais vivamente acentuada. Ela é superada com o respeito aos outros, com a busca apaixonada e sincera do bem e, enfim, com a submissão humilde e confiante no autêntico espírito religioso aos que pela Igreja e pela Congregação têm a autoridade e o dever de fazer a síntese entre opiniões e tendências diversas, tomar as decisões, dar as diretrizes.

O diálogo, também neste acaso, e entre ideias divergentes, conduzido segundo as boas normas, pode ser o instrumento que concilia e enriquece as partes opostas.

 

15.  Os frutos do diálogo

Percebo que o discurso se fez muito longo, enquanto eu teria outras “pessoas” do nosso diálogo a apresentar: os jovens, antes de tudo, que são a porção peculiar do nosso apostolado, e ainda os Professores que colaboram conosco no ministério da escola, com os quais muito frequentemente não há nenhum diálogo sistemático que os insira “mente, corde et animo” no nosso clima apostólico educativo salesiano, e ainda com os Cooperadores, os Ex-alunos, os fiéis...

Concluamos, portanto. De tudo quando dissemos nestas páginas ressalta com evi- dência o conjunto de frutos preciosos que provêm do diálogo “doméstico”, prático do nosso ambiente, da nossa família, em todos os níveis, com pureza de intenções e com método inteligente.

A comunidade verá as suas iniciativas enriquecidas pela inteligência, pela cultura, pela experiência de tantos irmãos.

As disposições relativas às várias atividades, que não caem do alto sem que tenham sido serenamente avaliadas, serão aceitas como fruto não do ponto de vista de alguém, mas da síntese que souber recolher o melhor do coração e da inteligência dos membros do Conselho, da Comunidade.

Consequentemente, os irmãos, sentindo-se membros ativos na construção da vida da comunidade, sentir-se-ão ao mesmo tempo membros corresponsáveis e, portanto, não só chamados a serem executores de ordens, mas cointeressados em torná-las ope- rativas, conhecendo bem os motivos que as determinaram.

Quão fecundo tirocínio será diálogo para os irmãos, especialmente para os jovens! Atuando-o, que amadurecimento se dará progressivamente entre os membros da co- munidade, que tomarão sempre mais consciência das infinitas dificuldades de soluções para os problemas, compreendendo a necessidade de estudá-los e ver os seus múltiplos aspectos, e se convencerão sempre mais que não é inteligente e útil “ter sempre razão em tudo”, vendo apenas o próprio ponto de vista limitado!

O diálogo, retamente entendido e sinceramente praticado será a escola mais eficaz para formar homens sábios e prudentes, respeitosos, abertos e realistas, adultos verda- deiros e completos, enfim, preparados gradualmente para a difícil arte de governar. Que fruto precioso para a vida da Congregação!

Compreende-se, então, qual o clima criado na comunidade com o diálogo assim rea- lizado e vivido. Nascerá um clima de união de corações, satisfação, confiança recíproca e estima, uma multiplicação, portanto, do resultado apostólico, um clima sereno e fami- liar de otimismo construtivo.

Tudo isso não é utopia irrealizável, mas uma meta atingível, como mostra a experi- ência; de fato, em não poucas comunidades já é uma realidade viva, mesmo em meio a inevitáveis carências humanas.

Isso tudo, com a vontade decidida e generosa de cada um de vós, espero-o vivamente e faço votos de coração, será neste ano uma realidade confortadora em todas as nossas casas.

Confio estes votos à nossa cara Auxiliadora, ao nosso dulcíssimo Pai; a prática da Es- treia do diálogo leve-nos em qualquer lugar a transformar cada comunidade nossa em autêntica família que na união dos corações se enriquece todos os dias para dar larga- mente o melhor de si às almas.

Ficarei muito grato pela vossa lembrança na oração; eu garanto a minha todos os dias e com todo o coração, por cada um de vós.

Vosso afeiçoadíssimo em J. C.

Luís Ricceri
Reitor-Mor

 

A RENOVAÇÃO

Padre Luís Ricceri
Atos do Conselho Superior 248

  1. Renovação: o seu significado autêntico – 2. Renovação no equilíbrio. – 3. Renovação “a partir de dentro” – Renovação prática. – 5. Renovação sem falsos compromissos. – 6. A renovação que os leigos nos pedem. – 7. A Renovação nas responsabilidades dos Superiores. – 8. Renovação na nossa consagra- ção a Deus. – 9. Dois Centenários.

Turim, 30 de abril de 1967

 

Caríssimos Irmãos e filhos.

Ao retorno de uma breve, mas intensa visita de encontros igualmente fecundos quanto cordiais na Península Ibérica, e antes de iniciar uma rápida viagem pela América Latina (30 de abril – 17 de maio), desejo entreter-me pessoalmente com cada um de vós, como numa conversa familiar.

Vários Irmãos escreveram-me para expressar reconhecimento e apreço pela minha carta anterior sobre o “Diálogo”; em várias Inspetorias fez-se uma cópia para cada Ir- mão.

Isso tudo me conforta porque o vosso interesse pelo tema é indicador da vossa von- tade de atuar as ideias, diretrizes e normas práticas que ele contém. As novas viagens que inseri na minha agenda têm substancialmente a mesma finalidade: através do con- tato pessoal com os Inspetores, Conselhos Inspetoriais, Diretores, Irmãos dos vários Pa- íses, na visão direta e concreta das situações e dos problemas locais, realizar aquela construtiva troca de ideias – o diálogo! – que cria a compreensão recíproca e se trans- forma em convicção para a generosa solidariedade operativa entre Centro e Periferia, entre Superiores e Irmãos.

 

1.  Renovação: o seu significado autêntico

Proponho-me, desta vez, expor-vos algumas ideias sobre uma das palavras que vão sendo repetidas incessantemente em nome do Concílio. Na verdade, é uma das suas palavras-chave: “Renovação”!

Devo acrescentar que também o Capítulo Geral – eco fiel do próprio Concílio – re- torna mais de uma vez a esta palavra e mais ainda ao conceito que ela comporta e con- tém.

Entretanto, como muitas outras palavras que fizeram história (liberdade, democra- cia, progresso, etc.) também ela suporta as interpretações e aplicações mais diversas e

– com frequência – mais opostas e mais arbitrárias, a serviço, diria, de mentalidades de todo pessoais, e – por que não dizê-lo? – também de desvios e verdadeiras deformações do significado genuíno da palavra “Renovação”.

Foi dito, sobre isso, que a Renovação desejada pelo Concílio – como aparece em de- zenas de textos – não é obra de um trator, de uma máquina escavadora que arrasta tudo que encontra pelo caminho, para poder refazer tudo desde as fundações.

A Renovação conciliar (e podemos acrescentar da Congregação) é, antes de tudo, uma obra construtiva, um conjunto de energias positivas que servem não para destruir todo um passado, como um furacão violento, mas para fazer reflorescer de nova e fe- cunda vitalidade a Igreja e a Congregação, como a primavera que, sem destruir a natu- reza invernal, a robustece, aquece e revigora, levando-a ao florescimento, promessa certa de frutos abundantes. Mais concretamente, a verdadeira renovação, na Igreja como na Congregação, articula-se em dois polos: a capacidade de olhar para trás (re- torno às fontes originais, como um “reconstruir-se nas fontes”) e, ao mesmo tempo, uma atenção vigilante aos “sinais dos tempos”.

Quem abandona um dos dois polos cai em um conservadorismo sem validade ou em uma falsa e destrutiva modernidade.

Enfim, a verdadeira e plena renovação é a síntese resultante do passado e do presente em vista do futuro.

Como se vê, o processo de renovação é uma ação vital, mas muito delicada, com- plexa, difícil, que exige inteligência e coragem, mas sempre iluminado pela prudência; numa palavra, a Renovação é atuada naquele equilíbrio ao qual somos chamados conti- nuamente pelo S. Padre.

 

2.  Renovação no equilíbrio

Há mais: justamente por ser vital e construtiva, a Renovação expressa pelo Concílio (como observa a Conferência Episcopal Austríaca) não só se move sempre pela via média da moderação, mas é guiada por uma constante preocupação de dualidade. Ou seja, sempre que retira alguma coisa (desgastada pelo tempo ou em todo caso não mais fe- cunda) a substitui por um elemento novo correspondente às exigências dos tempos.

De fato, continua a Conferência Episcopal Austríaca, o Concílio abre-se de um lado a novos métodos nas ciências bíblicas, mas afirma ao mesmo tempo que os evangelhos têm caráter histórico e transmitem a verdade sobre a vida do Senhor.

O Concílio abre as suas portas ao sacerdócio universal dos fiéis, mas fala também do sacerdócio oficial instituído pelo alto. Aprova o progresso, mas fala depois da sua ambi- valência para o bem e para o mal. Na liturgia, exige uma reforma onde se deu o alhea- mento da realidade pelas mudanças culturais e restabelece o antigo jus liturgicum dos Bispos; mas indica também os limites desse jus liturgicum, do qual ninguém é dono.

O Concílio também fala da colegialidade dos Bispos, e integra assim o primado do Papa; na colegialidade, porém, o Papa não é apenas primus Inter pares, mas primus su- pra pares, fixando dessa forma os limites também dessa instituição.

É claro que quem só retira sem substituir adequadamente, não só deixa de renovar, como cria um vazio, destrói. Equilíbrio, dualidade e construtividade são, portanto, as bases indispensáveis da renovação; o que comporta, consequentemente, uma atuação harmoniosa, integral, ordenada, nem arbitrária, nem à mercê da iniciativa e da interpre- tação de quem quer que seja, mas guiada progressivamente por quem tem autoridade e responsabilidade.

Logicamente, derivam desses princípios claros muitas consequências práticas que po- deis facilmente auferir, referindo-vos também a situações locais. Dispenso-me por isso de descer a particulares, mas ainda é preciso dizer alguma coisa não menos importante.

 

3.  Renovação “a partir de dentro”

A Renovação requerida pela Igreja e pela Congregação é, hoje, antes de tudo, pessoal e espiritual: a partir de dentro.

Não se aceitando esta indispensável premissa, ter-se-á apenas a pretensão de cons- truir, mas no vazio, far-se-á apenas uma ação ilusória.

O Concílio todo o repete a cada passo. Paulo VI e a Hierarquia não se cansam de insistir neste princípio; o nosso Capítulo Geral disse-o com palavras claras e fortes. Leia- mos o Decreto Perfectae Caritatis sobre a renovação da vida religiosa, sobre a formação, sobre a vida do sacerdote, sobre as Missões, etc. Baste por todas uma única citação que nos chama diretamente em causa, como religiosos, e é como uma síntese desses princí- pios basilares.

“Dado que a vida religiosa se ordena antes de tudo a que os seus membros sigam a Cristo e se unam a Deus, mediante a profissão dos conselhos evangélicos, deve pesar-se seriamente que as melhores adaptações às necessidades do nosso tempo não sortirão efeito, se não forem animadas pela renovação espiritual, que sempre, mesmo na pro- moção das obras exteriores, deve conter a parte principal” (PC 2).

Quase a integrar o texto conciliar, ouçamos uma palavra que foi dirigida a nós Salesi- anos pelo próprio Paulo VI, no discurso aos membros do Capítulo Geral XIX:

“Erraria quem interpretasse o Concílio como uma negligência dos empenhos interio- res da Igreja para a fé, a sua tradição, a sua ascética, a sua caridade, o seu espírito de sacrifício e a sua adesão à palavra e à Cruz de Cristo, e como indulgente aquiescência à frágil e volúvel mentalidade relativista do mundo sem princípios e sem fins transcenden- tes, como um cristianismo mais cômodo e menos exigentes! O Concílio tende, sim, a uma disciplina mais inteligente, e a maneira mais atual de a Igreja entrar em contato com a alma humana e com a sociedade hodierna, não, porém, em detrimento e sim para conforto da sua fidelidade interior a Cristo e do seu generoso testemunho!” (ACG XIX, p. 302s.)

Parece-me obrigatório e sumamente útil – em momentos de confusão e perturbação nos quais vivemos – convidar-vos a refletir seriamente sobre essas palavras que o Pon- tífice dirige justamente aos filhos de Dom Bosco. E podemos recordar, para nosso con- forto, que os próprios membros do Capítulo Geral XIX na mensagem que enviaram a todos os Salesianos do mundo, como que antecipando a palavra do Papa, tiveram pala- vras graves e acaloradas diante do perigo de uma Renovação da Congregação pura- mente estrutural e exterior, ou pior, de um relaxamento demolidor que se apresente com a falsa etiqueta da Renovação.

Eis as palavras da mensagem: “Todas as mudanças exteriores e as novas orientações por mais excelentes que possam ser, nada valerão, se as nossas almas de religiosos após- tolos não forem afervoradas e profundamente renovadas. É à renovação da nossa cons- ciência religiosa e apostólica que, nesta hora tão importante, nós convocamos todos os Irmãos e Noviços, do mais jovem ao mais venerando: Sacerdotes, Coadjutores e Cléri- gos. Eis o trabalho essencial deste renascimento: reavivemos em nós o sentido da nossa consagração religiosa a Jesus Cristo e a Deus, nosso Pai. Adquiramos uma mais firme convicção dessas verdades, que sustentam e animam a nossa vida concreta de todos os dias” (ACG XIX, p. 347).

 

4.  Renovação prática

Sendo estes os princípios que honestamente cada um de nós deve reconhecer, deve- mos ter a coragem de olhar paras as realidades que derivam deles.

Concretamente, como nós vivemos esta Renovação “a partir de dentro”?

Com praticamos a meditação, por exemplo, que é o alimento substancioso e insubs- tituível desta espiritualidade, especialmente hoje que o uso de um livro pessoal no-la torna mais interessante e comprometida?

E, ainda, também fora do tempo de meditação, as leituras, especialmente da Escri- tura, substanciosas e estimulantes, encontram tempo ao longo do nosso dia? Precisa- mos reconhecê-lo lealmente: o desgaste fatal que o trabalho cotidiano, muitas vezes exaustivo, exerce sobre o espírito, as mesmas dificuldades que o nosso ministério en- contra todos os dias, o perigo de um insensível e lento habituar-se ao clima e à menta- lidade do mundo com o qual, muitas vezes, devido ao próprio ministério devemos entrar em contato (e que, contudo, hoje penetra por mil caminhos na Casa e na comunidade religiosa) são todas ocasiões e motivos de enfraquecimento da nossa vida espiritual, en- tendida como crescimento na virtude e no espírito de perfeição, como busca de Deus e união de amor à Sua vontade.

Pois bem, ai de nós se essa realidade tão dispersiva não nos levar a sentir sede da ajuda que só Deus pode dar, se não nos levar a encontrar no contato pessoal com Deus, como diz Carrel, aquele átomo da sua onipotência que supre a nossa fragilidade e fra- queza!

Devemos reagir à tendência de reduzir a piedade apenas à simples e só celebração litúrgica, esquecendo o que o mesmo Concílio recomendou claramente: “A participação na sagrada Liturgia não esgota a vida espiritual. O cristão, chamado a rezar em comum, deve entrar também no seu quarto para rezar a sós ao Pai, segundo ensina o Apóstolo, deve rezar sem cessar” (SC 12). E se isso vale para o simples cristão, o que dizer de uma alma consagrada?

Sem a meditação que faz com que Deus viva em nós, aprofundando os seus mistérios, também a Santa Missa e toda a liturgia, foi dito com razão, podem reduzir-se a um su- ceder-se frio de gestos e leituras, a certo esteticismo, a certa espetacularidade, esvazia- das de toda a riqueza de que os divinos mistérios são justamente transbordantes. E, enfim, o tradicional princípio ascético reunido na expressão clássica “Contemplata aliis tradere”, hoje mais do que nunca é a fonte de todo apostolado. Temos provas docu- mentais disso todos os dias, positivas e infelizmente também negativas.

Vemos a magnífica incidência também sobre as almas modernas do apóstolo que vive a sua fé e a alimenta em profundidade.

Penso neste momento com viva comoção em tantos nossos irmãos Sacerdotes e Co- adjutores que, justamente por viverem profundamente e animarem substancialmente o seu Sacerdócio e a sua Consagração, conseguem obter das almas – mesmo em ambi- entes difíceis e muitas vezes hostis – uma correspondência generosa, constante, eficaz, transformando não poucas delas em preciosas e convictas colaboradoras no apostolado.

 

5.  Renovação sem falsos compromissos

Infelizmente, porém, acontece ouvir falar não raramente, também na nossa família, de crises e de quedas fatais de irmãos nossos, jovens ou menos jovens, que talvez eram admirados pelos dotes humanos, pelas muitas atividades, por aquilo que parecia zelo de ministério.

Isso não quer dizer que se deva condenar ao ostracismo o justo sentido de moderni- dade, que sabe usar alguns instrumentos de apostolado sugeridos pelos tempos, para levar exatamente mediante esses meios, animados pela caridade, a mensagem evangé- lica às almas e estas a Cristo.

O erro está em que muitas vezes o uso desses instrumentos acabar sendo não uma ponte lançada entre Cristo e as almas, mas motivo de evasão no qual se inibe a ação do apostolado, e nesse caso, na prática, o meio se substitui ao fim: o apóstolo perde de vista e frustra a finalidade, desperdiça o tempo em algumas atividades estéreis, com a ilusão de fazer obra de bem quando na realidade não constrói nem para si nem para as almas.

Parece-me muito sábio e pertinente ao nosso discurso aquilo que afirmam dois co- nhecidos escritores de espiritualidade religiosa e sacerdotal. “A ‘presença no mundo’ do cristão como tal (a fortiori do apóstolo-sacerdote ou leigo) não terá valor, se ele não chegar a fazer com que o próprio Cristo esteja presente nele” (Walgrave). “O nosso

apostolado não pode limitar-se a garantir presenças apenas genéricas e inconclusivas no mundo contemporâneo, presenças que deixam o tempo que encontram quanto à difusão da verdadeira fé e da prática autêntica da moral cristã” (Colosio).

A “presença”, então, do salesiano em atividades não diretamente apostólicas em que muitas vezes deve estar presente e, quando necessário, de modo corajoso e – por que não? – também brilhante, será de acordo com a obediência, sempre regulada por um grande sentido de oportunidade e medida desde uma visão clara e movida por uma von- tade concreta, eficaz e sincera, de chegar às finalidades realmente apostólicas que, por si só, podem justificar e tornar fecundas a presença do Salesiano. Este, é bom recordar, manterá antes de tudo e em qualquer situação, a figura de Sacerdote ou de Consagrado, integralmente, sem lacerações e sem compromissos ou condescendências.

Algumas crises, sempre dolorosas para todos, podem parecer inexplicáveis. Mas olhando bem, no profundo das coisas, constata-se que aquela alma, afastando-se pro- gressivamente da água viva da Fonte, vinha secando lentamente: ao apóstolo, substitu- íra-se o professor, o construtor, o conferencista, o homem de negócios; aos poucos o ideal sobrenatural, numa progressiva desoladora falta de foco, tornara-se sempre mais ofuscado, substituído pelos fascinantes, mas venenosos substitutos que o mundo de hoje oferece largamente: o dinheiro, o prazer, a liberdade sem limites e, depois... o passo final que causa escândalo, mas que é apenas o último dos muitos que levaram o apóstolo com fatal declínio à ruína.

Como é importante, portanto, Irmãos caríssimos, que tenhamos a preocupação de alimentar cotidiana e substancialmente a nossa alma com muitos dos meios que a Igreja e a Congregação põem à nossa disposição; no interesse nosso e das almas às quais – hoje como nunca – não podemos dar águas amargas de cisterna, mas água límpida e restauradora de fonte pura. Apenas essas reservas dão frutos apostólicos e espirituais. Um capelão militar lamentava-se com o seu coronel de ter tentado de tudo para inte- ressar os seus soldados, mas sem sucesso: cinema, bar gratuito, esportes, jogos com prêmios, etc. O coronel, depois de refletir um pouco, disse ao capelão: “E se tentasse falar um pouco de religião aos meus homens?”

É uma sugestão que, completando todos os outros destaques acima, pode levar-nos a algum exame de consciência útil sobre os apostolados indiretos e as nossas “presen- ças” no mundo contemporâneo, em muitos ambientes juvenis ou não, de homens ou de mulheres.

 

6.  A Renovação que os leigos nos pedem

Sobre isso, permiti-me que vos diga ainda uma palavra.

A Renovação “a partir de dentro” no-lo pedem, e com clareza e decisão própria dos leigos de hoje, os nossos fiéis, os jovens. Ouvi alguns trechos de respostas de leigos – de todas as camadas – a uma pesquisa sobre o tema “Como gostarias que fosse o Sacerdote de amanhã”. É interessante ver a convergência substancial das respostas.

Não se pede nelas que o Sacerdote de amanhã (e vale bem para hoje!) seja, por exem- plo... um brilhante tocador de guitarra elétrica ou conheça de memória as regras do futebol ou se vista com roupas civis quase para confundir-se com eles; ou, segundo uma expressão bastante irônica, que more no automóvel, correndo sem parar para encon- tros, excursões, negócios e outras coisas. Pede-se dos Sacerdotes bem outras coisas! Uma senhora, deputada ao parlamento do seu país, diz textualmente: “O Sacerdote co- nheça o costume da gente deste nosso tipo de civilização, que não é certamente cristã, mas não participe dela, não a assimile, não a imite, não a compartilhe, e nem sequer a justifique. Não se torne burguês, não se proletarize, não se politize, porque, se é verdade que ele é Sacerdote destes tempos, não é verdade que ele é homem destes tempos”.

Um professor universitário diz: “ O Sacerdote não ignore os aspectos nem despreze os instrumentos da vida contemporânea, mas jamais tenha o culto da modernidade. Seja culto, mas saiba que não é com a cultura que se conquistam as almas; vale mais o amor, a compreensão, a compreensão que nenhum livro pode dar”.

Outra personalidade política, insigne figura de estudioso, assim responde: “O Sacer- dote seja inteligentemente aberto às inovações, mas sem abandonar a sabedoria da tra- dição, e esteja convicto na teoria e na prática do primado da contemplação e da oração”.

E, enfim, o pensamento de um grande escritor: “Mais se alimenta a espiritualidade do clero e se aperfeiçoa o seu magistério e ministério, mais aumenta a sua incidência social. Só o Sacerdote – com a exemplaridade da sua vida e a austeridade dos seus em- penhos – pode salvar da progressiva desintegração do costume moral”.

Não é preciso qualquer comentário aos trechos citados, mas me parecem dignos de muita reflexão da nossa parte: os leigos pedem-nos claramente antes de tudo um Sa- cerdócio e uma Consagração (este discurso vale evidentemente também para os carís- simos coadjutores) feitos de coerência total, de espiritualidade profunda, acompanha- dos da sensibilidade eficaz aos sinais dos tempos. Basicamente, os leigos pedem a cada um de nós a renovação, mas como ela é entendida pelo Concílio, pela Hierarquia, pela Congregação.

Os jovens, depois, segundo o estilo deles, são ainda mais exigentes e sem meios ter- mos em relação a nós.

Os alunos de um nosso instituto pré-universitário, cujos professores são todos sacer- dotes, foram convidados a responder com liberdade à seguinte pergunta: “Como dese- jarias que fosse o teu professor?”

A resposta que tem maior pontuação é do seguinte teor: “Gostaria que o meu pro- fessor fosse sempre sacerdote e totalmente sacerdote; gostaria que, mais do que ser professor, se preocupasse em seu nosso ‘verdadeiro amigo’. Preferiria também um bom professor leigo, para que o sacerdote pudesse fazer comigo toda a sua parte de sacer- dote”.

Devemos agradecer a esses caros jovens, que nos confessam ter sede de “amizade sacerdotal” e exigem que o salesiano seja, antes de tudo e essencialmente, o ministro de Deus, o Educador que construa neles um sólido e convicto cristianismo.

 

7.  A Renovação nas responsabilidades dos Superiores

Não posso concluir sem dirigir uma palavra àqueles que têm a missão primeira de realizar em cada indivíduo e nas nossas comunidades essa autêntica Renovação. Os Su- periores locais, Inspetores e Diretores, têm uma parte insubstituível, ou melhor, a não leve responsabilidade de ajudar – verbo et opere – os seus Irmãos a realizarem essa re- novação pessoal. Primeiramente, na mentalidade que deve abrir-se, transformar-se e formar-se em sintonia fiel com o verdadeiro espírito do Concílio e do Capítulo Geral; e, depois, na prática de tudo que é pedido por essa autêntica Renovação: na vida e piedade comunitária, na estima e observância dos votos, na ação educativa corresponsável, no governo dos Irmãos, no ministério sacerdotal, em todo o nosso apostolado.

Cabe primeiramente aos Superiores, com o prestígio insubstituível do próprio exem- plo, iluminar, guiar, encorajar e corrigir, quando preciso, de modo a evitar desvios, in- temperanças e arbítrios que nada têm a ver com a autêntica Renovação, antes a esva- ziam e anulam.

Compreendo que este não é um trabalho fácil para os Superiores. É preciso sabedo- ria, abertura, prudência e muita coragem; diria ainda muito sacrifício, porque com fre- quência o Superior para realizar o serviço específico que a Igreja lhe pede neste mo- mento, deve ir contracorrente, deve pagar pessoalmente. Mas os interesses da Igreja e da Congregação valem bem estes sacrifícios; e os Superiores saberão dar o sinal con- creto do seu sincero e ativo amor aos Irmãos e antes ainda a Cristo, cabeça viva da Igreja que se renova.

 

8.  Renovação na nossa consagração a Deus

E chegamos à conclusão.

Hoje, tudo nos convida urgentemente a atuar em profundidade a nossa renovação espiritual. Dela haveremos de haurir a luz, a segurança e a coragem – três componentes insubstituíveis – na ação de reexame do nosso apostolado tão essencial para atuar uma adequação construtiva aos sinais dos tempos que a Igreja e a Congregação pedem ins- tantemente a cada um de nós.

Recordemos o que disse com autoridade o Papa João. As suas corajosas, audaciosas, muitas vezes imprevisíveis iniciativas e aberturas têm a sua explicação no “Diário da alma”.

Toda a obra do Papa João, que conquistou a difícil humanidade do nosso século, tem suas raízes na sua cristalina e profunda espiritualidade, na sua vida de fé.

É preciso que todos, jovens e não jovens, que anseiam por uma ação renovada e re- novadora, nos convençamos da realidade e da força desta lei. É assim que tornamos vivo o Concílio, é assim que respondemos ao grave apelo do nosso Capítulo Geral. Nos retiros mensais e trimestrais, nos grandes retiros anuais, vejamos com senso de responsabili- dade e coragem em que medida e de que modo nós o estamos atuando. Recordemos o diálogo acontecido exatamente há cem anos entre Dom Bosco e o ministro Ricasoli em Florença. Naquela ocasião, o nosso Pai, enquanto define sem meios termos e compro- missos a sua personalidade de Sacerdote integral, deu a nós, seus filhos, a marca a re- produzir fielmente. Dom Bosco, sempre padre e totalmente padre, onde quer que es- teja, diante de quem quer que seja, dê-nos a força e a luz de viver em perfeita coerência o nosso Sacerdócio e a nossa consagração para dar a nossa positiva, embora humilíssima contribuição para a construção da Igreja no mundo.

 

9.  Dois Centenários

Antes de encerrar esta minha carta, desejo dar-vos duas notícias que serão certa- mente proveitosas e do vosso agrado.

Em agosto próximo ocorrerá o IV Centenário do nascimento do nosso Patrono S. Fran- cisco de Sales. O S. Padre publicou uma interessante Carta Apostólica pela ocorrência. Nós que nos sentimos tão ligados ao santo Bispo de Genebra e ao seu espírito gostaría- mos de recordar devidamente o acontecimento. Encontreis nas “Comunicações” destes “Atos” várias iniciativas que pretendem celebrar dignamente a ocorrência centenária. Estou certo de que as celebrações – embora na variedade de formas que tomarão nas diversas partes da Congregação – enquanto serão uma devota homenagem ao Santo de quem Dom Bosco quis que tomássemos o nome e, ainda mais, o espírito, serão também motivo para nos animar a olhar com interesse renovado ao nosso Santo Patrono, que, como diz Paulo VI, “soube com o profundo intuito da sua inteligência antecipar as deli- berações do Concílio”.

Em 9 de junho de 1968 ocorrerá o Centenário da Consagração da Basílica de Maria Auxiliadora de Turim.

Todo Salesiano sabe o que essa Igreja significa para a Congregação e para toda a nossa família. Conhecemos todos a íntima e profunda ligação entre o nosso Pai e a Vir- gem Auxiliadora, o que Dom Bosco fez para construir-lhe este monumento, de quais e quantos prodígios a Basílica foi motivo e teatro para a glória de Maria e para dar crédito à obra e a santidade de Dom Bosco.

Recordemos bem que a Basílica de Maria Auxiliadora é a “Alma Mater” da Congrega- ção, e não só o centro irradiador da devoção mariana levada ao mundo pelos filhos de Dom Bosco, mas também um centro de irradiação apostólica, do qual, há quase um sé- culo partem todos os anos apóstolos e missionários pelos caminhos do mundo com a bênção de Maria Rainha dos Apóstolos.

O ano centenário deverá marcar, para a Congregação e para a Família Salesiana in- teira, um renovado fervor mariano à luz e no espírito do Concílio.

Lemos no Decreto sobre o apostolado dos leigos: “Todos os cristãos honrem devotis- simamente (a Bem-Aventurada Virgem Maria) e entreguem aos seus cuidados maternos a própria vida e o próprio apostolado” (n. 4). E a Constituição Lumen Gentium afirma por sua vez: “a verdadeira devoção (a Maria) não consiste numa emoção estéril e passageira, mas nasce da fé, que nos faz reconhecer a grandeza da Mãe de Deus e nos incita a amar filialmente a nossa mãe e a imitar as suas virtudes... Honrando a mãe, melhor se co- nheça, ame e glorifique o Filho, por quem tudo existe e no qual ‘aprouve a Deus que residisse toda a plenitude’ e se cumpram mais perfeitamente os seus mandamentos” (n. 66-67).

As iniciativas que para celebrar dignamente a ocorrência receberão inspiração destas ideias e diretrizes conciliares.

Cada Inspetoria, cada casa, cada irmão desejará estar ativamente presente na filial homenagem Àquela que foi Mãe e Mestra do nosso Pai e de toda a nossa Família.

Encontrareis ainda sobre este tema as primeiras comunicações em outra parte dos “Atos”.

Entrego estas páginas à Virgem Auxiliadora: por intercessão do nosso Patrono e do nosso dulcíssimo Pai, ela as torne agradáveis e frutuosas às vossas mentes e aos vossos corações, para o bem da vossa alma e daquelas das quais sois guias e pastores.

Rezai muito por mim e pelos Superiores do Conselho.

Eu vos asseguro a minha cotidiana afetuosa recordação “in fractione panis”. Vosso afeiçoadíssimo em C. J.

Luís Ricceri
Reitor-Mor

 

NO IV CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE SÃO FRANCISCO DE SALES

 Luís Ricceri
Atos do Conselho Superior 249

  1. São Francisco de Sales, mestre de espiritualidade e modelo de educação em clima de liberdade. 1.1. O problema da liberdade; 1.2. Construir as almas a partir de dentro; 1.3. Validade perene. 2. São Francisco de Sales, mestre de espiritualidade e modelo de educação em clima de diálogo: 2.1. Bondade com todos;

2.2. A caridade sempre conquista. 3. São Francisco de Sales, mestre de espiritualidade e modelo de edu- cação em clima de amabilidade: 3.1. A caridade é a perfeição do amor; 3.2. A educação é obra do coração.

  • São Francisco de Sales, modelo de Dom Bosco e nosso num apostolado sempre mais atual: a im- prensa. 4.1. Para defender e promover a fé; 4.2. Uma empresa que a Providência me confiou; 4.3. Como devemos regular-nos? – 5. Conclusão.

Turim, 21 de agosto de 1967

IV Centenário do nascimento de S. Francisco de Sales

Caríssimos Irmãos e Filhos.

Esta carta traz a data do IV Centenário do nascimento de S. Francisco de Sales. Nesta feliz ocorrência, tive a alegria de representar-vos, com todo o Conselho Superior, nas solenes celebrações que se realizaram em Annecy.

Quis aplicar a S. Missa, concelebrada na Visitação em honra do nosso Patrono, pelas necessidades da Congregação nestes momentos de grande responsabilidade, por cada um de vós e, especialmente para que, mediante a intercessão do santo Doutor e Após- tolo, cada de nós tenha forças para atuar a renovação espiritual pessoal, que é a base de toda a ação renovadora postulada pela Igreja e pela nossa amada Congregação.

Com a nossa presença em Annecy, vós o compreendeis, quisemos homenagear o nosso patrono, mas não só; quisemos reafirmar o retorno às origens ao qual somos con- vidados pelo Concílio. E S. Francisco de Sales, do qual Dom Bosco tomou para a sua Con- gregação não só o nome, mas também o espírito, é para nós a fonte que jorra água viva, da qual bebeu largamente o nosso Pai; nela também nós somos convidados a desseden- tar-nos, pois a riqueza que nos foi deixada por um grande mestre de vida como S. Fran- cisco de Sales não se esgota com o tempo, assim como da rocha viva continua a jorrar pelos séculos a água de fonte pura.

Justamente em tributo a essa realidade Paulo VI na sua carta apostólica Sabaudiae Gemma, publicada por ocasião deste Centenário, quis recordar a nossa humilde Socie- dade como irradiação genial do espírito do grande Bispo de Genebra no mundo mo- derno.

É exatamente o pensamento do Servo de Deus P. Filipe Rinaldi que no distante 1924 assim se exprimia: “S. Francisco de Sales é um educador singular de perfeição, e suas

obras são todas permeadas daquela pedagogia que dois séculos depois o nosso Funda- dor admirável e prodigiosamente imprimia, não mais no papel, mas na Sociedade por ele criada para a salvação da juventude, e por ele batizada com o nome de “Salesiana” justamente para indicar aos futuros sócios a fonte onde bebê-la para tê-la sempre abun- dante e vital” (ACS 1924, p. 175).

A ocorrência que celebramos neste ano é ocasião muito propícia para haurir nova- mente do santo Protetor, conforme o apelo do Vaticano II e do Capítulo Geral XIX, novas riquezas e novo impulso na atuação da pedagogia e da espiritualidade salesiana, cujos princípios, como escrevia o P. Albera, “são os mesmos para S. Francisco de Sales como para Dom Bosco”.

Aqui, desejo deter a vossa atenção sobre alguns aspectos desta pedagogia e espiritu- alidade, que parecem tão atuais, convidando-vos a completar e aprofundar pessoal- mente o seu conhecimento através das muitas publicações já existentes ou que, um pouco em todos os lugares, se editam neste ano centenário.

 

1.  S. Francisco de Sales, mestre de espiritualidade e modelo de educação em clima de liberdade

 

  • O problema da liberdade

O problema da liberdade tornou-se, hoje, central na vida humana e social. A ascensão das classes humildes, o crescimento do nível cultural, a tomada de consciência mais agu- çada dos próprios direitos diante da autoridade, a mesma postura da Igreja no Vaticano II, acentuaram de tal maneira essa ânsia de liberdade, inata no coração humano, a ponto de fazê-la ser uma força irrefreável.

Isso tudo passou, fatalmente, do campo social ao campo educativo, à mesma vida da Igreja e à vida religiosa, e propôs novamente, de forma às vezes violenta e exasperada, o contraste entre autoridade e liberdade, entre pais e filhos, entre educadores e edu- candos, entre superiores e súditos.

Para falar apenas dos jovens, a liberdade de que eles gozam hoje, no seio da família e na sociedade, não tem qualquer comparação com aquela de que gozavam os jovens nos tempos de S. Francisco de Sales e de Dom Bosco.

As dificuldades da missão educativa cresceram desmesuradamente, e não há educa- dor que nunca tenha feito uma sofrida experiência delas.

Talvez nós Salesianos, pelas concepções geniais de Dom Bosco, sentimos menos o seu contragolpe, mas não é menos verdade que também para nós a adaptação a esse novo clima é, muitas vezes, fonte de perplexidade e de preocupação.

Nesta situação delicada vêm ao nosso encontro o exemplo e o ensinamento de S. Francisco de Sales. Ele, que viveu a sua juventude na liberdade tumultuada e transbor- dante dos ambientes universitários de Paris e de Pádua, pôde moderar-se livre dessas

situações e tirou delas uma preciosa experiência que soube traduzir em diretrizes inte- ligentes, adequadas a todos os tempos, mas especialmente àqueles em que a liberdade tende a ultrapassar os limites dos costumes e que é preciso ter a própria defesa moral não mais de fora, mas de dentro de nós, dado que as estruturas sociais perderam a sua eficácia de proteção.

Vincent, na sua célebre obra Saint François de Sales, directeur d'àmes, assim sintetiza o ensinamento do Santo sobre o tema:

“S. Francisco de Sales prefere construir as almas, se se pode dizer assim, a partir de dentro, fazendo-as viver com maior vigor do que preservá-las do perigo. Um organismo sadio, cheio de rico humor vital, elimina por si mesmo os venenos que possam atentar à sua vida. Demos antes de tudo o máximo de impulso vital a esta que é a alma, muna- mos o edifício de uma forte armadura interior, e não temamos além da medida nem a torrente nem a tempestade. Outros começem a desviar ou interromper a força da tor- rente: o Bispo de Genebra põe em segundo lugar essa precária empresa... Ele põe no coração do cristão o amor divino e, confiando na vitalidade que dele deriva, espera sem medo as provas que possam vir...”.

  • Construir as almas a partir de dentro

Ele não tem qualquer simpatia pela educação “estufa aquecida”, que coloca fora de nós as condições da nossa segurança. Ele sabe que “a virtude da força e a força da vir- tude nunca é adquirida em tempo de paz, enquanto não formos experimentados pelas tentações contrárias”.

Temos nestas linhas da pedagogia salesiana a linha que a Igreja conciliar indica hoje para a formação tanto juvenil como eclesiástica e religiosa. E convém tê-la presente. Estruturas, prescrições, proibições de todos os tipos de pouco servem, especialmente hoje, se o formador, como ele se chame, visa obter apenas a execução de normas práti- cas e de ordens. A formação, hoje mais do que nunca, para que seja verdadeira e sólida, deve “construir as almas a partir de dentro”, criando convicções profundas e através delas obter que a vontade do formador se torne vontade do educando. Sem isso, arrisca- se facilmente a construir no vazio e expõe-nos a desilusões e falimentos. Os muitos que têm responsabilidades de formação – Confessores, Mestres de Noviços ou Diretores, Catequistas ou Adidos aos Oratórios – tomem concretamente ciência desta realidade.

Isso não significa que seja preciso abater estruturas, defesas e prescrições, esque- cendo os ensinamentos de Dom Bosco sobre o sistema preventivo. Também o nosso Patrono, com a sua grande experiência, o diz. Vincent, de fato, observa:

“Evidentemente, S. Francisco de Sales não deixa de tomar as medidas indispensáveis de proteção, especialmente aquelas exigidas por uma virtude nascente ou em formação, mas ele tem como certo que o amor é uma força orgânica que por si só nos imuniza”.

Faz-nos pensar no princípio de S. Agostinho: “Ama et fac quod vis”.

É claro que se trata daquele amor profundo e sobrenatural que identifica a sua von- tade com a vontade de Deus, pelo que tem todo o seu valor o que S. Francisco de Sales escrevia à Chantal: “Não se deve amar por temor, mas temer por amor”; e o que ele ainda repetia a Dom Camus: “Na galera do amor divino não existem forçados, todos os remadores são voluntários”.

Fundamentado nestes princípios, ele só dava ordens em forma de conselho e de ora- ção. Tinha uma veneração especial pelas palavras de S. Pedro: “Apascentai o rebanho, não com a força, mas livremente e voluntariamente”.

Não podia suportava os espíritos absolutos que querem ser obedecidos por amor ou pela força, e querem que todos se curvem às suas ordens.

O mesmo bispo Camus conta: “Lamentando-me certo dia com o Santo de certos obs- táculos que se interpunham aos meus planos em favor das almas, ele me disse: Como sois déspota! Quereis caminhar nas asas do vento, deixai-vos transportar muito pelo zelo, e não percebeis que vos irritais. Quereis fazer mais do que Deus? Cortais pela di- reita e por detrás como dono dos corações; Deus, porém, que tem a todos em sua mão, não faz assim. Ele suporta as resistências que se fazem ao seu Santo Espírito e as rebe- liões que se fazem contra sua inteligência. Não deixa de insistir e de chamar os pecado- res, embora rejeitem os seus apelos e lhe digam: Retirai-vos, pois não queremos seguir os vossos caminhos. Assim fazem também os nossos Anjos da Guarda, que, mesmo afas- tando-nos de Deus com as nossas iniquidades, todavia não nos abandonam. E onde en- contrareis modelos melhores do que estes?”.

  • Validade perene

Ao ler estas poucas citações surgem naturalmente duas observações. A primeira é esta: os conceitos e as diretrizes de formação pedagógica e espiritual do Bispo de Gene- bra, expressa no estilo inconfundível, mesmo não sendo o de hoje, é sempre sugestivo, concordando plenamente com o Vaticano II e permeando à evidência alguns documen- tos conciliares; citemos, por exemplo, aquele sobre a formação do Clero, o Perfectae Caritatis e o outro sobre a Educação cristã.

Seria interessante evidenciar estas consonâncias, mas seria longo e parece-me esca- par da natureza desta carta.

A segunda observação é esta: a leitura das máximas, dos critérios, dos exemplos de

  1. Francisco de Sales citados acima faz-nos vir espontaneamente diante dos olhos as figuras de dois Personagens tão caros ao nosso coração que, à distância de séculos, re- viveram e irradiaram o seu espírito: o nosso Pai Dom Bosco e o Papa João.

Estas duas grandes figuras com o sucesso (e que sucesso!) do seu apostolado todo inspirado em S. Francisco de Sales, embora em situações históricas e sociológicas tão distantes e diversas, falam-nos da perene validade do espírito do Santo de Genebra, fundado na força do Amor e da Graça, ou melhor ainda, no Evangelho.

 

2.  S. Francisco de Sales, mestre de espiritualidade e modelo de educação em clima de diálogo

 

  • Bondade com todos.

Sobre este tema, hoje tão importante e vital, já vos entretive nos Atos do Conselho, e espero que as ideias ali expostas vos sirvam para uma atuação autêntica do diálogo de que tanto se fala, para vivê-lo em todas as suas dimensões sem deformações e interpre- tações práticas... ad usum delphini.

Vou limitar-me aqui a citar alguns exemplos e ensinamentos do nosso Protetor, inte- grados com os do nosso Fundador e Pai Dom Bosco.

A pregação é certamente uma forma de diálogo com os ouvintes, hoje particular- mente exigentes e sensíveis. Pois bem, segundo S. Francisco de Sales, a pregação deve ser humilde e delicada de coração. Ele tinha habitualmente aversão aos pregadores que “gritam e ameaçam continuamente”.

“Eu gosto – dizia – da pregação que brota do amor do próximo mais que da indigna- ção, mesmo em se tratando dos Huguenotes, que é preciso tratar sempre com grande compaixão e piedade, sem, porém, adulá-los”. Não vos parece ouvir a voz do Papa João?

Nas discussões com os heréticos, atesta G. Rolland, ele não se comportava nunca de modo a irritá-los ou a produzir confusão neles. Por isso, era com frequência censurado pelos católicos, porque, segundo eles, tratava os adversários muito delicadamente. Ele, porém, respondia que é preciso a salvação deles e não a sua confusão.

O modo de S. Francisco de Sales dialogar com os heréticos é descrito assim pelo bispo Camus: “Deixava que os reformados falassem da sua religião, e o fazia com a maior pa- ciência, sem manifestar tédio ou desprezo pelas impertinências ou ridicularizações que fizessem. E assim os dispunha a, depois, escutá-lo. Quando paravam de lhe falar, preo- cupava-se em não perder minutos tão preciosos, e por isso não confutava as suas obje- ções, mas, apropriando-se do argumento em questão ou a algum outro artigo de fé que reputasse mais importante, expunha com brevidade, simplicidade e clareza a doutrina da Igreja católica, sem dizer uma palavra de controvérsia, como se fizesse uma cate- quese. Com paciência incrível suportava as interrupções e os erros daqueles pobrezi- nhos e, sem se descompor continuava a falar, tão longo lhe dessem tempo”.

Mas dizia com frequência: “Parece incrível como são belas as verdades da nossa fé para quem as considera com tranquilidade e calma! Acontece, muitas vezes, que nós as sufocamos pela fúria dos adereços. Falar com simplicidade é meio excelente para insi- nuar a persuasão”.

  • A caridade conquista sempre

É interessante a esta altura ver o método que Dom Bosco usava para tratar com os Protestantes. Encontramos uma identidade impressionante de estilo e, antes ainda, de pensamento. Leiamos o que o P. Lemoyne escreve sobre isso:

“Nas discussões com os Protestantes, alguns nem sempre tinham maneiras corteses para com ele, mas ele nunca deixou de tratá-los com doçura. Esta, dizia ele, é a virtude mais necessária, especialmente com os heréticos. De fato, percebendo que se quer pre- valecer sobre eles, então se preparam, não para conhecer a verdade, mas para combatê- la. As acaloradas contestações fecham a porta do coração deles, enquanto a afabilidade o abriria. De fato, S. Francisco de Sales, embora habilíssimo na controvérsia, conquistava mais heréticos com a sua doçura do que por meio da ciência. A força de uma discussão sem a doçura nunca converteu ninguém” (MB IV, 348).

É evidente que o nosso Pai segue com diligência e convicção a linha metódica e psi- cológica do santo Bispo de Genebra. E é igualmente evidente que essa é a linha à qual nos convida hoje a Igreja na pregação, nos debates, etc., todavia, gostaria de acrescentar que, refletindo bem, encontramos nos trechos citados, elementos essenciais do nosso método educativo.

Meus caros irmãos, não só na pregação, nos debates, nas reuniões, mas também nas nossas relações com os jovens inspiremo-nos sempre nesse espírito de compreensão, doçura e paz. Os resultados positivos desse método não poderão faltar: a caridade con- quista sempre.

Por isso, parece necessário também hoje que tomemos um mais profundo conheci- mento tanto da doutrina como do espírito do nosso santo Protetor, como também do método educativo do nosso Pai. Com frequência, esse método é conhecido, mesmo en- tre nós, só aproximativa e empiricamente, e justamente por isso ou não é apreciado devidamente ou é interpretado e praticado de modo muito arbitrário, com consequên- cias penosamente negativas no trabalho educativo.

Diversamente, digamo-lo para nosso alívio, nestes anos, em institutos e obras que pareciam antes desertos áridos e aonde somos chamados a trabalhar com jovens real- mente difíceis, pudemos constatar as admiráveis transformações obtidas pela atuação inteligente e diligente do método educativo salesiano.

 

3.  S. Francisco de Sales, mestre de espiritualidade e modelo de educação em clima de amabilidade

 

  • A caridade é a perfeição do amor
  1. Francisco de Sales falou tanto do amor quanto Dom Bosco falou da amabilidade.

O Bispo de Genebra resumiu a sua doutrina e o seu espírito nestas palavras: “O ho- mem é a perfeição do universo, o espírito é a perfeição do homem, o amor é a perfeição do espírito, e a caridade é a perfeição do amor”.

E Dom Bosco, com outra tonalidade, mas com mentalidade idêntica, escreveu: “O nosso sistema educativo apoia-se totalmente nas palavras de S. Paulo: a caridade é be- nigna e paciente; tudo sofre, tudo espera e tudo suporta”.

A caridade, base e cume de toda perfeição do homem nas suas relações com Deus e com seus semelhantes, é a essência e a característica do espírito salesiano, e abrange toda uma eflorescência de riqueza espiritual que se traduz com vários nomes: amor, amorevolezza, mansidão, doçura, amizade, benevolência, condescendência, compreen- são, confiança, paciência, amabilidade, afabilidade.

Deveríamos meditar profundamente a essência da pedagogia e da espiritualidade du- plamente salesiana, para poder compreender e avaliar plenamente o segredo da eficá- cia do nosso apostolado e ver como a atuamos na nossa vida. Certamente, já o disse Dom Bosco, a prática dessa pedagogia é trabalhosa, mas – eu dizia acima – de que frutos é fecunda!

Notou-o repetidamente, e não só ele, Paulo VI em numerosos discursos, especial- mente quando arcebispo de Milão e ainda no histórico discurso aos membros do Capí- tulo Geral XIX.

Mas voltemos ao nosso Santo Patrono. Ele foi, talvez, o primeiro a estabelecer a ar- quitetura da vida espiritual a partir do amor. Costumava dizer: “Tratai o próximo com a máxima doçura e caridade. Fazei as repreensões sempre com o coração e com palavras doces. Quando repreendeis os defeitos, esforçai-vos para desculpar interiormente o cul- pável, diminuindo-lhe a culpa; dessa forma as advertências serão eficazes. Quem con- quista o coração do homem, conquistou o homem todo. Os homens são conquistados mais com o amor do que com o rigor. É sempre melhor adotar o lado da caridade que o da austeridade. É preciso resistir ao mal e reprimir os vícios dos que nos são confiados, constante e corajosamente, mas doce e pacificamente. As recriminações de um pai, fei- tas doce e cordialmente, têm mais poder sobre uma criança para corrigi-la do que as cóleras e os mal humores”.

Que verdades, que conhecimento do coração humano nestas afirmações!

A Dom Camus, irritado com a conduta dos seus diocesanos, escrevia: “Monsenhor, é preciso suportar muito as crianças quando são pequenas... As quatro palavras do Após- tolo devem servir-nos de norma: opportune, importune, in omni patientia et doctrina. Coloca a paciência como a primeira, como a mais necessária, sem a qual de nada serve a doutrina... Continuemos apenas a cultivar o nosso campo, porque não existe terra in- grata que o amor do cultivador não torne fecunda”.

  • A educação é obra do coração

Não nos parece escutar as palavras de Dom Bosco, repetidas muitas vezes em suas circulares, conferências e páginas sobre o seu sistema educativo?

“É indispensável a todos a paciência, a diligência e muitas orações, sem o que seria inútil qualquer regulamento”, repete Dom Bosco. E ainda: “Assim como não existe ter- reno ingrato e estéril que, por meio de longa paciência, não se possa finalmente fazer frutificar, assim é com o homem, verdadeira terra moral, que, por mais estéril e indócil, no entanto cedo ou tarde produz pensamentos honestos e, depois, atos virtuosos, quando um diretor com ardorosas orações acrescenta os seus esforços à mão de Deus no cultivá-la e torná-la fecunda e bela”.

“Eu daria tudo para conquistar o coração dos jovens e assim poder oferecê-los ao Senhor”.

“Não agradam a Deus as coisas feitas por força. Ele, sendo Deus de amor, quer que tudo seja feito por amor”.

“Para fazer o bem ao próximo é preciso ter um pouco de coragem, estar prontos para sofrer qualquer mortificação, jamais mortificar alguém, ser sempre amáveis”.

“A educação é obra do coração”

Meus caros irmãos, à luz destes ensinamentos de S. Francisco de Sales e de Dom Bosco, convido-vos a reler a carta de Roma de 1884 (MB XVII, 110), a circular sobre os castigos (MB XVI, 441) e a primeira parte da vida do jovem Fiorito Colle, filho do conde Colle, o grande benfeitor de Dom Bosco. Encontrareis ali uma mina de ouro puro, uma pedagogia eficaz em que não se sabe o que mais admirar, se o profundo conhecimento do coração juvenil e humano, tão carente de amor concreto e construtivo, ou a ânsia de levar ao Senhor, mediante o amor sobrenatural e vivificante, as almas que ele encontra no seu caminho de apóstolo.

Disse amor sobrenatural porque, como diz o nosso dulcíssimo Patrono, “se se ama fora de Deus, corre-se o perigo de não amar nem puramente, nem constantemente, nem igualmente; mas se se ama em Deus, também o amor natural será purificado e transformado na perfeita obediência do amor puríssimo do beneplácito divino”.

No clima atual de naturalismo que penetra também em nossos ambientes, camu- flando-se muitas vezes de ciência e de técnica, e que deixa um vazio desolador e estéril, especialmente no coração do jovem sedento de amor verdadeiro, reler aquelas páginas de pedagogia cristã e salesiana, escritas e vividas pelo nosso Pai, será para nós como uma rajada rica de oxigênio e talvez nos convide a um sereno e fecundo exame de cons- ciência. Desejo que após este exame sintais que vós também podeis dizer como o nosso Pai aos seus jovens, e com o seu coração: “Meus caros jovens, eu amo a todos vós; basta saber que sois jovens para que eu vos ame muito. Eu daria tudo para conquistar o cora- ção dos jovens e assim poder oferecê-los ao Senhor”.

 

4.   S. Francisco de Sales, modelo de Dom Bosco e nosso num apostolado sempre mais atual: a imprensa

 

  • Para defender e promover a fé

Permiti-me, agora, depois de ter olhado para S. Francisco como mestre de espiritua- lidade, fixar a nossa reflexão num ponto de encontro característico e significativo, não certamente casual, entre os ardores apostólicas do santo Bispo de Genebra e o nosso Santo. Parece-me muito útil sobretudo neste momento.

Quem, ao entrar no santuário de Maria Auxiliadora, olhar para a segunda capela à esquerda, dedicada antigamente a S. Francisco de Sales, vê um grande afresco do nosso Santo Patrono todo atento numa tipografia em corrigir uma prova, enquanto um tipó- grafo apresenta-lhe outra. Sob o afresco, ao redor do arco que separa a capela da outra do Sagrado Coração, corre a seguinte frase: “Franciscus Salesius ad rem catholicam tu- tandam provehendamque optimis libris edendis officinam librariam constituit: hinc artis guttembergiae patronus inducitur” (Francisco de Sales, para defender e promover a fé católica com a publicação de bons livros abriu uma tipografia e, por isso, é reconheci- mento como protetor da arte da imprensa).

Dir-se-ia que a frase colocada sob o afresco do Rollini tenha sabor de profecia. O ar- tista certamente quis apresentar S. Francisco de Sales como modelo de Dom Bosco no apostolado da imprensa; por isso colocou ao redor do Santo alguns jovens ao trabalho. E assim o artista quase antecipou o que Pio XI e Pio XII fariam mais tarde declarando respectivamente S. Francisco Patrono dos escritores católicos e Dom Bosco, dos editores católicos.

E, de fato, a aproximação dos nossos dois Santos neste setor possui elementos pro- fundos. No início da sua missão no Chablais Francisco, que não conseguia ouvintes en- quanto pregava a palavra de Deus, encontrou o modo de fazer chegar a sua pregação, por assim dizer, em domicílio. Confiou, de fato, em folhetos preparados por ele as ver- dades principais da fé católica; esclarecia nessas folhas, simples, mas claras, pontos con- troversos precisos; respondia às objeções, esclarecia calúnias e punha às claras a here- sia. Os folhetos cuidadosamente impressos eram distribuídos gratuitamente e em mui- tas cópias, e, penetrando em todos os lugares, iluminavam as mentes, dissipavam as dúvidas e muito influenciaram nas conversões.

Dom Bosco, não diversamente, ao enfrentar uma situação análoga, começou com os Avisos aos católicos a impressão das Leituras católicas e, evoluindo aos poucos para uma apologética popular e prática, redigiu O Católico instruído, quase sem perceber, exata- mente como S. Francisco de Sales compusera as Controvérsias.

A genialidade do nosso Fundador, posta a serviço das almas, não se deteve nisso. Bem sabemos o quanto o nosso Pai, na esteira do seu santo exemplar, tenha trabalhado e sofrido justamente para desenvolver e alargar ao máximo o apostolado da imprensa.

  • Uma empresa que a Providência me confiou

Dom Bosco, com a sua intuição genial e apostólica, compreendeu a enorme força desse instrumento de comunicação social e entendeu que cresceria sempre mais ao mesmo tempo que a evolução social no mundo. E, por isso, consciente da poderosa in- fluência da imprensa na sociedade, deixou em herança aos seus filhos esse apostolado, consagrando-o nas Constituições como uma das finalidades específicas da Congregação (c. I, n. 8); não só: ele quis integrar a prescrição deixada aos Salesianos dando à sua terceira Família, os Cooperadores, a difusão da imprensa como exercício de apostolado primário (Regulamento dos Cooperadores, c. II, n. 3).

Ouçamos, porém, as palavras do Pai na carta de 1885 que podemos chamar de seu testamento-programa sobre esse tema; são palavras vivas e apaixonadas, de palpitante atualidade, ainda mais depois do Decreto conciliar sobre os instrumentos de comunica- ção social. Eis alguns pensamentos recolhidos da carta: “Entre os meios, para a glória de Deus e a salvação das almas, o que eu recomendo calorosamente é a difusão dos bons livros. Eu não hesito em chamar este meio de divino, pois Deus mesmo se serviu dele para regeneração do homem. Foram os livros inspirados por ele que levaram a verda- deira doutrina ao mundo todo...

Cabe a nós imitar a obra do Pai celeste. Os livros bons difundidos entre o povo são um dos meios adequados para manter o reino do Salvador em muitas almas...

Esta foi uma das precisas empresas que a Divina Providência me confiou, e vós sabeis como eu tive que me ocupar dela com energia incansável, apesar das minha mil outras ocupações...

A difusão dos bons livros é uma das principais finalidades da nossa Congregação... As nossas publicações tendem a formar um sistema organizado que abrange em vasta escala todas as classes que formam a sociedade humana...”.

Estes pensamentos do Pai fazem-nos apreciar a sua premonição e a sua excepcional sensibilidade apostólica (pensemos que foram escritos há mais de 80 anos), mas ao mesmo tempo apelam com grande autoridade para o dever de não deixar este aposto- lado se enfraquecer na Congregação. E esse enfraquecimento pode acontecer, não só abandonando totalmente essa atividade (fato muito deplorável), mas desviando-a das suas nobres e santa finalidades, reduzindo-a a uma atividade quase de empresa gráfica, comercial, ou restringindo-a à publicação de alguns textos escolares ou enfim não lhe destinando homens preparados como exigido pelos tempos tanto para a imprensa pe- riódica como para livros religiosos, morais, recreativos.

O estudo para o redimensionamento, que se realiza em todos os lugares da Congre- gação e do qual tanto se fala, deve ocupar-se seriamente desse setor do nosso aposto- lado, de modo que haja na Inspetoria irmãos capazes devidamente preparados e equi- pados por realizar essa missão preciosa e salesiana.

E aqui repito o que disse em outras ocasiões: esses irmãos não são desperdiçados, mas, bem escolhidos e empenhados, renderão muito mais do que empregados em al- gumas outras atividades.

Ficarei muito contente se a celebração desta ocorrência “salesiana” servir para des- pertar em todos os ambientes da Congregação a sensibilidade e o apreço concreto por este apostolado. Paulo VI, na citada carta Sabaudiae Gemma, naturalmente para um círculo mais amplo, espera justamente que o exemplo do santo Bispo de Genebra seja um apelo eficaz para tornar operantes as preciosas diretrizes do decreto conciliar sobre os instrumentos de comunicação social.

Estou certo de que o nosso Pai faria hoje para nós o mesmo convite premente com palavras e sentimentos não menos apaixonados dos expressos na histórica carta de 1885. Cabe a nós responder com abertura filial a tantos apelos urgentes e autorizados.

  • “Como devemos regular-nos?”

Concluindo estes pensamentos que nos são sugeridos pela ocorrência centenária, quero recordar-vos ao menos algumas advertências dadas por S. Francisco de Sales a Dom Bosco no sonho que o nosso bom Pai contou em 9 de maio de 1879. Creio que será uma descoberta para muitos.

Nesse sonho, Dom Bosco pressiona o Santo Patrono com muitas perguntas; vendo bem, todas as perguntas são movidas pelo amor pela sua Congregação, pelo desejo de sabê-la sempre progredindo, pelo temor de que no passar dos anos a sua criatura possa sofrer interrupções no seu caminho, ou, pior, desvios ou falências que esvaziem a missão que a Providência lhe confiou na vida da Igreja. As respostas do Santo Patrono centrali- zam, por assim dizer, cada quesito proposto por Dom Bosco indicando com exatidão remédios, normas, orientações.

Uma delas refere-se às vocações: em poucas palavras há um programa completo e atualíssimo, que encontramos também no Perfectae Caritatis.

Dom Bosco: O que devo fazer para promover as vocações?

  1. Francisco: Os Salesianos terão muitas vocações com a sua conduta exemplar, tra- tando com suma caridade os alunos e insistindo na comunhão frequente.

Dom Bosco: Como se poderá conservar de modo melhor o bom espírito em nossas casas?

  1. Francisco: Escrever, visitar, receber, tratar com benevolência com muita frequência da parte dos Superiores.

Quanta sabedoria “salesiana” nessas respostas! É preciosa para todos, mas indispen- sável para quem exerce a autoridade.

Dom Bosco: Como devemos regular-nos nas Missões?

  1. Francisco: Procurar conhecer e cultivar as vocações indígenas.

Também essa diretriz com mais de um século já é uma praxe e uma preocupação de toda a Igreja missionária; para nós, porém, é hoje um apelo ainda mais válido e urgente.

Dom Bosco: A Congregação durará muito tempo?

  1. Francisco: A vossa Congregação durará enquanto os sócios amarem o trabalho e a temperança. Faltando uma dessas colunas o vosso edifício ruirá arruinando Superiores e inferiores e seus seguidores (MB XIV, 124).

 

5.  Conclusão

Caríssimos irmãos e filhos, nestes momentos de confusão e, infelizmente, de desvios também graves, ideológicos e práticos, à luz da clara e decisiva resposta do nosso Pa- trono à ansiosa pergunta do nosso Pai, examinemos corajosamente a nossa posição pes- soal diante da Congregação e tiremos a consequências necessárias de modo que a nossa conduta e toda a nossa atividade de Salesianos seja uma contribuição generosa e cons- trutiva para o edifício da Congregação; só assim, em vez de cair em ruína, será sempre mais sólido e fecundo de irradiação apostólica no difícil mundo de hoje.

Peçamos juntos ao Doador de todo bem, por intercessão de S. Francisco de Sales e do nosso caro Pai, que nos dê a força e a luz para ser, nos seus passos e com o espírito deles, os construtores do reino de Deus, antes de tudo, na nossa alma e, depois, nas muitas almas que encontramos no nosso caminho.

Gostaria que não esquecêsseis das orientações dadas no número anterior dos Atos do Conselho sobre o Centenário de S. Francisco de Sales; seja feita uma comemoração em todos os Estudantados como será feita de forma solene no PAS, estude-se e viva-se o espírito do Santo lendo as suas obras e a sua biografia. Do conhecimento, brotará o amor, a devoção e o desejo de imitação. Esse é o fruto espiritual que se espera de nós neste Centenário.

Apresento-vos as saudações mais afetuosas também em nome do Superiores do Con- selho. Peço-vos uma lembrança cotidiana nas vossas orações e agradeço-vos desde já.

O Senhor abençoe a todos nós e nos conforte.

Luís Ricceri
Reitor-Mor

ANO DA FÉ

CENTENÁRIO DA BASÍLICA DE MARIA AUXILIADORA

Luís Ricceri
Atos do Conselho Superior 250

Contexto histórico do nosso Centenário. – Estreia para 1968

  1. COMO CELEBRAR O ANO DA FÉ – a. Aprofundar o valor autêntico da fé. – b. Reavivar a consciência e a eficácia da fé na própria vida. – Responsabilidade e perigos do nosso apostolado. – c. Testemunhar a fé na hora presente com coerência cristã. Desorientação de ideias. O nosso projeto doutrinal e opera- tivo. A catequese: tarefa precisa da Congregação. – Obrigatório exame de consciência. – Decisões cora- josas e coerência de
  2. COMO CELEBRAR O NOSSO ANO A Basílica, coração de Valdocco. – A Basílica, Alma Mater da Congregação. – Centro espiritual e irradiação apostólica. – Significado eclesial do Centenário. – Jesus e Maria na história da salvação. – Mãe e Auxiliadora dos Redimidos. – Devoção mariana autêntica. Em- penhos doutrinas para o Ano Mariano. – Empenhos de devoção. – O Rosário, uma prática que deve florescer. – Empenho apostólico: a. Expedição Missionária, b. Centro Juvenil, c. Casa de Exercícios Espi- rituais.

Roma, 1º de novembro de 1967

Caríssimos Irmãos e Filhos.

Encaminho-vos esta minha carta desde Roma, onde ainda permaneço alguns dias de- pois do encerramento do Sínodo do qual, como sabeis, participei. Foi um mês de traba- lho incessante, troca de experiências, perspectivas, avaliações para a solução dos graves e urgentes problemas que se agitam hoje na Igreja.

Durante o Sínodo também tive a alegria de fazer uma devota homenagem a S.S. Paulo VI que, como sempre, foi de uma amabilidade mais do que paterna ao falar da Família Salesiana, que Ele bem conhece. Pude também, em vosso nome, apresentar as sauda- ções e ter o cordial abraço do venerando Patriarca Atenágoras.

E mantive, ainda, numerosos contatos com muitos Prelados, tratando com eles de problemas que interessam à Congregação. Mas, como podeis compreender, os contatos mais frequentes foram com os Superiores Gerais que comigo participavam do Sínodo. Criou-se assim entre nós uma cordial colaboração fraterna, não só pelos trabalhos do Sínodo, como também pelos muitos problemas que são comuns hoje aos Institutos Re- ligiosos.

Voltando ao Sínodo, muitas das questões na ordem do dia dizem respeito direta- mente à nossa vida; pensai nos problemas da formação, naqueles da renovação da Li- turgia; pense-se que importância capital têm também para nós as questões relativas à fé e à moral.

Posso dizer-vos que a vasta temática foi tratada com amplitude e profundidade e ilustrada sob todos os aspectos; baste recordar que as intervenções em aula, com toda a liberdade e respeito recíproco, chegaram sobre alguns temas a uma centena (mais da metade dos presentes) além daqueles apresentados por escrito à Secretaria.

As várias comissões examinaram diligentemente e levaram em conta as intervenções ao apresentar novas propostas para aprovação dos Padres sinodais.

Tudo isso em clima de grande serenidade e, coisa verdadeiramente edificante, com a constante preocupação de construir positivamente, à luz da realidade em que a Igreja vive hoje e da experiência deste período pós-conciliar, no qual, com tantas coisas real- mente boas e frutificantes, surgiram outras, infelizmente, arruinadas e, algumas vezes, também danosas e condenáveis.

O senso de grande equilíbrio e a preocupação constante de manter a via média de- monstrada pelo Sínodo parece-me que deva ser motivo de conforto para toda a nossa Família. De fato, logo após o Concílio e em seguida, nós em toda a nossa ação, quisemos avançar, sim, mas sempre equilibradamente e escolhendo aquela via média de que o Sínodo nos deu um exemplo edificante, confirmando a eficácia da linha que a Congre- gação segue e pretende seguir.

Neste nosso avançar e renovar-nos sem destruir, mas construindo sobre o passado, e até enriquecendo-o, os dois grandes acontecimentos que nos apressamos a celebrar no próximo ano serão para nós um banco de prova e igualmente um benéfico propulsor.

O Ano da Fé e o Centenário da Basílica de Maria Auxiliadora são para nós um único, harmonioso e eficaz apelo neste momento histórico especial da Igreja e da Congregação.

Deixai que vos entretenha sobre esse duplo agradável tema; enquanto respondo à necessidade do meu coração, sinto responder ao desejo vivo de muitos Irmãos que es- peram justamente nesta ocasião uma palavra animadora e orientadora daquele que tem a grave e primeira responsabilidade de guiar a Congregação nestes não fáceis momen- tos.

Entro logo no tema.

 

Contexto histórico do nosso Centenário

Permiti-me evidenciar primeiramente o contexto histórico e eclesial, no qual se in- sere a nossa celebração centenária, pois parece-me ser este o melhor modo de entender o seu verdadeiro e profundo significado.

Estamos no imediato pós-Concílio. Encerrou-se há pouco o primeiro “Synodus Epis- coporum” da história da Igreja. Ela vota-se toda para a atuação da sua renovação.

Paulo VI proclamou o “Ano da Fé”, que deve levar-nos a aprofundar e viver a nossa fé, para comemorar frutuosamente o Centenário do martírio dos Santos Apóstolos Pe- dro e Paulo.

No âmbito da nossa Família Salesiana, estamos solidariamente empenhados no “re- dimensionamento”, desejado pelo Capítulo Geral XIX, a ser atuado em clima de diálogo sereno e construtivo, e no esforço fundamental da renovação interior, que deve levar

todos os membros da Família Salesiana a adequar-se às exigências da sua total consa- gração ao Senhor e ao apostolado próprio da Congregação.

Pois bem, o Centenário do nosso mais importante templo mariano oferece a ocasião adequada para inserir-nos eficazmente nas orientações acima mencionadas e nos pro- jetos operativos da Igreja e da Congregação de hoje.

De fato, o pós-Concílio, empenhando-nos na prática viva e atuante dos ensinamentos e das diretrizes conciliares, exige também que em nossa vida espiritual e nosso aposto- lado sacerdotal e educativo atuemos os princípios sólidos da devoção mariana, que o Concílio nos propôs, apresentando-nos, à luz dos planos salvíficos divinos, Maria SS. in- dissoluvelmente associada a Cristo Salvador e à Igreja na história da salvação.

O Ano da Fé também não pode ser vivido plenamente ignorando Nossa Senhora. De fato, Maria SS. é a primeira Crente, e mereceu ser proclamada bem-aventurada justa- mente pela sua fé na Palavra divina, que lhe revelava os planos de Deus sobre Ela: “Feliz Aquela que acreditou, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido” (Lc  1,45). O capítulo oitavo da Lumen Gentium também evidencia reiteradamente a fé de Maria apresentando-a também como modelo de todo crente.

Maria é ainda “objeto” da nossa fé, pois a sua missão, as suas prerrogativas e os seus privilégios são revelados por Deus e pertencem ao depósito da fé.

Maria SS. está vitalmente inserida no mundo da nossa fé; “reúne em si e reflete os imperativos mais altos da nossa fé”, como afirma a Lumen Gentium (n. 65). Com efeito, ela se liga por admiráveis relações com as Pessoas divinas. E insere-se vitalmente na história da nossa salvação, tendo-nos dado consciente e livremente o Salvador, medi- ante a sua maternidade divina virginal, que também a associou à obra salvífica do Filho, continuada na Igreja. Os seus privilégios sobrenaturais de perfeita pureza e de plenitude da graça evocam para nós as riquezas divinas e os sagrados compromissos da nossa vo- cação batismal. A sua Assunção gloriosa fala-nos da nossa destinação eterna, à qual nos encaminha a graça da nossa adoção divina. Não é possível, então, considerar Maria SS. sem ser introduzidos numa luminosa e ativa vida de fé, que, de fato, é inculcada pelo Papa no Ano da Fé.

Também as iniciativas nas quais está empenhada a nossa grande Família para atuar o Capítulo Geral XIX, tiram da verdadeira devoção pela celeste Patrona – e para usar as palavras de Dom Bosco – Fundadora da Obra Salesiana a mais segura garantia de sucesso eficaz. Maria, de fato, com a sua materna presença e assistência conforta-nos e sustém- nos para cumprirmos da melhor forma todas as nossas responsabilidades, assim como fez com o nosso Pai, que caminhou sempre com a ajuda de Nossa Senhora.

O ano centenário da Consagração do Templo de Maria SS. Auxiliadora deve ser, por- tanto, um ano mariano, marcado pela mais convicta e atuante devoção a Maria SS., con- siderada, no mistério de Cristo e da Igreja, como no-la apresenta o Vaticano II, no clima de renovação espiritual trazido pelo Concílio e pelo Capítulo Gral XIX.

 

A Estreia para 1968

A fim de valorizar estes providenciais “sinais dos tempos”, estas felizes coincidências, e empenhar a nossa Família “a viver” o Ano da Fé renovando a nossa devoção mariana à escola do Concílio, quis propor esta Estreia para 1968:

“Acolhendo com devoção filial a exortação do Sumo Pontífice para o centenário dos SS. Pedro e Paulo, convido toda a Família Salesiana a celebrar o Ano da Fé com generoso e fervoroso propósito de aprofundar o valor autêntico da Fé, reavivar a consciência e a eficácia dela na própria vida, fazer dela um testemunho na hora presente com coerência cristã. Conforte-nos em nosso empenho Aa Virgem Auxiliadora, apoio válido e defesa da Fé, no Centenário da Consagração da sua Basílica em Turim”.

Como vedes, a Estreia centra-se em dois elementos que caracterizam o precioso ano que se abre: Ano da Fé e Centenário do nosso mais importante templo mariano; ela convida a caminhar neste binário seguro: exercício da fé e renovação da devoção mari- ana.

Eis os dois grandes temas que desejo ilustrar-vos, para que, em sintonia com as dire- trizes da Igreja e da Congregação e renovados pessoalmente no espírito, possais comu- nicar um novo fluxo de vida sobrenatural às almas que vos são confiadas

 

I.  COMO CELEBRAR O ANO DA FÉ

O Ano convocado por Sua Santidade Paulo VI na Exortação apostólica Petrum et Paulum Apostolos conecta-se com a renovação promovida pelo Concílio e pelo projeto pastoral da Encíclica Ecclesiam suam.

Não se trata de um evento isolado, mas de uma iniciativa providencial, que nos ajuda a viver o Concílio e a “sentire cum Ecclesia”. A exortação para o Ano da Fé tende a favo- recer a vitalidade da Igreja, tornando-a consciente nos seus membros da sua particular missão no mundo moderno e estimulando-a à renovação interior e exterior para a sua inserção apostólica no mundo, com o qual deve dialogar para levá-lo à salvação.

São estas as três grandes intenções de S.S. Paulo VI na comemoração centenária do martírio dos Apóstolos Pedro e Paulo, como brota do texto da Exortação pontifícia. O Papa quer, de fato, que “a comemoração centenária do martírio dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo consista principalmente para toda a Igreja em um grande ato de fé. E queremos reconhecer nesta ocorrência – Ele acrescenta – a feliz ocasião que a Divina Providência prepara para o Povo de Deus para que retome a consciência exata da sua fé a fim de reavivá-la, purificá-la, confirmá-la, confessá-la” (Exhortatio, L’Osservatore Ro- mano, 23.02.1967).

O próprio Sumo Pontífice esclarece-nos assim os objetivos do Ano da Fé. São os mes- mos objetivos que parafraseei na Estreia.

Esses empenhos são claros, mas será bom apresentá-los de maneira mais concreta para facilitar a sua atuação na nossa vida pessoal e no nosso apostolado de mestres e testemunhas da fé.

a.  Aprofundar o valor autêntico da fé

Na escola da S. Escritura e do Concílio Vaticano II, devemos afirmar que a fé, no seu aspecto pessoal, enquanto virtude teologal, é atitude consciente, convicta e livre do ho- mem para com Deus, que se revela e comunica no curso da história da salvação, em Jesus Cristo e no seu Espírito. Essa atitude se dá em pleno consenso, ou seja, na adesão de mente, do coração e da ação plena e total.

Por isso, a fé leva à caridade, ou seja, à plena comunhão com Deus, à observância filial da sua lei paterna, na esperança certa da sua ajuda e da atuação das suas divinas promessas.

A fé confere, por isso, uma nova perspectiva à vida iluminando-as com divinas certe- zas sobre os planos divinos salvíficos, que se atuam na história humana mediante a his- tória da Igreja.

Pela fé, nós cremos em Deus Pai, Filho e Espírito, ou seja, aderimos firmemente à SS. Trindade, operante em nós, na Igreja e no mundo; e, por isso, sustentados na graça, aceitamos com firme consentimento da mente, da vontade e das obras tudo o que o Magistério da Igreja propõe para crer como objeto da Revelação divina.

A nossa fé é, portanto, teologal, porque nos une à SS. Trindade, fonte infinita de luz e caridade, e objeto supremo e motivo da fé.

A nossa fé também é cristológica, porque Jesus Cristo é o autor e o aperfeiçoador da fé, sendo Ele o Verbo divino que se fez homem para comunicar-nos os tesouros de ver- dade e de vida, hauridos no seio do Pai.

E a nossa fé é, também eclesial, porque na Igreja de Jesus Cristo nós recebemos a fé mediante o batismo, que nos insere no Corpo Místico de Cristo, para viver, testemunhar e anunciar a fé. Por isso, a Igreja é chamada pelo Concílio Vaticano II de “comunidade dos redimidos”, “comunhão de fiéis”, “mestra e testemunha de fé” (LG 12 ss.).

O autêntico valor da nossa fé nos é apresentado pelo Concílio com estas palavras: “A Deus que revela é devida a ‘obediência da fé’; pela fé, o homem entrega-se total e livre- mente a Deus oferecendo ‘a Deus revelado o obséquio pleno da inteligência e da von- tade’ e prestando voluntário assentimento à Sua revelação. Para prestar esta adesão da fé, são necessários a prévia e concomitante ajuda da graça divina e os auxílios interiores do Espírito Santo, que move e converte o coração a Deus, abre os olhos do entendi- mento e dá ‘a todos a suavidade em aceitar e crer a verdade’. Para que a compreensão da revelação seja sempre mais profunda, o mesmo Espírito Santo aperfeiçoa sem cessar a fé mediante os seus dons” (DV 5).

Temos, pois, muita necessidade de pedir a Deus, insistentemente, o dom da fé para nós e para as almas que nos são confiadas, pois a fé é dom inestimável de Deus, que Ele concede a quem faz o seu humilde, fervoroso pedido.

 

b.  Reavivar a consciência e a eficácia da fé na própria vida

O conhecimento do autêntico valor da fé leva-nos a julgar a nossa vida à luz da fé e encontrar as suas deficiências e incoerências no plano intelectual e no plano operativo. Por isso, a fé deve ser sempre reavivada e renovada, para que seja sempre norma de vida.

Devemos criar uma mentalidade de fé, integrando fé e cultura, de modo que a fé não fique apenas marginal, superficial, mas ilumine e oriente toda a nossa realidade; assim poderemos colher a presença de Deus na história do mundo e de todo homem e favo- recê-la de modo a não arruinar os planos divinos. A fé, enfim, deve ser uma atitude in- terior habitual, comprometendo-nos profundamente com Deus, com Cristo, com a sua mensagem, aceitando todas as suas exigências e implicações, assumindo com senso de responsabilidade o próprio lugar na “Igreja” da sua comunidade e cooperando assim para o bem da Igreja universal e de toda a humanidade.

Dessa forma, os valores humanos não são destruídos, mas apenas hierarquizados e subordinados à fé que se tornou mentalidade, atitude fundamental pelo que, o juízo sobre opções vitais, decisivas, é sempre de ordem religiosa.

O elemento religioso, portanto, não é apenas adesão mental, mas vital, isto é, influi sobre a vida, sobre a ação tornando-a sempre cristã e coerente aos princípios da fé. Tem-se, assim, uma integração entre fé e cultura, pela qual o conteúdo da fé surge como solução completa e total de todos os problemas humanos. Tem-se, também, a integra- ção entre fé e vida, em todas as manifestações, não só religiosas, mas também culturais, sociais, profissionais; dessa integração brota o cristão verdadeiro, total, sal da terra e luz do mundo. Se pensamos por um momento em nosso Pai Dom Bosco, em muitos outros homens e mulheres que entraram na história da Igreja, reconhecemos que realizaram em si mesmos essa integração, fonte fecunda de irradiação espiritual e apostólica. Mas mesmo olhando hoje ao nosso redor, cada um na esfera da própria atividade, encontra- remos facilmente homens e mulheres, não só consagrados, mas também do laicato, que mostram na própria vida essa fecunda e feliz “integração” entre fé e cultura, fé e vida.

Responsabilidades e perigos do nosso apostolado

Nós, sacerdotes e apóstolos, devemos olhar para esses exemplos também para poder ir eficazmente ao encontro da calorosa invocação das almas do nosso tempo expressa nesta palavra de Jean Guitton: “Tendo fome e sede de Absoluto e não o encontrando em nenhuma parte em estado puro, precisamos ter próximo um homem que é seme- lhante a nós, também na sua mediocridade e miséria, encarna a noção de Absoluto e nos prova com a sua presença que o Absoluto pode existir, ou melhor, que está mais próximo de quanto não pensamos” (J. Guitton, Dialoghi con Paolo VI, p. 295). Este ho- mem é o Sacerdote, o Apóstolo.

Infelizmente, é fácil também para nós o perigo, já individuado por S. Agostinho, da “dipsichìa”, ou seja, da dupla mentalidade: a mentalidade mundana, leiga, que se es- tende a quase todos os momentos da vida, e a mentalidade religiosa, muito restrita na sua zona de influência, que informa, portanto, apenas uma mínima parte da atividade e por pouquíssimo tempo. Dessa dupla e contrastante mentalidade vem aquela fé margi- nal e na superfície, uma religiosidade defensiva não conquistadora, imposta de fora, não sentida.

A fé, dessa forma, definha e pode naufragar completamente diante das provas da vida. Muitos, também sacerdotes e religiosos, chegaram ao ateísmo passando através dessa fé teórica, superficial, sem incidência vital.

O Ano da Fé é muito oportuno para levar-nos ao trabalho de “reavivar a consciência e a eficácia da fé na própria vida”, tornar, enfim, operosa a nossa fé, porque, bem o sabemos, “a fé sem as obras é morta” (Tg 2,17).

O perigo da fé lânguida e da dissociação entre fé e vida, como acenava acima, não existe apenas para os jovens e os simples cristãos, existe também para os sacerdotes, os religiosos (e temos ao redor tristíssimos exemplos disso), que correm o risco de seguir as normas do mundo e não as de Jesus Cristo, tornando-se sal insípido, isto é, aqueles padres que, como diz J. Guitton, “são leigos tão logo consagrados” (ib.), que acabam perdendo a sua função de guias e mestres da fé.

Quanto importante, pois, é reavivar todos os dias a fé no contato vivo com a Palavra de Deus, encarnada na S. Escritura e na Eucaristia, para ser luz e calor e assim iluminar e aquecer!

 

c.  Testemunhar a fé na hora presente com coerência cristã

Aos seus seguidores, Jesus Cristo confiou a missão do testemunho (At 1,8). Temos o testemunho do sangue oferecido pelos mártires com o sublime ato do martírio cruento, que não é de todos. Mas há também o testemunho da palavra, das obras e da vida, ao qual somos todos obrigados para merecer o reconhecimento e o testemunho da parte de Jesus no dia do juízo.

O tempo presente precisa, sobretudo, desse testemunho; a isso o Concílio convida continuamente: o testemunho da vida cristã coerente, vivida não só na igreja, mas tam- bém na escola, na diversão, no trabalho, na vida familiar e social. Dessa forma, continua- se a encarnação de Cristo Salvador no mundo moderno. A isso deve tender toda a nossa formação religiosa e a nossa obra de educadores e formadores cristãos.

Caríssimos irmãos, é fácil tomarmos ciência da atualidade desses empenhos em or- dem à nossa vida de fé. No-lo confirma o mesmo supremo Pastor. Na Exortação Petrum et Paulum Apostolos, S.S. Paulo VI evidencia que o Ano da Fé responde a uma necessi- dade urgente da hora presente caracterizada por alguns dolorosos fenômenos: o esque- cimento e a negação de Deus e, portanto, a crise do sentimento religioso e da fé, base de uma sadia ordem intelectual, moral e social; a afirmação de certa cultura racionalista, leiga e irreligiosa que se infiltra também no campo católico, semeando dúvidas e per- plexidades, também sobre pontos basilares do dogma.

 

Desorientação de ideias

“Algo de muito estranho e doloroso está acontecendo – acrescenta o Papa num re- cente discurso aos membros da CEI – não só na mentalidade profana, irreligiosa e antir- religiosa, mas também no campo cristão, não excluído o católico e, com frequência, quase por inexplicável “espírito de embriaguez” (Is 19,14), também entre aqueles que conhecem e estudam a Palavra de Deus; falta certeza na verdade objetiva e na capaci- dade do pensamento humano de alcançá-la; altera-se o sentido da fé única e genuína; admitem-se as agressões mais radicais a verdades sacrossantas da nossa doutrina, sem- pre acreditadas e professadas pelo povo cristão; põem-se em discussão qualquer dogma

que não agrade e que requeira o humilde obséquio da mente para ser acolhido; pres- cinde-se da autoridade insubstituível e providencial do magistério; e pretende-se con- servar o nome de cristão, chegando a negações extremas de todo conteúdo religioso” (Osservatore Romano, 8 de abril de 1967).

Se passarmos, depois do plano doutrinal ao prático, vemo-nos diante da trágica cons- tatação de que para muitos cristãos batizados não há mais lugar para Deus. O interesse preponderante pelas realidades terrenas e, entre estas, em primeiro lugar o bem-estar e a diversão, é, para muitos, motivo de fuga das realidades religiosas, pelo que os cató- licos empenhados, os sacerdotes e os educadores se veem a viver e trabalhar em gran- des zonas de indiferentismo religioso. São os frutos miseráveis de uma fé lânguida e superficial, não alimentada suficientemente, uma fé de hábitos e de práticas exteriores que não regeu aos golpes de aríete que a incredulidade desfere sem trégua e com lar- gueza de meios. De aqui a desorientação de ideias e a insatisfação de muitos diante da renovação promovida pelo Concílio: não entendem o seu sentido e as suas exigências, vítimas de uma fé pobre e vazia.

Por outro lado, assistimos a um aumentado interesse pelos problemas religiosos e morais, atestado também pela difusão crescente de publicações que tratam dessas questões. Contudo, ainda se deve constatar que muitas vezes o público, também cató- lico, é mal informado e orientado pois os que escrevem sobre essas questões religiosas e morais ou sobre os acontecimentos eclesiásticos, nem sempre têm a devida compe- tência ou são embebidos de preconceitos antirreligiosos por mentalidade laicista. O fato foi largamente notado (e deplorado) também no recente Sínodo.

 

O nosso projeto doutrinal e operativo

Por isso, o nosso projeto doutrinal e prático para o Ano da Fé é um trabalho da má- xima importância.

É preciso, e não só para os simples fiéis, um estudo profundo da própria fé para ade- quá-la às exigências e ao nível cultural do mundo atual. Segundo a palavra do Papa, o Ano da Fé deve estimular-nos ao estudo da doutrina, contida nos documentos do re- cente Concílio Ecumênico, para fazer deles norma de vida para nós, para os fiéis e para os jovens, aos quais nos consagra o nosso apostolado, reavivando a consciência e a efi- cácia da fé.

Deve-se perguntar, então, dois anos depois do encerramento do Concílio, o que se fez em cada uma de nossas comunidades para o conhecimento sistemático e aprofun- dado dos numerosos documentos conciliares. Os Superiores responsáveis, o que fizeram praticamente para facilitar esse conhecimento aos Irmãos? Trata-se de uma riqueza imensa que não se pode, sem graves consequências, deixar ignorada ou não valorizada. Enquanto aplaudo os que se empenharam para difundir e aprofundar entre os Salesia- nos o conhecimento dos documentos conciliares, exorto primeiramente os Superiores nos vários níveis a se preocuparem eficazmente para que os Irmãos sejam capazes de beber desse autêntico tesouro. Todavia, seja empenho de cada Salesiano ter um conhe- cimento sério, naturalmente segundo as peculiares condições de cada um, dos docu- mentos conciliares e pós-conciliares e dos relativos comentários já publicados em todos os lugares, de modo particular os que interessam mais de perto à nossa vida.

Ficarei contente em conhecer as iniciativas, no plano inspetorial ou local, que mirem atuar metodicamente este meu ardoroso convite, de modo especial para o sério conhe- cimento dos documentos que se referem mais proximamente à nossa vida de religiosos, de sacerdotes e de educadores.

 

A catequese: missão explícita da Congregação

Creio que a este ponto insira-se muito oportunamente também um apelo à cate- quese que é o instrumento ordinário pelo qual chegamos à fé, a revivamos na nossa vida e a alimentamos nos outros. Não esqueçamos que a catequese é uma das formas espe- cíficas do apostolado que Dom Bosco nos deixou em herança nas Constituições (C. I, art. 8); por ela nós nos devemos dirigir primeiramente aos jovens, mas a nossa ação deve estender-se também aos adultos, especialmente aqueles que pertencem à esfera das nossas atividades peculiares (Cooperadores, Ex-alunos, Associações paroquiais, pais dos alunos, fiéis, catecúmenos, etc.).

O Capítulo Geral também foi muito explícito e forte a esse respeito: “Entre as formas de apostolado não juvenil tem o primeiro lugar, por necessidade e eficácia, a catequese dos adultos...; (ela) faz parte da missão confiada por Deus à Congregação através do seu Fundador e a Igreja, e por ela de bom grado aceita e realizada” (ACG XIX, pag. 144 ss.).

Na frouxidão geral da fé de muitos, que é o mal mais grave do nosso tempo, o nosso dever torna-se absolutamente urgente.

Para sintetizar a força da minha exortação num aspecto tão importante, quero cha- mar a vossa atenção sobre o estrito dever que temos de preparar-nos adequadamente à catequese para torná-la eficaz. Trata-se, também aqui, daquela qualificação que hoje se requer de nós para qualquer atividade apostólica. Os improvisadores, os superficiais, o faz-tudo são deletérios nesse campo mais do que em outros, nem pode justificar-nos certa boa intenção no nosso trabalho, se faltar a consciência das nossas exatas respon- sabilidades diante de Deus e dos outros. Não podemos fazer a fé correr o risco que vem da nossa ignorância e da nossa pouca competência.

Constato com verdadeira satisfação que a nossa Congregação criou para a catequese algumas instituições de grande valor, reconhecidas não só entre nós, mas no ambiente mais vasto da cultura e da pastoral eclesiástica. Refiro-me, para dar algum exemplo, ao Instituto de Catequética do PAS e ao Centro Catequético de Turim, mas sei de outras iniciativas análogas, embora mais limitadas. Congratulo-me – realmente de coração – com as Inspetorias que têm no PAS, neste setor específico, uma boa presença de estu- dantes, e espero que logo estejam presentes também outras Inspetorias.

Sei também que estão se multiplicando em muitas partes os cursos de catequética para os nossos Irmãos – sacerdotes, coadjutores e clérigos – como também para profes- sores não Salesianos, para Cooperadores, etc. Aplaudo vivamente a essas atividades, como aplaudo os promotores de várias publicações de alto nível cultural ou de imediato interesse escolar, que foram criadas nos últimos tempos no campo catequético.

Isso tudo me diz que algo se moveu, e não faltaram reconhecimentos autorizados, que queremos considerar como confirmação de uma boa opção no nosso apostolado e estímulo para fazer ainda mais e melhor.

Este é um dos setores nos quais Dom Bosco nos quer sempre na vanguarda. Pois bem, constatando concretamente os resultados obtidos nestes anos, creio que se possa afir- mar com tranquilidade que foram compensados com largueza os sacrifícios enfrentados com essas iniciativas, antes de tudo de pessoal.

Digo isso para encorajar quem ainda estivesse incerto na sua decisão, e, ao mesmo tempo, para acenar às mais amplas possibilidades, que se abrirão para nós, se souber- mos unificar e coordenar a nossa colaboração no plano internacional.

 

Exame de consciência obrigatório

O Ano da Fé é uma boa ocasião para fazer um sério exame de consciência, como indivíduos e como Congregação, sobre o que deveríamos fazer hoje nesse campo, des- cobrindo corajosamente as nossas deficiências e definindo os meios de repará-las. Sim, façamos sobre isso uma frutuosa revisão de vida. Há, talvez, aqueles que facilmente se eximem do dever de entregar-se à catequese na escola, nos oratórios, nas associações e nas nossas outras obras! Talvez sejam irmãos que obtiveram títulos acadêmicos e têm uma boa cultura humanista e científica, mas não têm a preocupação de fazer uma pre- paração específica na catequese. Algumas de nossas instituições (colégios, escolas, ora- tórios, etc.) incidem muito modestamente na formação cristã dos jovens: não será, tal- vez, porque a preocupação exclusivamente escolar ou a febre esportiva ou uma indife- rença cômoda prevaleceram sobre as finalidades catequéticas que sempre deveriam prevalecer? Foi no Sínodo que um digníssimo Prelado, muito próximo de nós, me fazia algumas dessas penosas constatações.

Não nos iludamos: com os muitos sucessos que temos na nossa obra educativa é do- loroso constatar também que não poucas vezes a fé dos nossos jovens, ao menos no plano prático, evanesce tão logo tenham entrado em uma escola leiga, no ambiente de trabalho, na aula universitária ou na vida. Os nossos adversários lançaram-nos em face, algumas vezes, afirmações incandescentes nesse sentido, como quando disseram que não os preocupava muito a tal escola católica com milhares de alunos, porque em pou- cos meses seria fácil lavar o que fora posto só na superfície do cérebro.

Peço-vos que entendam as minhas palavras! Tudo mais que provocar desencoraja- mento, devem ser um apelo tonificante a responder de fato à nossa missão na Igreja, missão que é primordial e essencialmente catequética. Essa resposta requer na nossa ação uma organização que esteja em sintonia concreta com as exigências do mundo moderno, primeiramente juvenil, que é a nossa porção especial.

Recordo, para completar o meu pensamento, que a ação catequética que, como já disse, é transmissão de vida, não pode limitar-se apenas às horas de religião em sala de aula, mesmo quando são bem realizadas.

Para falar dos jovens, a sua catequese, que tende a formar o cristão de hoje e ainda mais de amanhã, é feita também nas demais horas de ensino, na liturgia, na vida sacra- mental, nas associações, nas atividades extraescolares e recreativas, nos contatos pes- soais de direção espiritual, de orientação vocacional. Sem essa ação harmoniosa e inte- grativa corremos o risco, em muitos casos, de fazer o trabalho do motor que gira em

falso, ou oferecemos aos nossos jovens apenas um verniz, ao qual se referem os laicista acenados acima, que logo e facilmente desaparecerá.

 

Decisões corajosas e coerência de vida

É verdade que para obter isso tudo é preciso estudar, examinar as situações com sentido corajosamente realista, tirando delas as consequências lógicas, que poderão obrigar mudanças de alguns hábitos de trabalho, de organização e obras e, de certo modo, de conduzi-las, ações essas que podem custar sacrifícios de vários tipos, e não últimos, os de caráter psicológico. Mas serão sacrifícios salutares.

Não é preciso muito esforço para ver que tudo isso não é outra coisa que o trabalho próprio do “redimensionamento” tão desejado para a vida e a vitalidade da Congrega- ção. Trata-se, pois, de um reexame corajoso e completo que examine a incidência sobre os Irmãos e a incidência realmente apostólica sobre as almas, em todas as nossas obras, de modo que justifique o emprego de pessoal e de meios. Trata-se da busca de remédios parciais ou – se for preciso – também radicais para evitar insistir em atividades às vezes também fisicamente exaustivas, talvez espiritualmente extenuantes, mas apostolica- mente estéreis ou – em todo caso – com frutos apostólicos muito desproporcionais.

Ainda um pensamento para concluir. O nosso saudoso Padre Quadrio, em algumas de suas páginas endereçadas a neossacerdotes põe-nos em atenção sobre um perigo: a fé “dilacerada”. Falei acima de “integração” da fé na nossa vida; é justamente ela que evita os efeitos negativos da fé “dilacerada”, e isso especialmente na nossa missão de catequistas, de formadores de cristãos.

Qualifiquemo-nos, então, enriqueçamos a nossa preparação teológico-catequética; empenhemo-nos em atuar todo o projeto que nos é proposto para a sólida formação cristã dos nossos jovens e das almas que nos são confiadas. Antes ainda, porém, é ne- cessário, é essencial que a nossa fé seja íntegra, sólida, luminosa e irradiante: enfim, vivida. Só assim construiremos sobre as almas pelas quais deveremos responder.

Diz-se que a catequese não é transmissão de noções ou só de ideias sublimes, mas de vida. Há muita verdade nessa afirmação. Por isso, não se transmite o que se tem no cérebro, mas o que se possui no profundo da nossa vida. E a experiência no-lo confirma. A cada um de nós, tirar as consequências disso.

 

II.  COMO CELEBRAR O NOSSO ANO MARIANO

 

Se o centenário do martírio de S. Pedro e de S. Paulo é uma ocasião muito propícia para renovar a nossa fé e dar-lhe nova eficácia na nossa vida e no nosso apostolado, o centenário da Basílica de Maria Auxiliadora, tão intimamente ligado às nossas origens, ao nosso Santo Fundador e Pai e no centro da nossa Congregação, deverá fazer reviver em nós, em toda a sua luminosa pureza, com a fidelidade à nossa vocação salesiana, a devoção a Nossa Senhora Auxiliadora.

Dom Bosco era tomado por terna comoção ao recordar o que Nossa Senhora fizera por ele durante os duros acontecimentos da sua vida. E nós, olhando para os aconteci- mentos nem sempre fáceis, mas sempre fecundos de bem da Congregação nestes cem anos, não podemos deixar de um ter um idêntico sentimento de comoção e reconheci- mento por tudo o que Nossa Senhora fez por nós.

Já o Padre Albera, ao celebrar o Cinquentenário da Basílica, notava que a consagração do templo da Auxiliadora fora o início de uma nova época na nossa história: desde en- tão, multiplicaram-se prodigiosamente as vocações, surgiram em breves intervalos no- vas obras, desapareceram aos poucos as dificuldades para a aprovação da Congregação, começou-se a pensar nas missões e realizaram-se as primeiras expedições de missioná- rios (Lettere Circolari di D. Paolo Albera ai Salesiani, Sul Cinquantenario della Consacra- zione del Santuario di M. A. in Valdocco, XXIV).

O Padre Ceria no interessante capítulo dedicado a esse acontecimento no primeiro volume dos Anais da Sociedade Salesiana afirma: “A construção da Igreja de Maria Au- xiliadora tem na história da Sociedade Salesiana uma importância excepcional” (p. 87).

De onde vinha a excepcionalidade desse monumento? Não é difícil responder.

 

A Basílica, coração de Valdocco

 

A construção da Basílica de Maria Auxiliadora foi uma homenagem feita por Dom Bosco a Nossa Senhora pelo amor e o reconhecimento que ele tinha por Ela e pelo de- sejo de prestar-lhe homenagem, criando um novo e grandioso centro de culto onde, com a ajuda tangível de Nossa Senhora, iniciara e feito prosperar a sua obra.

As Memórias Biográficas conservaram-nos sobre isso um precioso testemunho. Uma noite de 1862, depois de ter confessado os jovens até pelas 11 da noite, Dom Bosco fez esta confidência ao clérigo Albera, que estava com ele: “Eu confessei muito e, na ver- dade, quase não sei o que tenha dito ou feito, tão preocupado estava com uma ideia, que me distraindo levava-me irresistivelmente para fora de mim. Eu pensava: a nossa Igreja é muito pequena; não contém todos os jovens ou eles ficam um apoiado no outro. Portanto, faremos uma outra, mais bela, maior, que seja magnífica. Daremos a ela o título de “Igreja de Maria Auxiliadora”. Eu não tenho um centavo, não sei aonde buscarei o dinheiro, mas isso não importa. Se Deus a quer, será feita” (MB VII, 333 s.).

O que encorajava Dom Bosco, comenta o Padre Ceria nos Anais, era que “a Igreja de Maria Auxiliadora fosse realmente o coração do Oratório. Fantasiava com a mente vari- adas formas de atividades que, à sombra da sua cúpula, se desenvolveriam entre um mundo de pessoas; saboreava antecipadamente a alegria que experimentaria vendo to- dos reunidos sob as suas naves num coro uníssono, cantando os louvores do Senhor e de Nossa Senhora, satisfazendo suas almas nas fontes da graça; imaginava a competição geral para celebrar nela com pompa as festividades maiores, expondo ali todas as mag- nificências do culto... Pelas suas portas sempre abertas haveria de passar grandes e pe- quenos o dia todo para ir rezar diante do Tabernáculo de Jesus Sacramentado e do qua- dro da Bem-Aventurada Virgem... Enfim, construída que estivesse a bela casa de Deus, ele contemplava no seu interior piedade, no exterior admiração festiva, em todos os

lugares serenidade de pensamentos e alegria de vida, e no vértice Nossa Senhora aben- çoando e dizendo: – eu estou aqui para ver e escutar todos os meus filhos do Oratório” (Ceria, Annali I, pag. 88 s.).

 

A Basílica, Alma Mater da Congregação

 

Dom Bosco, porém, mirou mais longe.

Nossa Senhora fora a inspiradora e o auxílio do seu primeiro apostolado sacerdotal. Agora, com o Santuário de Maria Auxiliadora, ele inseria profundamente e em posição central Nossa Senhora na vida e na história da mesma Congregação. Aquele templo de- via recordar que a sua instituição surgira pela inspiração e com o auxílio de Nossa Se- nhora. Os milagres que se tinham multiplicado para construir a igreja de Maria Auxilia- dora eram o sigilo posto por Nossa Senhora sobre a Congregação, que ele esperava com igual solicitude naqueles anos; eram a prova evidente e prodigiosa da sua origem sobre- natural.

Os Salesianos, ao repercorrer a história da sua família, que tinha suas origens à som- bra do Santuário de Turim, deviam encontrar no princípio de tudo Nossa Senhora e sen- tir que a devoção à Virgem era uma realidade essencial na vida da Congregação, em suas atividades de apostolado, na devoção individual e de modo especial na educação dos jovens.

O fato de o Santuário de Maria Auxiliador surgir na Casa Mãe, quase abraçado pelas suas construções e animado pela variedade de suas atividades apostólicas, devia expri- mir em termos que poderíamos dizer monumentais a parte dominante que Nossa Se- nhora Auxiliadora tivera e devia ter na Congregação. Era como o “Signum magnum” que estava no princípio e acima de todas as coisas salesianas.

O Card. Cagliero testemunhou que Dom Bosco lhe falou da sua ideia de construir uma igreja grandiosa e digna da Virgem em Valdocco. “Nossa Senhora, dizia Dom Bosco, quer que a honremos sob o título de Maria Auxiliadora: os tempos correm tão tristes que precisamos realmente que a Virgem Santíssima nos ajude a conservar e defender a fé cristã”.

– E sabes ou outro por que? –.

“Creio, respondeu Cagliero, que será a Igreja Mãe da nossa futura Congregação e o centro do qual se irradiarão todas as nossas outras obras em favor da juventude”. “Adi- vinhaste, confirmou Dom Bosco: Maria Santíssima é a fundadora e será a sustentadora das nossas obras” (MB VII, 334).

 

Centro espiritual e irradiação apostólica

 

O Santuário devia ser então o guardião do patrimônio espiritual da nossa Família, e os Salesianos, ali chegando ou retornando como peregrinos, haveriam de beber dele como de uma fonte pura e inesgotável, o espírito de Dom Bosco; aquele espírito que, ali mesmo, Nossa Senhora lhe revelara com a largueza da sua assistência e encontrara a expressão imediata na vida do Oratório de Valdocco.

A experiência de cem anos proclama que a finalidade que o nosso Pai se propusera foi alcançada, e nós assistimos, pode-se dizer todos os dias, a alegria de muitos Irmãos que na Basílica de Maria Auxiliadora sentem novamente a presença contínua e atuante de Nossa Senhora na Congregação e encontram a riqueza espiritual da tradição salesi- ana na sua luminosa e penetrante genuinidade.

Toda a história, da qual em parte ainda somos expectadores, demonstra que o San- tuário de Turim não foi apenas o guardião dos nossos grandes recursos espirituais, mas também o centro de onde se irradiou a força de expansão da Congregação. É significa- tivo o fato que do templo de Valdocco partiram todos os anos as expedições de missio- nários que difundiram largamente as nossas obras no mundo: até hoje 93 expedições.

O Santuário de Maria Auxiliadora não é, portanto, apenas uma cidadela de oração e prodígios ou meta de numerosas peregrinações, mas é ainda mais o ponto de irradiação de uma extraordinária empresa apostólica em contínuo devir, como é aquela represen- tada pela nossa Congregação.

É conhecido de todos que o estender-se nas nossas obras tenha se dado muitas vezes e de formas explícitas em nome de Nossa Senhora e que o mapa-múndi salesiano cor- responda em boa parte à moldura da devoção a Maria Auxiliadora; são duas realidades indissoluvelmente unidas. É belo constatar também que a multidão crescente dos nos- sos Irmãos espalhados pelo mundo todo encontra o seu ponto de encontro e união, a sua verdadeira casa, um coração materno, na Basílica de Maria Auxiliadora.

Ao ilustrar o lugar que ocupa a Igreja de Maria Auxiliadora na história da nossa Famí- lia, não me parece condescender em amplificações ou forçar a realidade.

Vivo há muitos anos junto ao Santuário; olhando de aqui para o amplo horizonte sa- lesiano do mundo e, ao mesmo tempo, tendo a possibilidade de ver pessoalmente o quanto acontece em partes distantes da Congregação, tive provas sem fim desse fato. Percebi-o na minha oração cotidiana no Santuário, na comoção de muitos irmãos dos quais ouvi dizer que a sua verdadeira vida salesiana começava depois de uma visita a Maria Auxiliadora, na devoção das peregrinações vindas de todas as partes do mundo, na nostalgia dos missionários que receberam o crucifixo neste lugar abençoado, no de- sejo de muitos salesianos distantes de vir ao menos uma vez a Valdocco.

Veem à mente (seja-me permitida a aproximação) as palavras do Profeta, que expri- mia o anseio do povo eleito de subir ao templo de Jerusalém: “o monte da casa do Se- nhor se erguerá no cume dos montes..., afluirão a ele todas as nações. Virão muitos povos, e dirão: Vinde, subamos ao monte do Senhor, à casa do Deus de Jacó, para que nos ensine os seus caminhos, e caminhemos nas suas veredas...” (Is 2,2).

Compreendeis, então, qual é o significado da nossa celebração centenária e o ponto elevado de vista em que devemos colocar-nos para compreender os seus apelos e rea- lizar os seus empenhos.

Voltemo-nos com espírito filial à Virgem Auxiliadora e apresentemos-Lhe o reconhe- cimento que nos liga a Ela como Salesianos individualmente e como Congregação, mas, na memória da consagração do templo, queremos reviver também toda a nossa história, queremos reencontrar a sagrada herança da nossa tradição espiritual, queremos ali- mentar a nossa confiança para o presente e o futuro da nossa Família.

 

Significado eclesial do Centenário

 

O apelo do Centenário é muito vivo e acentuado enquanto o Concílio deu uma con- firmação solene e autorizada ao título com que Dom Bosco quis honrar no Santuário mariano construído por Ele.

O título de “Maria Auxiliadora” recorda o caráter social da devoção a Nossa Senhora, considerando-a não só em relação com cada cristão, mas em relação com a realidade do “povo de Deus”, da Igreja que vive, defende e traz a todos os homens a mensagem da salvação.

As nossas celebrações, à luz do Concílio, fazem-nos entender aquilo que não enten- deram os que há cem anos assistiram à consagração da Igreja, e que Dom Bosco também intuíra e profetizara.

Para nós, hoje, honrar de modo especial Maria Auxiliadora, significa inserir-nos mais profundamente na vida da Igreja, significa, neste período de renovação geral, o impulso sobrenatural com que a Congregação deu os seus primeiros passos e enfrenta, ainda, sob o sinal da Auxiliadora, a missão cujo mandato a Igreja nos renova em nossa época.

Estou certo de que entrastes plenamente nessas grandes perspectivas e vos prepa- rais com filial fervor, no que vos diz respeito, para realizar o programa de iniciativas que este acontecimento nos sugeriu e do qual se fala detalhadamente em outra parte dos “Atos”.

Ao mesmo tempo, contudo, permiti-me esclarecer melhor qual é o meu pensamento para que o ano mariano tenha um tom adequado e chegue aos resultados concretos e seguros que Nossa Senhora deseja de nós; deixai-me iluminar mais profundamente a realidade fundamental em que gostaria que a nossa família alimentasse a sua vida espi- ritual neste ano centenário.

Saliento, primeiramente, que o nosso trabalho e empenho não se reduza a manifes- tações exteriores, mas seja voltado com o máximo esforço à renovação interior da au- têntica devoção mariana, como no-la apresenta o Concílio Ecumênico Vaticano II, no capítulo VIII da Constituição sobre a Igreja, com garantias seguras de verdade que com- petem ao supremo Magistério da Igreja, na sua aplicação mais solene e autorizada.

Vejamos juntos as grandes linhas.

 

Jesus e Maria na história da salvação

 

Por livre e providencial decreto divino, Maria Santíssima é indissoluvelmente unida a Cristo Salvador ao longo de todo o arco da história da salvação humana, pela promessa do Salvador no Paraíso terrestre, em que é profetizada com o Filho na luta contra sata- nás (Gn 3,15), até a conclusão da história da salvação, na vinda final de Cristo Juiz.

Com plano sapientíssimo, Deus desenvolveu em todos os livros da Sagrada Escritura um harmonioso plano doutrinal em vista da nossa salvação.

No plano salvífico divino, Maria Santíssima põe fim às profecias messiânicas, reali- zando-as com a sua maternidade divina, mediante o seu “fiat”, que deu “a Vida à huma- nidade”, e sendo associada na fé e na obediência, “como Serva do Senhor, à pessoa e à obra do seu Filho” (LG 56).

À luz da Sagrada Escritura, o Concílio apresenta Maria Santíssima associada estreita- mente ao Filho divino nos mistérios da infância (n. 57) e, sobretudo, durante a vida pú- blica de Jesus: seja em Caná, com a sua intercessão eficaz no primeiro milagre de Jesus feito aos primeiros crentes, seja durante a pregação de Jesus; seja, sobretudo, no Calvá- rio junto à Cruz do Filho que se imolou pela salvação humana. Maria, de fato, ensina o Concílio “conservou fielmente a sua união com o Filho até a Cruz, em que, não sem um plano divino, esteve com ele (Jo 19,25) padecendo profundamente com o seu Filho único, e associando-se com coração de mãe ao Seu sacrifício, consentindo com amor na imolação da vítima que d'Ela nascera; finalmente, Jesus Cristo, agonizante na cruz, deu- a por mãe ao discípulo, com estas palavras: mulher, eis aí o teu filho (cf. Jo 19, 26)” (n. 57).

A associação de Maria à obra da salvação humana continua também depois da res- surreição do Filho. Maria, com efeito, está presente no Cenáculo, com os Apóstolos e os primeiros seguidores de Cristo, e implora com as suas orações o dom do Espírito, que já a tinha recoberto no dia da Anunciação.

Enfim, a Imaculada Virgem, concluído o curso da sua vida terrena foi assunta à glória celeste em alma e corpo e exaltada pelo Senhor como Rainha da Universo, para que fosse plenamente conformada com o seu Filho, Senhor dos dominadores e vencedor do pecado e da morte (n. 59).

Deus não podia fazer exaltação maior de uma criatura. Ele, que poderia fazer tudo sozinho, quis servir-se da contribuição materna de Maria para dar-nos o Salvador, que associou a si a Mãe, qual nova Eva, em todo o curso da sua missão salvífica terrena e celeste, em ordem a todas as graças da Redenção.

 

Mãe e Auxiliadora dos Redimidos

 

Maria, com a sua maternidade divina, dando-nos Jesus, deu-nos a vida sobrenatural e concretizou para nós uma maternidade espiritual, que excede a maternidade simples- mente natural, quanto a vida da graça excede a vida da natureza. Ela também exerceu influxo materno sobre a Igreja, pois é Mãe de Jesus, Cabeça e fundador da Igreja, é a primeira crente e, ainda, a personificação da Igreja, sociedade dos crentes.

Entretanto, embora a missão terrena de Maria seja tão importante para a salvação humana e para a Igreja, Maria Santíssima não deve ser considerada apenas uma pessoa histórica do passado. Como Jesus, Ela desde a sua sede gloriosa, continua a sua obra salvífica universal, em ordem a “todas as graças da salvação”.

Com efeito, a Lumen Gentium ainda afirma: “A maternidade de Maria na economia da graça perdura sem interrupção, desde o consentimento, que fielmente deu na anun- ciação e manteve inabalável junto à cruz, até a consumação eterna de todos os eleitos. De fato, depois de elevada ao céu, não abandonou esta missão salvadora, mas, com a sua multiforme intercessão, continua a alcançar-nos os dons da salvação eterna. Cuida,

com amor materno, dos irmãos de seu Filho que, entre perigos e angústias, caminham ainda na terra, até chegarem à pátria bem-aventurada. Por isso, a Virgem é invocada na Igreja com os títulos de advogada, auxiliadora, socorro, medianeira” (n. 62).

É, portanto, o próprio Concílio quem nos apresenta Maria Santíssima como Auxilia- dora de todos os Redimidos, aos quais com “a sua materna intercessão obtém as graças da salvação eterna”. Nada, pois, é mais adequado da doutrina mariana conciliar para inculcar-nos as sólidas convicções, que nos devem orientar neste Ano da Fé para uma frutuosa comemoração do nosso Centenário Mariano.

Se Jesus Cristo não quis deixar Maria Santíssima de lado, poderá o sacerdote, o reli- gioso, o educador, o apóstolo prescindir na sua vida e no seu apostolado do materno auxílio d’Aquela que Deus quis associada à sua mesma Redenção e à continuação em todas as formas de trabalho apostólico?

Como toda a Igreja, também todo salesiano e educador deve, segundo a exortação do Concílio, olhar para a Virgem, que gerou Cristo, concebido justamente pelo Espírito Santo e nascido d’Ela para nascer e crescer também no coração dos fiéis por meio da Igreja. A Virgem, com efeito, em sua vida foi modelo do amor materno, do qual devem ser animados todos os que, na missão apostólica da Igreja, cooperam para a regenera- ção dos homens (n. 85).

 

Devoção mariana autêntica

 

À luz dessas verdades basilares, hauridas na mesma revelação divina, o Concílio fixa as normas seguras da nossa devoção mariana e apresenta os critérios a seguir no nosso apostolado mariano em vantagem dos fiéis, e nós também podemos dizer dos jovens.

Em vez de afastar da devoção mariana, como foi falsamente insinuado por certa im- prensa e como alguns gostariam, mas sem fundamento, o Concílio define solenemente a legitimidade do culto mariano: sobre ele, de fato, diz-se que Maria, “porque Mãe San- tíssima de Deus, é justamente honrada pela Igreja com culto especial” (n. 66).

Depois, muito concretamente, o Concílio apresenta os elementos e as manifestações essenciais do culto mariano, que o devem exprimir também hoje: veneração, amor, ora- ção e imitação.

Não me detenho a ilustrar essas características em particular, mas é fácil perceber que tal devoção na sua genuinidade “não consiste numa emoção estéril e passageira, mas nasce da fé, que nos faz reconhecer a grandeza da Mãe de Deus e nos incita a amar filialmente a nossa mãe e a imitar as suas virtudes (n. 67).

A fim de inculcar e formar para a verdadeira devoção mariana, sacerdotes, apóstolos, educadores são exortados “instantemente” pelo Concílio ao estudo da Sagrada Escri- tura, dos Santos Padres e Doutores e das liturgias da Igreja, feito sob a orientação do Magistério. “Expliquem como convém – continua o Concílio – as funções e os privilégios da Santíssima Virgem, os quais dizem todos respeito a Cristo, origem de toda a verdade, santidade e piedade”. E o Concílio conclui inculcando que “evitem com cuidado, nas pa- lavras e atitudes, tudo o que possa induzir em erro acerca da autêntica doutrina da Igreja os irmãos separados ou quaisquer outros” (n. 67).

Estas palavras claras convidam-nos a uma devoção mariana sólida, séria, alheia a qualquer forma de sentimentalismo vazio ou exagero: Nossa Senhora, “serva do Se- nhor”, deve ser mediação que leva a Cristo.

Esta é certamente a linha que seria proposta pelo nosso Pai que, se foi um apaixo- nado e incansável propagador da devoção mariana, também foi devoto e dócil filho da Igreja.

Limitei-me a estas indicações fundamentais do Concílio, que acredito serão suficien- tes para convencer-nos de que a linha demarcada por ele não é a do esquecimento de Nossa Senhora, da abolição indiscriminada das suas estátuas e imagens, mas do seu Ro- sário e de outras venerandas práticas devocionais marianas, garantidas pela tradição cristã e aprovadas pela Igreja.

A linha do Concílio (não a das “perturbações”, para usar a imagem de Paulo VI), linha que todos devemos percorrer, é a da “da fé, que nos faz reconhecer a grandeza da Mãe de Deus e nos incita a amar filialmente a nossa mãe e a imitar as suas virtudes” (n. 67); é a via em que se têm “em grande estima as práticas e exercícios de piedade para com Ela, aprovados no decorrer dos séculos pelo magistério” (ib.); é a via em que se deve evitar “com cuidado, tanto um falso exagero como uma demasiada estreiteza na consi- deração da dignidade singular da Mãe de Deus” (ib.).

“A Mãe de Jesus, segundo a afirmação do Concílio, assim como, glorificada já em corpo e alma, é imagem e início da Igreja que se há de consumar no século futuro, assim também na terra brilha como sinal de esperança segura e de consolação, para o Povo de Deus ainda peregrinante, até que chegue o dia do Senhor” (n. 68).

 

Empenhos doutrinais para o Ano mariano

 

De quanto o Concílio nos disse é fácil definir os nossos empenhos para o Ano mariano que somos chamados a viver.

Eles concretizam-se em três planos estritamente relacionados.

Primeiramente, no plano doutrinal, ele comporta uma atividade intensificada de es- tudo, pregação e instrução para tornar acessível e familiar a nós e aos outros a doutrina mariana conciliar, juntamente com o que se refere à história mariana da nossa Congre- gação, ao pensamento e aos exemplos do nosso santo Fundador.

Com essa intenção quer responder, sobretudo, o concurso mariano proposto a toda a nossa juventude, nos vários níveis de cultura, e que deve ser realizado em cada Casa, em cada Inspetoria e em cada Nação. O nosso concurso deve ser visto não como exibição exterior ou apenas como uma envolvente competição com prêmio, mas como um ins- trumento particularmente adequado à psicologia juvenil, para fazer assimilar um dos elementos mais importantes da nossa ação educativa cristã.

Gostaria que, quando vierem a Turim na festa da Imaculada para a solene premiação, os vencedores nacionais do concurso fossem realmente a expressão do interesse extra- ordinário feito em toda a Congregação para bem iluminar a devoção a Nossa Senhora. Será o mais belo fruto do Centenário para nós e para a nossa juventude.

É evidente que o convite que fazemos aos jovens supõe, antes, o interesse e o estudo dos Irmãos; eles, através da sua preparação doutrinal e espiritual, devem suscitar o en- tusiasmo dos jovens e ser capazes de comunicar com clareza e eficácia os ensinamentos que lhes darão o exato e fecundo reconhecimento da devoção mariana.

Se hoje se evidencia certa crítica em relação ao culto mariano, isso se deve ao fato de ele ser com frequência pouco iluminado por uma doutrina segura e sólida. A superfi- cialidade e o falso sentimento criaram uma falsa devoção.

 

Empenhos de devoção

 

No plano devocional nós temos toda a riquíssima herança da tradição eclesiástica e salesiana, que nos abre os recursos do culto propriamente litúrgico, que culmina no di- vino sacrifício, e daqueles que são chamados “exercícios piedosos”.

Sabemos que o Concílio renovou muitas formas e expressões da piedade cristã e que- remos aderir a elas com absoluta fidelidade também em relação ao culto mariano; por esse caminho, queremos realizar a renovação da nossa vida religiosa num dos seus ele- mentos mais característicos.

Podem ter existido no passado algumas práticas que se reduziram a celebrações ex- teriores sem alma e sem eficácia na vida cristã; não pretendemos lamentar o passado nesses casos, e seja bem-vindo o sopro reanimador do Concílio para fazer-nos reencon- trar a expressão genuína da nossa fé. Por isso, exorto-vos a favorecer com coragem as iniciativas promovidas pela Igreja.

Não gostaria, todavia, que a legítima exigência de renovação fizesse assumir uma ati- tude de indiferença ou pior ainda de desprezo pelas práticas marianas que são um com- plemento necessário dos grandes atos litúrgicos e um alimento para o nosso fervor. O próprio Concílio afirma para se ter “grande estima as práticas e exercícios de piedade para com Ela, aprovados no decorrer dos séculos pelo magistério” (LG 67).

Não quero fazer um elenco dessas práticas que vos são bem conhecidas, mas desejo apenas dizer a todos: não sejamos muito fáceis em nos desembaraçar do patrimônio tradicional que deu à nossa vida religiosa, ao nosso apostolado, à nossa ação educativa um caráter claramente mariano, tenhamos sempre presente também que através do fervor da nossa devoção mariana se conserva o espírito autêntico da nossa Congregação e a sua capacidade de conquista missionária.

Parece-me oportuno, enfim, recordar-vos que a nossa devoção mariana renovada nos levará a realizar em nós o quanto diz o precioso documento do Capítulo Geral XIX sobre a nossa vida religiosa e Nossa Senhora: “Em sua vida pessoal, o Salesiano seja fiel ao dar à Virgem Maria o lugar que lhe compete para uma fecunda expansão sobrenatu- ral dos seus afetos e a irradiação da sua pureza” (ACG XIX, p. 85).

O Salesiano terá também como confiar a sua fidelidade aos compromissos do seu estado “toda manhã, Àquela que a Igreja chama de Virgem fiel, modelo e auxílio. Ela foi a religiosa de Deus por excelência, pobre, casta e obediente para exercer com plenitude a sua função de Mãe. Ela, portanto, é a nossa Auxiliadora, a benigníssima Virgem Maria, educadora materna das virtudes religiosas (ib. p. 90).

 

O Rosário, uma prática que deve florescer

 

Entretanto, uma prática mariana que gostaria de recomendar-vos de modo especia- líssimo com o mesmo coração de Dom Bosco é o santo Rosário.

Nada nos autoriza a deixá-la desvalorizar-se, nem o magistério da Igreja (basta recor- dar as numerosas exortações também recentes de Paulo VI para essa prática), nem as nossas Constituições e o ensinamento de Dom Bosco, nem o exemplo das grandes almas que neste tempo traçaram mais luminosamente o novo caminho da fé: recordemos por todos o Papa João XXIII.

Exorto-vos cordialmente a manter sempre viva a récita do santo Rosário, que neste ano de modo particular deve recolher em coro todas as vozes das nossas Casas, dos Irmãos, dos jovens, dos fiéis das nossas paróquias, para honrar Nossa Senhora. Quando se pensa nas aspirações espirituais que tantos Salesianos têm confiado ao Rosário e aos efeitos admiráveis dessa oração para o sucesso das nossas obras, experimenta-se grande pena e grave alarme no temor que ela possa ser transcurada.

Neste ano centenário, gostaria também que o Rosário, recitado cotidianamente em comunidade ou a sós, tivesse duas intenções especiais: agradecer a Nossa Senhor pelo que Ela fez em favor da nossa Família nestes cem anos e obter com essa récita uma renovação do fervor mariano nos Irmãos e nas almas pelas quais trabalhamos.

O nosso Fundador e Pai, dedicando a Nossa Senhora do Rosário a primeira humilde capela dos Becchi na casa de seu irmão José, queria exprimir o seu reconhecimento à Virgem por ter guiado a sua juventude até o sacerdócio; a récita do Rosário neste ano renovará a expressão do reconhecimento de toda a Congregação a Nossa Senhora e nos dará segurança e conforto na grande obra de renovação que iniciamos após o Concílio.

 

Empenho apostólico

 

Também no plano apostólico o centenário mariano abre-nos perspectivas amplas e concretas. A difusão da devoção mariana, e mais precisamente da devoção a Nossa Se- nhora sob o título de Maria Auxiliadora, deve ser um empenho mais acentuado durante as nossas celebrações.

Dom Bosco gozou de uma extraordinária predileção e proteção de Nossa Senhora, mas ele mereceu esse privilégio sendo o apóstolo da devoção mariana.

Os primeiros Salesianos seguiram o seu exemplo e recolheram a herança do nosso Pai estendendo ao mundo todo um verdadeiro apostolado mariano, como documentam os relatórios enviados a Turim nos últimos meses por muitas Inspetorias.

Desde o Santuário de Valdocco, a glória da Auxiliadora difundiu-se realmente em todo o mundo, como a própria Virgem predissera a Dom Bosco.

Precisamos caminhar com ritmo mais intenso nessa gloriosa esteira durante o Cen- tenário, recordando as palavras de Dom Bosco, que soam como promessa consoladora muitas vezes realizada: “Propagai a devoção a Jesus Sacramentado e a Maria Auxiliadora e vereis o que são os milagres”. Também o milagre moral da cristianização e santificação

da juventude do nosso tempo será possível com as energias sobrenaturais eficacíssimas, bebidas nas fontes da SS. Eucaristia e da devoção mariana.

Para oferecer um programa ainda mais exato ao nosso apostolado durante o Cente- nário, depois de ter rezado muito, venho propor-vos três iniciativas que devem ser uma homenagem oficial e duradoura da Congregação à Virgem. Elas assumem uma impor- tância especial na hora presente no quadro geral da nossa renovação; e eu, enquanto as ofereço como presente a Nossa Senhora, peço a sua bênção e o seu auxílio para que possam ter um seguro e feliz sucesso.

 

a.  Expedição missionária

Desejo realizar, primeiramente, o voto expresso pelo Capítulo Geral XIX que cito tex- tualmente: “Seja favorecido o desejo daqueles que pedem para ir em missão, enquanto isso for possível e eles tenham os dotes. O mesmo se diga para aqueles que desejassem prestar o seu trabalho por ao menos cinco anos, desde que sejam considerados idôneos” (ACG XIX, 180).

Estabeleci, pois, de acordo com os Superiores do Conselho, organizar até 1968 a pri- meira expedição missionária de Sacerdotes que se colocam à disposição da Congregação para um ministério de cinco anos em algumas das nossas regiões mais carentes da Amé- rica Latina. Por isso, lanço um apelo àqueles de vós que sentem no coração o gosto de se oferecerem por não mais de cinco anos e exercerem as várias formas de ministério (não se trata de ir dar aulas) naquelas zonas da América Latina salesiana onde é urgente o trabalho de sacerdotes.

A iniciativa encontra sua razão na situação precária em que se encontra o catolicismo na América do Sul pela grave insuficiência de clero, no apelo acalorado que o Papa nos dirigiu muitas vezes e a quem prometemos responder, seguindo o exemplo de outras instituições religiosas e leigas que nos precederam nessa retomada missionária.

Consta-me que uma das maiores ordens religiosas da Igreja se prepara para elevar o número dos seus missionários de 17% a 33% do número global dos seus religiosos. O fato é muito indicativo. Pessoalmente, do que pude ver nos últimos anos, tirei a convic- ção de que é profundamente verdadeira a afirmação de um ilustre religioso: “As Con- gregações florescem na medida em que as anima um autêntico espírito missionário”.

Sou confirmado nessa convicção ao constatar a disponibilidade e generosidade dos jovens do nosso tempo ao sacrifício. Eles detestam a rotina que aburguesa a vida cristã nivelando-a, e ainda mais a religiosa que é entrega, e acaba extinguindo o ideal. Os jo- vens muitas vezes nos levam pelo caminho do generoso, sacrificado e autêntico serviço missionário.

É do vosso conhecimento que trinta jovens – estudantes, operários, empregados, profissionais – na tentativa de atuar a Populorum Progressio foram às suas custas da Itália ao Brasil por quatro meses, para levar uma ajuda concreta à nossa missão de Po- xoréo no Brasil. É uma mensagem de coragem e sacrifício alegre que ficamos contentes não só de aplaudir, mas de acolher: isso nos vem daqueles que educamos apostolica- mente.

Justamente das várias missões do Brasil, e posso dizer não menos de muitos outros países da América Latina, chegam-me vozes sempre mais acaloradas e implorantes. Re- petem-se frases como estas: “Somos sempre menos, envelhecidos, doentes, cansados e muitas vezes desencorajados. Quem tomba, nem sempre é substituído. Entretanto, a população cresceu, os operários evangélicos diminuíram e continuam a diminuir, as dis- tâncias dividem e dispersam as nossas forças. Ao contrário tornam-se sempre mais nu- merosos, aguerridos e equipados missionários de outras crenças. Ajude-nos a Congre- gação antes de uma ruína. Não pedimos pão para saciar a fome: pedimos pão para so- breviver”. Como se pode ficar insensíveis diante dessas súplicas que correspondem à verdade, como nos confirmam não só os Inspetores e os nossos Bispos, mas também os Superiores Regionais na medida em que entram em contato com a penosa realidade?

Prevejo a objeção de alguém: “Mas também em nossa Inspetoria temos escassez de pessoal, as vocações não são muito numerosas”. Quem raciocinasse assim, creio que mudaria sem mais de parecer se tivesse como perceber pessoalmente algumas situa- ções em que vivem, sofrem e tombam os nossos Irmãos naquelas regiões. Não há com- paração, por exemplo, entre a realidade da Europa e a de algumas Inspetorias da Amé- rica Latina. Se no Velho Continente os braços escasseiam, em algumas daquelas regiões já faltam totalmente. Por outro lado, se se reduzem em algumas Inspetorias as ativida- des que absorvem pessoal sem um rendimento apostólico proporcionado, não vem daí grande prejuízo, tanto mais se na economia do conjunto se sabe dosar e integrar com sabedoria pessoal e obras com leigos preparados, capazes, desejosos de colaborar apos- tolicamente. Mas recusar ajuda àqueles irmãos significaria a perda talvez irreparável de milhares e milhares de almas das quais a Congregação é responsável diante da Igreja, deixando não ouvidas as súplicas dos irmãos, das almas, do Papa.

Caríssimos Irmãos e Filhos, devemos abrir os olhos para a realidade e ver além dos limites restritos da nossa Casa, da nossa Inspetoria, tirando disso as consequências: é caridade, ou melhor, parece-me poder afirmá-lo, é justiça. A Congregação, dizia-o outra vez, não é feita de compartimentos estanques.

Dessa compreensão, dessa eficaz abertura e sensibilidade os Irmãos das várias Inspe- torias receberão novo impulso de generosidade, de confiança renovada, de otimismo construtivo: a Congregação verá em toda a sua riqueza a verdade da palavra de Cristo: “Dai e vos será dado”.

Sinto que Dom Bosco, depois de intuir no século passado a importância da evangeli- zação na América Latina, pediria à Congregação que assumisse ainda essa responsabili- dade que nos é imposta também pela nossa posição naquelas repúblicas.

Sei que se trata de algo novo, que requer sacrifícios e também decisão, mas eu o ponho sob a proteção de Maria Auxiliadora e estou certo de que Ela abençoará a inicia- tiva compensando os eventuais sacrifícios que as Inspetorias farão no momento.

Sobre isso quero recordar aqui a todos, Superiores e simples Irmãos, o que me dizia um grande arcebispo: “Todas as vezes que um dos meus clérigos, mesmo às vésperas do Sacerdócio, me pede seriamente para ir em missão nunca recuso a licença: o Senhor compensou-me com o fervor dos seminaristas e sempre com outras ótimas vocações. Devemos agir movidos por uma viva fé e uma grande caridade”.

Para ir logo ao plano da execução, convido os Irmãos que quiserem acolher o meu apelo a fazer o seu pedido pessoalmente a mim. Será para mim motivo de grande alegria

receber essas ofertas. É bom ter presente que o convite se dirige a Sacerdotes até os 40 anos, por 5 anos.

Possivelmente não se poderão acolher logo todos os pedidos, pela complexidade dos interesses aos quais é preciso adequar, mas ter-se colocado à disposição da grande causa já será um mérito que Nossa Senhora levará em conta.

Com este apelo, desejo dizer também uma palavra paternalmente clara. Os Irmãos escolhidos serão devidamente preparados para a missão a que forem destinados, mas cada um deles deve saber que irá ao encontro de sacrifícios, que não se trata de uma evasão para resolver situação particulares de intolerância, descontentamento, instabili- dade e que tais, ou para conhecer países e povos novos. Vai-se à América para dar a colaboração pessoal ao ministério dos Irmãos, convencidos de que tudo isso importará sacrifícios e renúncias não só de índole física ou material, mas talvez ainda mais de ín- dole psicológica: é o preço com que se conquistam as almas. Dom Bosco dizia-o aos missionários que iam justamente para a América.

 

b.  Centro Juvenil

A segunda obra que gostaria de ver realizada por ocasião do Centenário é a de um Centro Juvenil em todas as Inspetorias, que corresponda plenamente às ideias do Capí- tulo Geral. Também nisso, se trata de uma obra cuja realização foi ardentemente dese- jada e pedida, quando deliberou o relançamento do Oratório como Centro Juvenil capaz de responder às exigências da juventude de hoje e às expectativas que corretamente a Igreja tem sobre a nossa Congregação (ACG XIX, p. 134-135, p. 103, p. 137).

Estamos todos persuadidos da sua utilidade, ou melhor, da sua necessidade e urgên- cia para adequar o nosso apostolado juvenil às exigências do nosso tempo: é preciso romper o círculo das dificuldades que, naturalmente, se apresentam para essa empresa, e passar à atuação.

Quando em 8 de dezembro de 1841 Dom Bosco começou a sua obra, podia ter per- plexidades muito mais graves do que as nossas, como as teve em seguida para outras iniciativas. Rezou a Ave Maria com Bartolomeu Garelli e sentiu o impulso inicial, com o auxílio de Nossa Senhora. Não gostaríamos, também nós, de fazer um ato de fé e edificar ao Senhor uma obra que pode marcar uma reviravolta no nosso apostolado entre os jovens?

Está em andamento o estudo para o redimensionamento, e o Centro Juvenil deve ter a sua precisa e justa posição entre as outras obras.

Não se pede para isso uma nova obra, mas a transformação ou substituição ou a ade- quação oportuna de uma obra já existente às novas exigências dos jovens. Sei que em várias Inspetorias o Centro Juvenil já é uma realidade bela e viva; em outras, está em fase avançada de realização. Avante, pois, com coragem, confiança e aderências às exi- gências apostólicas de hoje.

 

c.  Casa de Exercícios Espirituais

Dirijo um último apelo sobre a Casa dos Exercícios Espirituais. O Capítulo Geral XIX deliberou: “Cada Inspetoria tenha possivelmente uma casa de Exercícios Espirituais para

os Irmãos e para todas as categorias de pessoas que são confiadas aos nossos cuidados (alunos, cooperadores, ex-alunos) e para todos os outros jovens” (ACG XIX, p. 169). O voto do Capítulo Geral é largamente convalidado pela experiência dos últimos anos. Onde os Irmãos e os jovens podem ser cuidados espiritualmente com retiros, congres- sos, encontros, etc., em Casas intencionalmente equipadas para isso, foi constatado um grandíssimo proveito para a qualificação espiritual e apostólica.

Gostaria de recordar que a atividade dos retiros, tanto longos como curtos, não só para os Irmãos, mas para os fiéis em geral, é desejada pelas nossas Constituições (Const. I, art. 8) e que não será possível atuá-la, em nossa sociedade moderna evoluída, sem os necessários aparelhamentos e a disponibilidade de ambientes. Também essa obra deve ser tida em adequada consideração na programação do redimensionamento. Iniciemo- la em nome de Nossa Senhora; Ela garantirá o seu bom êxito.

Caríssimos Irmãos e Filhos,

como vedes, as três iniciativas que vos propus, eminentemente espirituais e salesia- namente apostólicas, querem ir além do Centenário da Basílica. Serão os dons que, du- rando no tempo, atestarão perenemente a nossa fidelidade a Dom Bosco na devoção a Maria, tecida, como queria Dom Bosco, de obras mais do que de palavras, e ao mesmo tempo enriquecerão a Congregação no seu espírito e na sua missão apostólica.

A Virgem Auxiliadora, gosto de repeti-lo, apreciará a nossa homenagem filial, man- tendo sobre nós a sua proteção materna no futuro como fez no passado.

Indo à conclusão, quero recordar-vos duas iniciativas cuja realização será acompa- nhada diretamente pelo Conselho Superior. São duas iniciativas que, enquanto respon- dem a um desejo comum, alcançam quase valor simbólico: por isso, concluo com elas. Trata-se da restauração da fachada da Basílica de Maria Auxiliadora e da Exposição Sa- lesiana permanente na cripta da Basílica.

Quanto à fachada, não se trata de grandes transformações, mas de retoques úteis; serão eliminados alguns elementos decorativos acrescentados ao projeto original sem respeito à pureza do estilo, e serão reparadas as partes que sofreram a deterioração do tempo e das intempéries. Uma fachada renovada, em claras linhas arquitetônicas e em sólidos elementos construtivos.

Gosto de ver nessa renovação quase um símbolo da nossa devoção a Maria Auxilia- dora neste centenário, refeita na clareza e solidez dos princípios e nas formas que a Igreja nos propõe e que Dom Bosco inseriu na espiritualidade salesiana.

Com a restauração da fachada, os peregrinos que chegarem a Turim encontrarão uma novidade: uma moderna exposição salesiana na cripta da Basílica.

Queremos oferecer como que uma imagem visual da nossa Congregação, queremos mostrar que, sob a guia de Nossa Senhora, realizou-se a prodigiosa missão de Dom Bosco, quais são hoje as estruturas e a organização da nossa tríplice Família, quais ativi- dades apostólicas realiza na Igreja para responder às exigências do mundo moderno, qual o espírito que a anima e as fontes mesmas desse espírito.

Será uma síntese de toda a grande e providencial história salesiana dominada pela constante presença de Nossa Senhora, onde ela começou e de onde continua a tirar o seu impulso animador para o seu serviço na Igreja.

Caros Irmãos, todos os dias, quando estou em Turim, ajoelho-me a rezar diante de Maria Auxiliadora, procurando não só ter presentes nas minhas intenções as necessida- des da nossa família, mas querendo de algum modo representar diante da Virgem, com a minha pessoa, todos os que estão longe.

A minha atenção é atraída, há algum tempo, por uma circunstância especial que ori- enta a minha oração. Diante do quadro taumaturgo de Maria Auxiliadora, no presbité- rio, eleva-se e arde o grande círio do Ano da Fé. A cena que se oferece ao meu olhar faz- me pensar que neste ano todos os Irmãos, os nossos jovens e os nossos fiéis, vivem espiritualmente presentes no Santuário da Auxiliadora reavivando a chama da Fé em união com toda a Igreja. A nossa Congregação, tenho certeza disso, sairá renovada da- quele que quase gostaria de chama “ano santo salesiano” para realizar a tarefa que lhe cabe entre os homens do nosso tempo.

Durante a minha participação no Sínodo Romano entendi esse dever como mais grave e mais urgente, mas compreendi também mais claramente a grandeza da missão que Dom Bosco abriu para a nossa Congregação. A Virgem Auxiliadora guie-nos para realizá-la com humilde e corajosa fidelidade.

Aceitai a minha saudação afetuosa. Confio na vossa fraterna e filial lembrança in Do- mino.

Luigi Ricceri
Reitor-Mor

 

NOTÍCIAS DE FAMÍLIA: SOLIDARIEDADE FRATERNA E IMPULSO MISSIONÁRIO

Luís Ricceri
Atos do Conselho Superior 251

  1. Encontros Continentais dos Inspetores. – 2. Os nossos irmãos do Vietnã. – 3. O terremoto da Sicília.

– 4. Caridade mais atenta, mais ativa, mais generosa. – 5. A expedição missionária do Centenário. – 6. Respostas ao apelo missionário do Reitor-Mor. – 7. O reconhecimento da América Latina

Turim, 1º de fevereiro de 1968

Caríssimos Irmãos e Filhos.

Escrevo estas linhas enquanto me preparo para o voo à Índia, onde – em Bangalore

– será realizado o primeiro dos três Encontros Continentais dos nossos Inspetores. Conclui-se, assim, nestes dias, o período de cerca de três meses nos quais os Superi-

ores do Conselho, além de terem tomado muitas providências de administração ordiná-

ria, também estudaram um número notável de problemas de interesse geral para a Con- gregação, alguns dos quais terão a sua solução em breve tempo e outras num futuro próximo.

Foram preparados e elaborados os programas para os Encontros Continentais dos Inspetores em 68; foram programados os cursos para Mestres dos Noviços, os Encontros interinspetoriais sobre as vocações e os aspirantados na Ásia e na América e os Encon- tros para Ecônomos; foram fixados os princípios fundamentais para o estudo prepara- tório da reforma do nosso Ateneu em conformidade com as disposições que serão ema- nadas proximamente pela Congregação para a Educação Cristã; examinou-se o plano quinquenal de qualificação.

Esgotada esta fase, os Superiores Regionais retomarão a atividade nas Inspetorias de sua pertinência para encontrar-se em Turim depois dos Encontros dos Inspetores e par- ticipar das solenes celebrações do Centenário na Festa de Maria Auxiliadora.

 

1.  Encontros Continentais dos Inspetores

 

Em Bangalore encontraremos alguns Superiores do Conselho e os responsáveis do governo das Inspetorias de todo o Oriente, para tratar dos problemas da Congregação naquele continente à luz do Capítulo Geral e do Concílio.

Olhando apenas um instante para o mapa do Oriente e seguindo os acontecimentos daqueles Países que estão com frequência no centro do interesse mundial, podereis perceber logo a atualidade, a importância e a complexidade da tarefa que nos espera.

Nesse encontro não pretendemos encontrar, sem mais, a solução de todas as dificul- dades urgentes naquelas nações, mas temos confiança que o confronto de tantas expe- riências, o rever à luz do pós-Concílio e do pós-Capítulo tantas situações, quer de vida religiosa quer de apostolado salesiano, servirá para aplainar o caminho, indicar metas e métodos para ao menos dar início à solução de tantos problemas.

Atuaremos assim o que é, em síntese, a tarefa desses encontros: três anos depois do Capítulo Geral examinar o que dele se realizou, para completar e aperfeiçoar a sua rea- lização em vista do não distante Capítulo Especial.

O redimensionamento, de que tanto se fala, que é essencialmente uma operação de vida para a Congregação e empenha todos os membros, receberá desses encontros luz e vigor.

Para todos esses grandes Encontros Continentais (Bangalore para o Oriente: 20-26 de fevereiro; Como para a Europa e outros Países: 16-23 de abril; Caracas para a América Latina: 5-12 de maio), conto com a vossa colaboração ativa de oração. É supérfluo dizer o quanto é preciso de luz, daquela luz que vem do alto, para ver claro, entender bem os sinais dos tempos com as especiais exigências locais e encontrar o caminho adequado que realmente resolva os problemas, e de maneira mais oportuna e fecunda.

A abertura das festas centenárias da Basílica será uma feliz ocasião para encontrar- nos cor unum et anima una, em oração junto do altar.

Concelebraremos em 23 de abril com os Inspetores da Europa, dos Estados Unidos, da Austrália e do Congo, na Basílica de Maria Auxiliadora. Será uma feliz conclusão dos dias de Como e do início das Celebrações Centenárias.

Naquele dia nos reuniremos como num encontro espiritual ao redor do altar de Ma- ria Auxiliadora a quem tanto deve o passado e de quem tanto espera a nossa Congrega- ção para o seu futuro.

 

2.  Nossos irmãos do Vietnã

 

Enquanto me preparo para ir à Índia, não posso esconder-vos a ansiedade que me toma pelos nossos irmãos do Vietnã. Esperava encontrar-me com nosso Delegado na- quele País, mas na situação atual creio que não será possível. Como sabeis, naquela atri- bulada nação, temos várias obras sociais muito apreciadas, um bom número de Irmãos, noviços, aspirantes. Desde que a guerra voltou a exasperar-se com maior violência, não fomos capazes de entrar em contato direto com eles. Esperamos que, embora em meio aos horrores destes dias atrozes, todos tenham sido poupados. Recomendo às vossas orações aqueles nossos irmãos com todo o povo vietnamita sobre o qual pesa uma pro- vação tão cruel.

 

3.  O terremoto da Sicília

 

E falando de provações, deixai que vos diga também uma palavra sobre o terremoto da Sicília. Não houve vítimas em nossas obras naquela zona, mas não faltaram danos e aflições. Todavia, os nossos Irmãos, ajudados por Cooperadores, Ex-alunos e outros de

boa-vontade prodigalizaram-se desde os primeiros dias para socorrer de todos os mo- dos aquelas infelizes populações. Foi uma autêntica competição de dedicação em que quase todos se prodigalizaram, dos Clérigos do Estudantado Teológico de Messina, en- viados pelo Inspetor para assistir os jovens, aos Sacerdotes que organizaram acampa- mentos e prestaram todo tipo de ajuda moral e material aos sinistrados.

Em nossas Casas são alojados e assistidos grupos familiares; muitos jovens também foram recebidos em nossos Institutos, e não só na Sicília. Desejo agradecer destas pági- nas muitas obras, Irmãos, Cooperadores, Ex-alunos que, além da Itália, de muitas nações da Europa, da América e também da Ásia, fizeram chegar ajudas em dinheiro e em na- tura (os clérigos de um estudantado doaram muito sangue!) ou que quiseram exprimir a sua cordial participação no luto pela catástrofe que se abatera sobre aquelas humildes populações.

É sempre motivo de conforto e confiança constatar esse senso de responsabilidade que brota, por assim dizer, generoso e espontâneo, na ocasião de grandes desventuras: é essencialmente a caridade cristã que nos faz “chorar com quem chora”.

O Senhor, que não se esquece de quem, em seu nome, dá um copo de água ao pobre que tem sede, seja Ele a fazer o seu melhor agradecimento a todos os que, de alguma maneira, participaram da competição de caridade pelas vítimas do terremoto.

 

4.  Caridade mais atenta, mais ativa, mais generosa

 

Permiti-me, ainda, uma observação a propósito dessas desventuras.

Agora, através dos vários instrumentos de comunicação social, não só ficamos sa- bendo imediatamente as notícias do mundo, mas se pode dizer que entramos em con- tato com muitos dos nossos irmãos atingidos no mundo pelo luto e por calamidades, da guerra ao terremoto, da inundação à fome, etc.

Pois bem, este contato – que nos dá uma documentação realista da vida vivida por milhões de seres humanos – de um lado, deve tornar-nos responsavelmente pensativos e reconhecidos pela condição sob tantos aspectos privilegiada de que a Providência – sem qualquer mérito nosso – nos faz gozar, mas de outro, esse contato com a vida de sofrimentos indizíveis do nosso próximo deve tornar a nossa caridade “mais atenta, mais ativa, mais generosa”.

Devemos sentir segundo as palavras da Gaudium et Spes (n. 27): “Sobretudo em nos- sos dias, urge a obrigação de nos tornarmos o próximo de todo e qualquer homem, e de o servir efetivamente quando vem ao nosso encontro, quer seja o ancião, abandonado de todos, ou o operário estrangeiro injustamente desprezado, ou o exilado, ou o filho duma união ilegítima que sofre injustamente por causa dum pecado que não cometeu, ou o indigente que interpela a nossa consciência, recordando a palavra do Senhor: “to- das as vezes que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes (Mt 25,40)”.

O tempo da Quaresma – e não só ele – pode ser um apelo útil a viver, na devida coerência com a nossa profissão de cristãos e ainda mais de consagrados, essa realidade, primeiramente com a prática generosa e – diria – severa da pobreza pessoal e coletiva, e tornando, todos os dias e em todas as circunstâncias, a nossa caridade “mais atenta, mais ativa, mais generosa”,

 

5.  A expedição missionária do Centenário

 

Desejo concluir referindo-me à carta anterior (ACS n. 250).

Recebo dos pontos mais diversos da Congregação cartas que exprimem satisfação, reconhecimento, vontade de empenhar-se seriamente diante dos grandes apelos dos dois Centenários: o da Fé e o Mariano.

Deu-me muito prazer ouvir de vários Conselhos Inspetoriais que estudavam a minha carta sobre os dois acontecimentos a fim de tratar dos corolários práticos para uma ação sistemática da Inspetoria. Alguém me escrevia: “Não queremos que essas páginas se tornem material de arquivo, mas pretendemos fazer dela instrumento de vida”.

Várias Inspetorias, também, para interessar pessoalmente os Irmãos nos grandes in- teresses comuns da Congregação começaram a providenciar cópia dos “Atos” para cada Irmão. Atitudes, propósitos, iniciativas que revelam sincero e ativo amor à Congregação, aos seus interesses religiosos e apostólicos, à sua verdadeira vida.

Sobre o Centenário da Basílica, eu propunha no número anterior dos “Atos”, entre outras uma iniciativa apostólica que servisse para celebrar a ocorrência de modo dura- douro e concreto.

Posso dizer-vos agora que o meu apelo para um “serviço apostólico” na América La- tina já encontrou almas prontas e generosas que disseram logo o próprio “adsum”.

As respostas são muitas vezes motivadas com argumentos e tonalidades que edifi- cam e revelam que há na Congregação um fermento fecundo de bem. Irmãos jovens (algum clérigo também escreveu!) e idosos dizem com realces de profunda sinceridade toda a própria alegria de uma entrega incondicionada, frequentemente não só por cinco anos, mas sem limites e nos lugares e ocupações mais carentes e mais humildes.

 

6.  Respostas ao apelo missionário do Reitor-Mor

 

Parece-me prestar um serviço à Congregação e oferecer um verdadeiro presente a todos vós publicando trechos das cartas que me vêm da Europa e da América. Os pen- samentos e sentimentos contidos nelas são para todos nós motivo de grande conforto e consoladora confiança nessas forças vivas, autenticamente apostólicas, que animam a nossa amada Congregação.

“... no dia dedicado à paz, gostaria de responder ao seu apelo pela América Latina. A leitura de suas palavras nos últimos ‘Atos do Conselho Superior’ tem sido para mim a voz do Senhor... Por algum tempo eu pensei nesse passo ... Estou convencido de que sacrifícios devem ser feitos não só pelos indivíduos, mas também pelas Comunidades, pelas Inspetorias... por aqueles que sofrem, antes que seja tarde demais. Isso me dá força, coragem e grande confiança ...”.

“…Quero que a minha primeira carta do novo ano seja endereçada ao senhor, a apre- sentar-lhe o pedido para ser enviado para a América Latina... Há vários anos vivo à es- pera de ir para as missões”.

“... li nos ‘Atos” o seu caloroso apelo pela América Latina... ‘Ecce adsum! Mite me!’.

Coloco-me à total disposição dos Superiores, sem limites de tempo…”.

“... fazendo o exame de consciência, vi que, como simples cristão, deveríamos estar cientes da nossa responsabilidade em relação ao restante do Corpo Místico, sentindo nossa solidariedade por ele... Desejo servir à Igreja onde há mais necessidade...”.

“... coloco-me à sua disposição. Parece-me uma ocasião providencial para dizer ‘obri- gado’ ao Senhor no 10º ano da minha ordenação sacerdotal... Parece-me acima de tudo uma necessidade e uma necessidade de dar provas concretas de amor à Igreja e à Con- gregação... uma vida de sacrifício... eu sinto isso como uma ordem”.

“... apresso-me para fazer chegar ao senhor a minha adesão total ao seu apelo pela América Latina... ponho-me desde já à sua total disposição... Sem limites de tempo, para a glória do Senhor...”

“... agradou-me tanto o seu convite para uma expedição à América Latina...; eu não sou padre, mas clérigo ... Serei um padre amanhã... aberto aos problemas do mundo ao meu redor. Mas não conheço o mundo que sofre, o mundo que chora e tem necessidade de Cristo... Temo ser um padre que criou para um modo de vida... Penso no Padre Vari- ara. Desde criança pensei em fazer como ele... Muitos jovens clérigos sofremos porque no nosso trabalho sentimos encarnar a disciplina e não o Amor...”

“...li o seu apelo... Estou pronto e o senhor disponha... Eu gosto de trabalhar: acho que é a verdade. Mamãe morreu santamente há um mês: caiu assim, na dor trágica que o senhor pode imaginar, o maior obstáculo, o único acredito... Estou pronto!”

“... tenho mais de 40 anos... Mas sou sadio… passado entre duas guerras… com uma medalha de ouro ao mérito esportivo... Faça uma exceção para mim! Ah, se pudesse com a oferta pela América Latina, fazer o meu agradecimento a Deus e à Virgem pelos meus 25 anos de sacerdócio, ficaria feliz com isso!”.

“... Peço-lhe que acolha o meu pedido para estar entre os primeiros escolhidos nessa missão pesada e, por isso, estimuladora de generosidade...”.

“...li o seu apelo ... Tudo bem que o senhor defina os limites de idade, mas pode-se fazer uma exceção... fiz 60 anos, mas quero ir de qualquer maneira com a sua permissão paterna... Com graça do Senhor, espero que não terá do que se arrepender... Na minha alma há o desejo da missão... no último lugar”.

“... sei que o apelo é à renúncia e ao sacrifício, mas, por isso, peço...”.

“... Agradeço-lhe pelo gesto de fé corajosa com o apelo lançado no Centenário da Basílica de Maria Auxiliadora... Respondo com alegria a esse apelo que se une ao apelo interior que sentia há muitos anos... Não tinha pensado na vida missionária nos primei- ros anos de Congregação... mas uma maior abertura à vida da Igreja, o Concílio, a redes- coberta das responsabilidades de todas as Igrejas locais diante das demais Igrejas, so- bretudo das mais carentes e pobres, devo dizer que me fez refletir... Nós ocidentais so- mos ‘ricos’, muito ricos diante das Igrejas do terceiro mundo, e não temos o direito de fugir das palavras de Deus: ‘Quem, pois, tiver bens do mundo, e, vendo o seu irmão necessitado, lhe cerrar as suas entranhas, como estará nele o amor de Deus? Meus fi- lhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas por obra e em verdade (1Jo 3,17)’”.

“... a pobreza da América Latina é o motivo determinante da minha resposta ao seu apelo. Indo para lá creio obedecer à palavra do Senhor. A nossa Europa não é ainda muito rica de sacerdotes? E o sacerdócio de alguns de nós não está se extinguindo nas nossas Casas? O seu apelo chega como um ato providencial que será benéfico para as Igrejas da Europa e para as Igrejas da América. Creio, também, que o meu gesto poderia despertar entre os jovens a vocação missionária, de leigos ou de religiosos”.

“... declaro-me pronto a trabalhar nas Igrejas do Terceiro Mundo, onde as necessida- des são maiores e mais cruciais e o Senhor mais ignorado... E não apenas por cinco anos, mas por toda a vida... Seu apelo era o que esperávamos... eu gostei de ler sobre isso... Obrigado pelas 4 páginas. Elas visivelmente nos ligam ao grande impulso missionário de Dom Bosco, com uma resposta eficaz às reais necessidades da Igreja. Elas dão nova vida e espírito aos Irmãos, especialmente aos mais jovens. Religioso e sacerdote, estou total- mente disponível...”.

“... li o seu apelo, tive logo a convicção de que era o Espírito Santo a interpelar-me. E assim, em espírito de serviço em favor de uma Igreja pobre e sem meios, peço-lhe que me inscreva entre aqueles que partirão por cinco ou dez anos a serviço das Igrejas da América Latina... A vontade do Senhor parece clara para mim. Esperei até a festa de Dom Bosco para evitar qualquer risco de misturar a precipitação humana com o zelo apostólico... Estou ciente de que, na fé, participo da renovação da minha Inspetoria indo a uma Igreja mais pobre, porque Deus não se deixa vencer em generosidade e pronta- mente enviará um apóstolo para tomar o lugar que ficará vazio... Espero ardentemente que o senhor confirme este apelo que ouço de Deus...”.

“... desejo fazer alguma coisa a mais pelos pobres, por quem precisa viver ao lado de alguém que sofra com ele... O Senhor deu-me muita saúde e seria egoísta se não me pusesse à sua disposição. A vontade de Deus é para mim a dos Superiores...”.

“... a sua carta de dezembro alegrou enormemente o meu coração. A simplicidade e também a profundidade do seu apelo me levaram a dar a minha resposta... Formulo, portanto, o meu pedido de partir para as Missões. As razões pelas quais eu peço?... as exigências do Evangelho... a atitude de Dom Bosco presente no seu convite... O Concí- lio... Coloco-me, com submissão filial e total, à disposição desse apelo...”.

“... apresentei o pedido muitas vezes... Onde vivo, a casa está cheia de sacerdotes... É a quarta vez que refaço o pedido... Batei e vos será aberto. Estou certo de ser um sacerdote melhor se me assemelhar a Cristo sofredor, sacrificado!”.

“... já se passaram sete anos desde que peço, insisto, rezo e espero... Estou certo de que tão logo seja iniciada a ‘operação missões’ o senhor já me terá aceitado, estando ao corrente da minha vocação missionária... Ecce ego! Mitte me!... Penso agora no meu ideal missionário não mais como uma esperança, mas como certeza: já me vejo aonde a Providência me quer, entre os irmãos pobres e necessitados!”.

 

7.  O reconhecimento da América Latina

 

Depois dos trechos das respostas dos “voluntários”, parece-me belo publicar parte de uma longa carta, entre as muitas que me chegaram da América Latina. Ela exprime de maneira feliz os sentimentos e as esperanças de muitos valorosos missionários. São

dois dos nossos bispos que, sabendo do meu apelo, quiseram escrever juntamente com os Salesianos reunidos para os Exercícios Espirituais.

Porto Velho, 13 de janeiro de 1968.

Reverendíssimo e veneradíssimo Pai,

estamos para concluir os nossos Exercícios Espirituais anuais, quando nos chegou, com a correspondência do dia o pacote dos “Atos do Conselho Superior” n. 250.

Pode imaginar a explosão de alegria e o comum contentamento ao ler o que o Senhor e Nossa Senhora o inspiraram em especial sobre a expedição missionária do ano cente- nário. Acreditamos que Dom Bosco não teria feito diversamente...

Obrigado, veneradíssimo Pai, obrigado.

Era realmente necessária esta injeção prática de “coragem”. As visitas, as promessas, as circulares... já são uma coisa boa, mas já não bastavam: era preciso essa realidade concreta para fazer desaparecer a sombra de pessimismo que vai se alastrando um pouco em toda parte.

Retirados fora do mundo, nos primeiros postos avançados do Reino de Deus... senti- mos renascer no coração toda esperança; pensamos também na grandíssima alegria que essa iniciativa causará no Sumo Pontífice Paulo VI, que resume no seu coração apostó- lico as ânsias e as “angustiosas solicitações” dos seus predecessores imediatos, em par- ticular do Papa João. “Oh, a América Latina, a América Latina... seria preciso que os Sa- lesianos tomassem o Brasil inteiro de assalto... Nós vo-lo pedimos com profunda confi- ança, enviai sacerdotes, enviai Apóstolos, missionários e missionárias...”.

Veneradíssimo e amadíssimo Pai, quem lhe diz estas coisas são os mais idosos da nossa Inspetoria de Manaus, três vezes missionária (de fato, são três as prelazias missi- onárias abrangidas por ela: Rio Negro, Porto Velho, Humaitá, e que, por extensão supe- ram meia Europa).

Sentimos que a atenção da Igreja e da opinião pública dada adequadamente aos pro- blemas da Índia e da Ásia em geral, deve se voltar um pouco também para esta gente e estes povos que já próximos, ou até mesmo em posse da Verdade, são hoje vítimas da- quelas famosas “carestias”, previstas nos sonhos de Dom Bosco...

E agora, se me permite, Bom Pai, servimo-nos desta carta também para dar, desde já, as calorosas boas-vindas a todos os generosos que responderão ao seu “apelo missi- onário pós-conciliar”. Sintam todos, todos, o nosso afetuoso abraço fraterno...

Dom João Batista Costa, Bispo de Porto Velho Dom Miguel D’Aversa, Prelado de Humaitá.

Seguem as assinaturas de outros Sacerdotes e Coadjutores.

* * *

Caríssimos Irmãos e Filhos.

O Senhor conceda-nos iniciar com felicidade esse fluxo de linfa vital para as terras sedentas da América Latina. Será, certamente, entre todas as celebrações, a mais apre- ciada, porque a mais apostolicamente urgente, a Maria Rainha dos Apóstolos e ao cora- ção de Dom Bosco, que amou de amor de predileção a América Latina, enquanto mos- trará a sensibilidade da Congregação aos calorosos apelos da Igreja e do Papa.

O ideal missionário ao qual vos exorto recebe impulso e fervor do exemplo dos nossos Irmãos que responderam generosamente no passado ao convite do Senhor. Como que representando a todos, agrada-me referir-me aqui às figuras de dois valorosíssimos Mis- sionários que muito trabalharam pela causa do Reino de Deus: S. Ex.cia Dom Pedro Massa e S. Ex.cia Dom João Marchesi. Eles, ultimamente, cedendo apenas à idade, quiseram deixar as posições de responsabilidade mantidas tão dignamente a serviço da Igreja, mas não abandonaram o campo missionário da América Latina. Em nome da Congregação, agradeço-lhes pelo extraordinário trabalho que realizaram em condições muito difíceis de apostolado e pela honra que deram ao nome salesiano. Eles deixam uma herança luminosa de exemplos que servirá de estímulo e guia para as novas gerações missioná- rias.

Associemos na oração, com os seus nomes, os de S. Ex.cia Dom Miguel Alagna, bispo titular de Fornos Maggiore, chamado a sucedê-los na Prelazia Nullius do Rio Negro (Bra- sil), e dois outros bispos que a bondade do S. Padre quis escolher na América Latina em nossa Congregação, S. Ex.cia Dom Ernesto Alvarez, bispo titular de Megalopoli di Procon- solare, auxiliar de Guayaquil (Equador), e S. Ex.cia Dom Miguel Obando, bispo titular de Puzia di Bizacena, auxiliar de Matagalpa (Nicarágua). O Espírito do Senhor assista-os neste renovado clima missionário, que com a Igreja, anima toda a Família Salesiana.

Apresento a cada um as minhas saudações afetuosas, garantindo a minha lembrança no altar. Conto com a vossa retribuição.

Afeiçoadíssimo,

Luís Ricceri
Reitor-Mor

 

GRANDES E CONSOLADORES ACONTECIMENTOS

 Luís Ricceri
Atos do Conselho Superior n. 252

Centenário da Basílica. – Exposição Salesiana e o Concurso “M. A. ‘68” – Apelo para a América Latina. – O 9 de junho. – Os nossos Encontros Continentais. – Um grave dever: informar. – Um precioso ensina- mento: saber escutar. – Função das novas estruturas. – A nossa missão hoje. – Trabalhamos pela juven- tude pobre. – Função pastoral da nossa escola. – Um problema vivo e delicado: unidade na pluralidade.

– Um critério-guia. – A distinção essencial-acessório. As “experiências”. – O Ano da Fé leve-nos a uma vida de fé. – Alimentemos a nossa fé. – Como os leigos nos querem.

Turim, 1º de julho de 1968

Caríssimos irmãos e filhos

Escrevo estas linhas no fim do mês de junho. Este mês foi de algum modo uma coroa feliz de um conjunto de iniciativas e acontecimentos que caracterizaram este primeiro semestre de 1968 e foram motivo de particular incidência e de fecunda satisfação para toda a nossa família.

A abertura do Centenário da Basílica com todas as manifestações que se seguiram: os três grandes Encontros Continentais de Inspetores e o solene encerramento do Ano da Fé.

Meu propósito é dizer-vos uma palavra a respeito destes grandes e consoladores acontecimentos que a Divina Providência nos fez viver.

Entretanto, antes de entrar nestes argumentos, desejo agradecer, muitíssimo sensi- bilizado, a quantos, de tantas maneiras diferentes, no dia do meu onomástico quiseram manifestar afeto a este que representa D. Bosco, exprimindo sua fidelidade ao Pai Co- mum, seu empenho na renovação, palmilhando os caminhos traçados pela Igreja e pela Congregação.

Na impossibilidade de fazer chegar a cada um, diretamente, a expressão de meu vivo reconhecimento, estas páginas levem a cada um a expressão de meu coração agradeci- do. Penso que ninguém ficará admirado se afirmo que com muitíssimo agrado recebi os augúrios dos irmãos da Checoslováquia, de Cuba, da Hungria, do Vietnam. Os motivos, bem os podeis compreender.

Um irmão me escrevia por ocasião dessa data: “Sabemos que há um preço para o resgate e o seu trabalho é um consumir-se diariamente. O senhor é o nosso holocausto. Muito obrigado pela coragem que nos infunde nestes dias difíceis”.

Não estou para analisar as afirmações que brotam do coração do bom irmão, mas faço questão de pôr em evidência a sensibilidade deste nosso filho que sente o “preço do resgate que o Superior deve pagar por todos”.

Pois bem, não me parece possa encontrar palavras mais adequadas para exprimir o meu reconhecimento senão confirmando a minha vontade de “pagar este resgate” sem regateios, para o bem de nossa dileta Congregação, de cada um de vós, da Igreja, da

qual todos somos e queremos ser filhos e servos tanto mais fiéis, quanto mais difíceis se tornam os tempos. E vós, irmãos e filhos caríssimos, ajudai-me a carregar a cruz, tor- nando-a menos pesada com a vossa oração constante, com a vossa generosa colabora- ção e com a vossa cordial fidelidade a Dom Bosco, não em abstrato, mas com a voluntá- ria docilidade às diretrizes de quem tem o mandato de o representar e interpretar.

Ajudai-me a servir humildemente à Congregação e a vós, para que juntos possamos servir à Igreja e a Jesus Cristo.

 

Centenário da Basílica

Enquanto vos escrevo sinto ainda na retina e no coração o espetáculo de fé mariana que vivemos naqueles meses e que terminou no dia 9 de junho, data centenária da Con- sagração da Basílica de Maria Auxiliadora.

Desde a última semana de abril, que assinalou a abertura das manifestações, foi um suceder-se cada vez mais intenso de peregrinações — Salesianos, Filhas de Maria Auxi- liadora, jovens, cooperadores, ex-alunos, fiéis, paróquias, etc., — que no espaço de cin- quenta dias atingiram o número de quase quinhentas. A festa de Maria Auxiliadora teve a presença de milhares de fiéis ao lado de Salesianos e Filhas de Maria Auxiliadora que vieram prestar homenagem à Santíssima Virgem.

A participação devota e piedosa da Santa Missa e da Eucaristia, foi característica de todas as manifestações das massas de jovens e milhares de homens e mulheres.

A procissão do dia 24 de maio, apresentou o espetáculo de uma verdadeira enchente de povo que espontaneamente, com edificante e fervorosa oração, se associava ao clero e às organizações religiosas que desfilavam.

 

Exposição Salesiana e Concurso “M. A. 68”.

Mas, como é do conhecimento de todos, surgiram outras iniciativas para celebrar este centenário. A Exposição Salesiana permanente, inaugurada com a presença de mui- tas autoridades e de todos os Inspetores que haviam participado do Encontro de Como, é uma realização que está merecendo apreço e suscitando grande interesse do público, de jornalistas, educadores e de tantos jovens.

Não é este o lugar para descrevê-la. Mas, certamente, através das impressões anota- das pelos visitantes, em folhas adrede preparadas, podemos concluir que a iniciativa serve eficazmente não só para levar ao conhecimento do grande público a nossa missão na Igreja e no mundo de hoje, mas desperta o interesse de tantos jovens dispostos a assumir compromissos nobres e concretos.

Através destas páginas desejo exprimir o agradecimento sincero, não somente meu, mas de toda a Congregação aos irmãos e às Filhas de Maria Auxiliadora que se prodiga- lizaram para que esta iniciativa saísse a contento. Faço-o de modo particular ao Pe. Mi- chel Mouillard que foi a alma da Exposição.

Todos trabalharam com inteligência e com amor para esta realização, e a visita à Ex- posição será sempre uma feliz complementação da visita ao Santuário.

Outra iniciativa foi o Concurso “M. A. 68”. Este despertou vivo e frutuoso interesse no meio de milhares de meninos e meninas de todos os continentes.

Onde se trabalhou seriamente, onde a ideia foi entendida, apreciada e devidamente traduzida em prática, os jovens corresponderam com vibrante entusiasmo. Era impres- sionante ver meninos e meninas estudantes de todos os graus; jovens com seus vinte anos, mostrar tanto conhecimento da história a da doutrina mariana. Foi igualmente motivo de encantamento apreciar pinturas, esculturas, fotografias; ouvir poesias, cantos de inspiração mariana, tudo composto por jovens e com notável bom gosto.

Aguardando o ensejo de premiar, no dia da Imaculada Conceição os vencedores na- cionais que para cá virão de diversos países, com prazer dirijo meu elogio aos Salesianos e às Filhas de Maria Auxiliadora que deram eficaz contribuição ao desenvolvimento e ao bom êxito do Concurso.

Gostaria de acrescentar um pormenor. A experiência deste Concurso demonstra que, onde se trabalha com necessária sensibilidade da alma moderna e especialmente quando se acredita na própria missão, que é especialmente espiritual, então, ainda hoje, se consegue interessar — e com resultado — a juventude, para os problemas e argu- mentos como o abordado pelo Concurso “M. A. 68”.

 

Apelo para a América Latina

Uma palavra sobre o apelo lançado para a América Latina, por ocasião do Centenário. Chegaram outros oferecimentos e sempre acompanhados de sentimentos de generosa e humilde disponibilidade. A todos a gratidão não tanto de minha parte, quanto da Con- gregação e de modo especial dos Irmãos da América Latina que terão o conforto desta ajuda.

Por estes dias serão dadas respostas definitivas a cada um dos candidatos, ao mesmo tempo que com os Superiores Regionais vão sendo estudadas as regiões e obras onde a ajuda é mais urgente e produtiva. Entrementes se está elaborando um programa de preparação e de ambientação para o trabalho que os irmãos deverão desenvolver nes- ses Países.

 

O 9 de junho

Deixai que vos diga agora uma palavra a respeito do dia do aniversário da Basílica.

O dia 9 de junho Sua Excelência o Cardeal Traglia, chanceler da Sagrada Congregação dos Ritos, na presença de todas as autoridades máximas e numerosas representações da nossa Congregação celebrou com os Superiores a Santa Missa que a televisão trans- mitiu. No período da tarde fez a comemoração da data centenária da Basílica, evocando a sua história e pondo em relevo o bem que se irradia — de mil maneiras — do templo que o amor de Dom Bosco ergueu à sua celeste inspiradora.

O Te Deum que cantamos formando todos — Salesianos, Filhas de Maria Auxiliadora, jovens, cooperadores, ex-alunos e fiéis — uma só e vibrante voz, exprimia sentimentos não só dos privilegiados presentes, mas de todos vós, de toda a nossa família. Eu diria que naquele momento tive a sensação que também o nosso Pai, com tantos e tantos salesianos que durante os cem anos passaram pela querida Basílica, estivesse unido ao nosso canto de agradecimento ao Senhor e de louvor à Celeste Padroeira nossa por to- das as graças distribuídas às almas nestes cem anos da casa que construiu para si.

Naqueles momentos de emoção pensava também no Santo Padre Paulo VI. Ele sem- pre bom e amável com a nossa humilde Congregação como no seu tempo seu predeces- sor Pio IX o fora com o nosso Pai, quis fazer-se presente às nossas comemorações cen- tenárias com uma carta de seu Secretário de Estado cujo texto na íntegra é reproduzido em outra parte destes “Atos”.

Aqui desejo sublinhar um pensamento que deve servir para tornar fecundo de frutos duradouros e atuais o nosso Centenário. Na carta lemos: A Celebração do Centenário... “exprime o empenho desse Instituto em revigorar-se nas fontes da própria espirituali- dade, de manter-se fiel às suas genuínas tradições e sobretudo firmar os vínculos da própria ligação com Maria para com a qual a Congregação Salesiana inteira se sente devedora na sua existência e na sua pujante vitalidade”.

Este é o convite que devemos recolher do Sumo Pontífice e do nosso Pai mesmo; a nossa família com todos os seus membros — a exemplo do Pai — antes de deixar-se envolver por certas ideias eversivas e corrosivas, que correm aqui e acolá com relação à devoção mariana, sinta-se e se demonstre uma família sincera e autenticamente Mari- ana.

Concluo: estimo pensar que este ano mariano concretizado através de tantas inicia- tivas, não se apagará, traduzindo-se nas nossas Inspetorias numa devoção mariana vi- vida e atuada de acordo com a melhor tradição da nossa família e no espírito das normas conciliares.

 

Os nossos encontros continentais

Desejo agora entreter-me convosco sobre os três encontros continentais que à dis- tância de somente três anos do Capítulo Geral, viram reunidos todos os Inspetores da Congregação com um bom número de irmãos e peritos e com muitos Superiores do Conselho.

Estes encontros serviram antes de tudo para verificar, por assim dizer, o quanto e como se trabalhou nas diversas Inspetorias para executar as deliberações do Capítulo Geral, difundir e beber o seu espírito.

As deliberações do Capítulo Geral de fato são de grandíssima importância e não de- vemos resignar-nos em vê-las reduzidas a documentos para arquivos.

É tarefa e responsabilidade dos Superiores nos vários níveis e juntamente com cada um dos irmãos esforçar-se eficazmente para a sua atuação. São oportunas as palavras do nosso Pai o qual a quem se queixava dos tempos tristes fazia notar que era preferível ocupar o tempo na ação e na ação conjunta.

Ora, a ação a que todos estamos convidados pelos últimos encontros continentais é justamente esta: tornar operante a soma de ideias, de orientações e de normas que nos deixou o XIX Capítulo Geral. De fato, verificou-se que em certas regiões, especialmente, falta ainda muito não só para pôr em ato, mas ainda para conhecer e em seguida assi- milar o Capítulo Geral.

Mas esses encontros também serviram para que nos déssemos conta da situação de muitas regiões, onde desenvolvemos as nossas atividades apostólicas. Não nos iluda- mos: realmente os momentos da vida da Igreja são críticos e os reflexos são sensíveis também na nossa Congregação. Pois bem, em um clima leal, de família, guiados por sin- cero amor à Congregação, procuremos com sadio realismo examinar nestas situações,

valores positivos e negativos, falhas, perigos, remédios sempre à luz do Capítulo Geral e do Concílio.

Foram dias de intenso trabalho, de discussões densas, mas também de oração fervo- rosa, comunitária, especialmente na concelebração e na reza do Santo Breviário. As con- clusões que vos foram comunicadas são resultado daqueles dias. Entretanto não che- gam a dar uma ideia adequada de todo o trabalho realizado. Por isso necessitam de uma leitura atenta e se recomendou insistentemente aos Inspetores de completá-las, co- mentá-las explicando amplamente o material rico de conteúdo nos Atos dos respectivos Encontros.

 

Um grande dever: informar

A este propósito desejo exprimir um certo medo que eu sinto reforçado por notícias que por vezes chegaram a meu conhecimento.

Afirmou-se que, em certas regiões da Congregação, os Atos do Concílio assim como os do nosso Capítulo Geral dão impressão que ainda não chegaram, ou que às vezes são abafados ou reduzidos ou ainda, mais grave, algumas vezes ficam letra morta.

O mesmo se pode dizer dos Atos do Conselho Superior, dos documentos das Confe- rências Inspetoriais, das Conferências Episcopais e da Santa Sé.

Se essas afirmações correspondem à verdade, certamente é muito triste e prejudicial, e teríamos uma explicação para certos desnorteamentos e arbitrariedades, para certos estados de desconfiança e de frustração, que certamente não são elementos construti- vos na vida da Congregação exatamente nestes momentos que requerem uma ação de- cidida bem sintonizada com as orientações dadas por quem tem o dever e o direito de dá-las.

Lembro, pois, a todos quantos têm responsabilidade de governo, a obrigação de levar ao conhecimento tempestivo e adequado dos documentos que chegam da Santa Sé, da Hierarquia, do Conselho Superior, etc. De outra forma, como se poderia criar aquela sensibilidade e por conseguinte aquela mentalidade tão necessária para se chegar a uma atuação convicta e cordial de tais documentos que tendem todos, embora de modo di- verso, a renovar — ordenadamente — a nossa vida cristã, religiosa e salesiana?

É dessa circulação capilar das ideias animadoras, contidas nesses documentos, que os irmãos buscarão luz e Impulso para serem operadores da verdadeira e autêntica re- novação, que a Igreja e a Congregação exigem.

Inspetores e Diretores — em virtude do mandato de magistério próprio de seu ofício

— são os transmissores naturais e, ao mesmo tempo, os comentadores e vivificadores e propriamente os executores. Tal transmissão, pois, deve ser feita sempre solícita e fielmente sem parênteses nem evidenciações; em suma, integralmente, do modo mais eficaz e produtivo.

Nestes momentos de confusão, intemperança e arbitrariedades, a falta de uma tem- pestiva e adequada informação, precisa e autorizada, o silêncio dos superiores e espe- cialmente uma certa inércia na atuação daquilo que os documentos contém, poderiam tornar-se, ao menos objetivamente, uma conivência com as situações deploráveis, cujas consequências não é difícil medir.

Devemos todos juntos agir para que o Concílio, Capítulo Geral, os Encontros não fi- quem material arquivado, nem se reduzam a palavras e só palavras, mas, em nossas mãos, sejam instrumentos vivos e eficazes para uma verdadeira renovação.

 

Precioso ensinamento: saber ouvir

Desejo agora pôr em evidência um ensinamento utilíssimo e precioso que emana dos três encontros.

Quem governa uma comunidade, quer em nível mundial, como regional ou local, sai sempre lucrando ouvindo o pensamento, o ponto de vista, a experiência de outros que não sejam só os Superiores responsáveis do mesmo governo.

Tive a oportunidade de verificar isso e fazê-lo notar aos participantes desses Encon- tros onde todos, Superiores e não Superiores, fomos ao mesmo tempo mestres e discí- pulos, com imensa vantagem recíproca. De fato, tantas situações, tantos problemas e tantas soluções puderam emergir dessa fraterna colaboração e tudo num clima de fran- queza e respeito na busca apaixonada e serena dos interesses da Congregação, na con- vicção comum que superiores e irmãos somente com a condição de se integrarem com humildade e amor conseguirão os fins comuns da vocação comum e de sua missão.

Neste ponto surge espontânea a pergunta: Tamanho exemplo e essas realidades vi- vidas felizmente e com tanta vantagem e satisfação nos encontros continentais, como são praticados no âmbito das nossas várias comunidades?

Trata-se, aliás, de um princípio bem definido pelo decreto Perfectae Caritatis, que encontramos nas deliberações do Capítulo Geral e é repetidamente reafirmado por mim.

“Os Superiores escutem, pois, de boa vontade os confrades o promovam igualmente sua cooperação para o bem do Instituto e da Igreja, mantendo-se, no entanto, a sua autoridade de decidir e prescrever o que deve ser feito”.

“Os Capítulos e Conselhos executem com fidelidade a tarefa que lhes é confiada no governo e exprimam, cada qual a seu modo, a participação e o interesse de todos os confrades pelo bem da comunidade toda” (PC, 14).

Trata-se, pois, de promover a união de todos os membros da comunidade para o bem do Instituto e da Igreja. Uma tarefa, pois, de vital interesse. Compreendem-se as pala- vras que lemos a esse respeito entre as conclusões do Encontro de Bangalore. Elas di- zem: “Nesta perspectiva os “rendicontos” e frequentes colóquios pessoais, a efetiva va- lorização e o reto funcionamento do Conselho de Ação, a reunião dos diversos conselhos particulares (como o Conselho dos Professores, o grupo dos Irmãos adidos à paróquia e ao Oratório, os dirigentes e assistentes das oficinas, os assistentes com os Conselheiros e Catequistas, os dirigentes e assistentes de associações, o pessoal leigo, etc.) adquirem particular relevo e se tornam obrigações preeminentes que não admitem derrogações e são explicitamente reafirmados pelo XIX Capítulo Geral (ACG, 38-51)”.

Trata-se, pois, de obrigações preeminentes dos irmãos responsáveis, as quais nin- guém pode derrogar, seja pequena ou grande a comunidade, sejam simples ou comple- xas as atividades que nelas se desenvolvem.

Naturalmente, é necessário superar tantas dificuldades de ordem diversa, antes, diria que o segredo psicológico, humano, técnico, para um governo eficaz num clima de se- renidade é colocado na efetiva valorização dos irmãos, através dos vários instrumentos acima mencionados.

Quem quisesse persistir na ignorância dessas realidades chegaria a assumir uma pe- sada responsabilidade diante da Congregação, que deve avançar rapidamente e não ser atravancada no processo de renovação, pedido antes de tudo pelo Concílio, pelos seus verdadeiros e vitais interesses! Esse método e estilo de governo é justamente um dos aspectos sem dúvida não secundário da nossa renovação.

 

Função das novas estruturas

Nos três Encontros se fez também um exame do funcionamento das estruturas deli- beradas pelo XIX Capítulo Geral.

Embora a distância do Capítulo não seja muito grande, todavia já se fizeram impor- tantes e úteis observações.

A criação de Superiores Regionais aparece substancialmente muito positiva. Reco- nhece-se que justamente devido à presença de tais Superiores, o contato entre periferia e centro é muito mais intenso e profícuo. O próximo Capítulo Geral, utilizando a experi- ência em marcha, estará em condições de trazer a esta instituição retoques e melhora- mentos que ajudarão a torná-la mais funcional e eficiente definindo mais claramente as suas tarefas.

Também a nova figura do Vigário Inspetorial que aparece ao lado do Inspetor é deci- didamente positiva e atende a evidentes exigências do governo de uma Inspetoria nos tempos que correm.

Para os Conselhos Inspetoriais reconhece-se com cada vez maior evidência que o Ins- petor necessita ao menos de algumas pessoas capazes, ricas de prestígio e de experiên- cia, que lhe estejam habitualmente ao lado para fazer do Conselho um centro propulsor, dinâmico, de guia esclarecido de toda a Inspetoria.

Nesta perspectiva sejam inseridos os Delegados Inspetoriais, primeiro entre todos os delegados da Pastoral Juvenil. Embora reconhecendo as dificuldades e situações parti- culares de algumas Inspetorias, a experiência desses órgãos demonstram quanta riqueza de iniciativas, de ideias e realizações surgiram nas Inspetorias pela presença desses de- legados, posto que sejam pessoas capazes, preparadas, ativas e zelosas. Eles, sob a de- pendência do Inspetor, são de precioso serviço nas casas aos irmãos, que em caso con- trário sentiriam falta de ideias, de guia, de coordenação e estímulo.

É necessário ver e saber ver com vistas amplas; é necessário ao mesmo tempo ter claro o sentido das proporções. Em síntese, devemos falar francamente e persuadir-nos desta realidade: é muito mais rendoso para as atividades de uma Inspetoria dispor des- ses homens — entende-se preparados e capazes — do que terem eles alguma atividade local a mais. Compreendo perfeitamente como disse acima, as dificuldades especial- mente em certas Inspetorias, mas se entrarmos nessa ordem de ideias, se nos damos conta da validade dessa valorização, as dificuldades serão superadas ainda que o pro- blema deva ser levado em base de redimensionamento das obras. Reconheço que, seja para os Conselhos Inspetoriais, seja para os delegados assim como os deseja o Capítulo Geral, há muito caminho a andar, mas a experiência, na sua totalidade positiva de quem levou as coisas a sério e o propósito sincero expresso pelos participantes do Encontro

de querer providenciar eficazmente, faz nascer em nós a confiança num futuro próximo: o caminho está traçado e aparece sempre mais evidente e bom.

Resta-nos ainda uma palavra a respeito do Vigário da Obra.

Reconheceu-se de um lado a necessidade de sua presença eficiente, mas ao mesmo tempo se declarou sinceramente que com relação a esse ponto estamos bastante longe da meta.

O problema é importante e está intimamente ligado à figura e à função do Diretor, o qual tem responsabilidades essencialmente religiosas, espirituais e educativas. Não deve ser um dirigente da organização, mas o animador da comunidade tanto religiosa como educadora. Por isto o problema deve ser retomado no próximo Capítulo Geral. Entretanto continuam válidos os critérios e as orientações do XIX Capítulo Geral.

Antes, porém, de passar a outro argumento parece-me oportuno fazer ainda uma observação.

Poderá parecer a alguém que estejamos dando excessiva importância às estruturas e que elas sejam quase fim a si mesmas. Está claro que as estruturas não são nem podem ser fim a si mesmas; mas, como as estruturas de ferro e cimento nas construções, tam- bém as nossas são “sustentadoras”; mas... de quê?

Falando sem metáfora: Olhando um pouco para dentro das coisas, ninguém pensa nas estruturas senão como uma função instrumental. Para o Capítulo Geral que as quis e para nós que as devemos realizar, as estruturas têm uma função de serviço essencial, de uma potencialização fundamental da vida religiosa e apostólica da Congregação, re- conhecendo que isso nem sempre aparece evidente a todos. Em síntese, o Capítulo Ge- ral, os Superiores insistem sobre esse ponto porque o veem estritamente ligado com a vida religiosa da nossa comunidade e com a fecundidade do apostolado. Pensemos, por exemplo, no Vigário Inspetorial. Ele, como se faz notar em diversos lugares, tem o papel de aliviar e integrar o Inspetor para que este possa estar habitualmente disponível para todos os interesses religioso-apostólico-humanos dos salesianos (pensemos tão so- mente no papel importantíssimo das visitas que exigem tanto tempo e tranquilidade).

Para concluir: realizamos com sacrifício de toda espécie — e não último o econômico

— os três Encontros Continentais. O trabalho, no seu conjunto, foi bom: os participantes saíram cheios de boa vontade. Mas não basta. Reconhece-se que uma parte não pe- quena da atuação das importantes conclusões dos Encontros está ligada precisamente ao funcionamento das estruturas. Existam, pois, elas e não só de nome. Sejam eficientes e funcionem. Com coragem procure-se superar as dificuldades, mas não se pare diante delas. O interesse e a vida da Congregação o exigem.

 

A nossa missão hoje

Em todos os Encontros não só foi tratado longamente o tema da Pastoral Juvenil, mas este tema esteve presente e é continuamente trazido à baila, em todas as fases dos trabalhos como questão central do carisma salesiano, e na busca não fácil do caminho para a nossa renovação.

Uma verificação emergiu clara, documentada pelos fatos em toda a parte, no Oriente, no Ocidente e ainda mais acentuada na América Latina. Nunca como hoje a nossa missão

— que é essencialmente juvenil — se apresentou tão atual, antes, tão urgentemente invocada.

Pensemos brevemente nas notícias muitas vezes dramáticas, inquietantes, que neste ano apareceram em todos os continentes.

Os jovens com a sua mentalidade tão contraditória, muitas vezes tão diversa e anti- tética à nossa, com seus protestos que tomam formas as mais desconcertantes, mas que muitas vezes contêm germes de positiva autenticidade, manifestando também uma busca sincera de valores e empenhos, se tornaram um centro enorme e vivo de interesse por parte de todos os responsáveis da política, da indústria, da economia, do progresso social do mundo.

É muito significativo, por exemplo, o fato que no governo de muitos países e de gran- des cidades há um secretariado, uma pasta, que se ocupa dos problemas da juventude.

Também o Santo Padre — mais de uma vez — demonstrou todo cordial interesse da Igreja por estas massas de jovens que sacodem a calma da geração adulta. Pois bem, diante desta realidade mundial, quando se pensa, por exemplo, que nos próximos 30 anos, só na América Latina mais de 200.000.000 de jovens pobres e subdesenvolvidos pedirão auxílio, formação, promoção, ou exigirão com a revolução em marcha o reco- nhecimento concreto de seus direitos; como podemos não pensar que a nossa missão, entendida como Dom Bosco aconselhou, é atual não só, mas realmente providencial no mundo de hoje? Ocorrem-nos as palavras que o Santo Padre um dia dirigia a homens de negócios: “Se não ajudais hoje a esses jovens, amanhã eles irão exigir com armas na mão”. A palavra do Santo Padre é ainda mais verdadeira para nós.

Se não nos ocuparmos por todos os meios disponíveis, e, se for o caso, com formas novas e corajosas, e com inteligente e concreto programa, dessa juventude, nós corre- mos o perigo de perder para a Igreja e para a sociedade organizada, tantas falanges de jovens. Vale a pena ler a esse respeito as conclusões de Caracas onde o problema foi mais acentuadamente posto em relevo.

 

Trabalhemos para a juventude pobre

Mas se é verdade que nesses últimos Encontros houve um reconhecimento da atua- lidade da nossa vocação enquanto ela é para a juventude, ao mesmo tempo foi subli- nhado que a nossa vocação é autêntica não só à medida em que ela é juvenil, mas igual- mente popular.

No Encontro de Bangalore e Caracas assim como no de Como, se fez notar clara- mente, embora com palavras diferentes, que a Congregação viverá o seu carisma na medida em que for vocação para os pobres. Constatou-se também com satisfação que em muitas regiões do mundo, a nossa Congregação trabalha generosamente em prol das classes pobres. Mas temos muito que fazer ainda.

“É preciso que voltemos corajosamente ao trabalho entre a juventude pobre e aban- donada nos lugares em que esse testemunho se haja obscurecido e a imagem da Con- gregação se haja deformado”. “O nosso testemunho coletivo de pobreza encontra sua expressão mais salesiana na nossa preferência, de fato, pela juventude pobre” (Conclu- sões de Caracas).

Certamente a esfera da atividade salesiana é vasta, complexa e variada, mas existe um evidente elemento fundamental na aspiração carismática de Dom Bosco: a posição de privilégio pela juventude pobre.

Pois bem, estas verdades não podem imobilizar-se tão só em verificações platônicas e agradáveis, mas devem ser traduzidas em realidades concretas. Somente assim nós seremos sinal mais claro do Cristo pobre e da fidelidade a Dom Bosco, isto é, se “todos no mundo puderem constatar que o primeiro lugar na nossa obra é destinado à juven- tude que nos diversos países é considerada pobre e abandonada” (Conclusão de Banga- lore).

 

Função Pastoral de nossa escola

Outra sincera advertência foi formulada nos três Encontros. A nossa missão juvenil- popular para atingir suas finalidades supremas deve ser eficazmente pastoral: isto vale para todas as nossas atividades e de modo particular para a escola. Está claro que não se trata de abandonar as escolas. A Igreja, o Concílio, o Capítulo Geral, a Hierarquia mesma, têm falado claramente a esse respeito. Na mensagem recentíssima do Papa Paulo VI aos sacerdotes lemos: “Eis: as missões, a juventude, a escola, os doentes, e, com mais premente apelo, hoje, o mundo do trabalho constituem uma urgência contí- nua sobre o coração sacerdotal”; vê-se daqui que o Santo Padre põe ao lado das missões, do mundo do trabalho, o apostolado da escola. O problema, portanto, não é o de aban- donar a escola, mas outro.

A Conferência de Caracas tem palavras corajosas a esse respeito. “Tendo presente a atual situação da Congregação na América Latina e guiados por um sadio realismo, ve- mos que é necessário comprometer-nos a fundo para realizar, a qualquer preço, a pas- toralização de nossa escola. A urgência dessa pastoralização aparece ainda mais pre- mente se pesarmos as graves palavras do Capítulo Geral, que chegam até a perspectiva de fecharmos obras não vitais, isto é, as incapazes de realizar uma pastoral que eduque e forme cristãmente através da escola”.

Convido a todos a meditarem estas afirmações e tirar delas, de acordo com o posto de responsabilidade que cada um ocupa, as necessárias consequências mesmo que custe sacrifício de qualquer forma. Como escrevi na carta de apresentação das conclu- sões de Caracas, é necessário talvez uma corajosa guinada. É necessário fazê-la para responder de fato àquilo que a Igreja e Dom Bosco mesmo nos pedem em nome desta juventude: torná-la cristã, e cristã para os nossos tempos.

As conclusões do redimensionamento, quando fruto dessa serena e corajosa tomada de consciência, poderão ser de grande auxílio na perspectiva pastoral da nossa escola que é a sua razão de ser. Isso poderá servir para devolver confiança e ânimo a muitos irmãos que trabalham neste vasto setor de nossa atividade.

 

Um problema vivo e delicado: Unidade na pluralidade

Mais de uma vez nos três encontros, se falou de um problema que hoje se torna cada vez mais vivo: da Unidade da Congregação na pluralidade. Parece-me útil e interessante, antes, necessário trazer o que foi dito e acentuado nos Encontros.

A fórmula é — ao menos parece — feliz quando afirma duas exigências, que ninguém hoje poderia negar sem colocar-se em contraste com os documentos conciliares e com a realidade. A fórmula não somente afirma que as duas exigências devem coexistir, mas também que devem compenetrar-se de tal maneira que a Unidade fique, se afirme e opere também na pluralidade.

A exigência da unidade nasce na unicidade do “carisma” do fundador que cada Con- gregação deve conservar vivo e vital, e prolongá-lo através dos tempos para oferecê-lo como “espiritualidade” e como “trabalho apostólico específico” a serviço da Igreja em determinado tempo e lugar.

“Aut sint ut sunt, aut non sint.”

O Concílio nos convida a voltar às fontes e estas evidentemente se encontram no fundador que é um só (PC 2). Para nós se chama Dom Bosco.

Do outro lado a exigência da pluralidade nasce fundamentalmente do motivo hoje dominante da “encarnação” que se aplica a todo apostolado eclesial (Cf. PC 2-3, 8, 18. Cf. “Ad Gentes” e “Institutionis Sacerdotalis” passim). Encarnar-se pressupõe conheci- mento, estima e respeito pelas culturas, mentalidades e situações locais a fim de prestar o nosso serviço de acordo com as exigências e necessidades locais.

Aceito o princípio, a questão teoricamente é de fácil colocação e solução, mas na prática não é igualmente fácil a sua plena harmonização. E se no passado não faltaram exageros na interpretação da Unidade a ponto de concebê-la e reduzi-la à uniformidade sacrificando-lhe as articulações, também, evidentemente, necessárias, hoje se pode cor- rer o risco de cair no defeito oposto, isto é, comprometer a unidade por uma acentuação irritante e descontrolada da pluralidade.

E o erro seria mais deletério porque a reconquista da Unidade comprometida, está provado historicamente, foi sempre mais árdua e lenta que não a reconquista do sentido do pluralismo.

 

Critério-guia

In essentia unitas. É pacífico que o carisma do fundador não deve admitir alterações naquilo que constitui sua essência. Mas, de novo, na problemática da vida concreta surge a pergunta fundamental: em que consiste essa essência? Qual a zona de demar- cação entre o essencial — e portanto o unum que devemos afirmar e conservar — e o acessório, que se pode reduzir a situações particulares de tempo e lugar, em que o Ca- risma se encarnou no passado, mas que pode e deve ser regulado pelo princípio do plu- ralismo?

Também aqui é necessária uma observação histórica e psicológica. Há mentalidades e tempos que por sua natureza tendem a alargar desmedidamente a esfera do domínio do essencial. E assim se tende a fazer entrar no Carisma do Fundador cada sua atuação e afirmação, sic et simpliciter, como se todos os santos fundadores estivessem, em todo momento e em toda ocasião, definindo o seu espírito. Além do mais, assim se lhes ne- garia o merecimento de terem sido homens do seu tempo e, portanto, capazes de captar os sinais dos tempos e responder a eles de modo concreto com soluções apropriadas.

Mas há também mentalidades e tempos (é o nosso caso) em que a tendência é oposta, isto é, ampliar ao máximo o campo do acessório. Na base de análises irritantes, inspiradas por uma crítica nem sempre controlada e equilibrada, tende-se a reduzir o essencial do carisma do fundador a um esqueleto já incapaz de operar como coisa viva. À força de fazer passar como acessório e ligado ao tempo um elemento após outro, uma regra após outra, uma tradição após outra... arriscamo-nos a ficar de mãos vazias.

 

Distinção essencial — acessório

De quanto foi dito aparece claro que uma Congregação que queira afirmar a unidade na pluralidade não pode deixar ao critério particular de cada um fixar os limites entre o essencial e o acessório. Como explica Perfectae Caritatis, é esta a tarefa principal dos Capítulos Gerais, aos quais têm direito e dever de dar a sua contribuição todos os mem- bros da Congregação. O XIX Capítulo Geral, com seu conteúdo riquíssimo e com as es- truturas criadas para os vários níveis, trouxe a afirmação de unidade e de atuações arti- culadas.

Fora dessa posição, existe a arbitrariedade. Mesmo quando ditada por intenções sub- jetivamente boas, só serviria para comprometer a vida mesma da Congregação. Com isso, é claro, não se quer dogmatizar e considerar obra perfeita e definitiva a do XIX Capítulo Geral. Pelo contrário! Mas os complementos, os aperfeiçoamentos, as modifi- cações, as adaptações, que a história impõe precisamente aos fins da vitalidade do ca- risma do Fundador, não podem ser arbitrariamente antecipados, não estando ninguém autorizado a considerar-se a voz e o pensamento da Congregação em matéria tão deli- cada.

 

As “Experiências”

Neste contexto devem ser consideradas as “experiências”. O Concílio frequente- mente a elas se refere. O mesmo faz o Capítulo Geral falando de “Experimentações”.

Num mundo em rápida transformação é óbvio que não se possa ter para cada caso uma legislação mais adequada, estruturas já bem definidas, homens plenamente quali- ficados para enfrentar problemas sempre novos. Não só, mas tantas vezes, — talvez na maior parte dos casos — o caminho a encetar não se apresenta claro e está longe de não oferecer incertezas. São todos motivos que hoje nos levam a falar muitas vezes em “experiências”, “experimentações”, etc.

Parece que a esse respeito devamos ter presente alguns critérios:

  1. Fins que se propõem as experiências

Experimentar um determinado caminho para realizar a potencialização de nossa vida religiosa ou da formação do salesiano ou da nossa pastoral em resposta ao espírito e às deliberações conciliares e capitulares.

  1. Limites

As experimentações são, pois, meios e, como tais, não devem e não podem estar em contraste com a finalidade para cuja consecução se realizam.

Não têm por isso em si mesmas o poder de autojustificação; o juízo de valor sobre estas experimentações lhes advém dos objetivos a cujos serviços foram postas. Tais ob- jetivos são precisados e indicados na sede competente (Concílio, Constituições, Capítulo Geral etc.) e não podem ser obliterados ou pior contraditos.

  1. Setores das “experiências”

Podem ser: a Vida Religiosa, as Formas de Apostolado.

É evidente que os dois campos têm particulares exigências próprias, derivadas de sua natureza peculiar. Uma experimentação num setor não pode ser avaliada com critérios próprios de outra, embora sejam incontestáveis as relações contínuas e as influências dos dois campos.

  1. Autorização para as “experiências”

É da competência da autoridade à qual se pede e da qual depende — de acordo com as Constituições, e, para novas estruturas, de acordo com o Capítulo Geral — a atuação do fim particular para cuja consecução se quer a experiência.

Está claro que tal autoridade para dar ou negar a sua autorização não se baseará sobre o seu próprio critério pessoal e exclusivo, mas chegará à conclusão através de um estudo atento, diálogo e um sentido de responsabilidade.

  1. As condições

Uma experimentação, por definição, é um dado totalmente concreto. É óbvio, pois, que seja condicionada a fatores concretos, isto é, pessoas (disponibilidade, proporção adequada, etc.), ambiente sociocultural, situação religiosa local etc.

A experiência, além disso, deve ser controlada à medida que se realiza e deve ser submetida periodicamente à revisão crítica dos Conselhos competentes nos vários ní- veis para medir-lhe objetivamente a validade, levar a ela os retoques necessários, para conseguir o enriquecimento da formação da vida religiosa e a potencialização apostólica a que todos devemos tender.

Por aquilo que acabamos de dizer, aparece claro como se deve proceder com sabe- doria, prudência e de acordo com as normas que desejam ser, uma ajuda e uma garantia e não uma rêmora injustificada, para que tais eventuais experiências não degenerem e se tornem fatores negativos, ao invés de real enriquecimento.

Somente agindo assim a Congregação poderá experimentar os benefícios das dispo- sições e do espírito, provenientes do Concílio e do Capítulo Geral, e aquilo que todos temos a peito: o verdadeiro bem da Congregação.

 

O ano da Fé nos leve a uma vida de fé

No início desta minha carta me referia ao coroamento de um período de grandes acontecimentos. Exatamente no dia 30 de junho concluía-se o Ano da Fé. Na véspera daquele domingo, Pedro, na pessoa do seu Sucessor Paulo VI, repetia diante do mundo a sua profissão de fé. Tu és o Cristo, Filho de Deus vivo.

O ano não podia fechar-se de maneira mais significativa e apropriada. A profissão de Fé pronunciada por Paulo VI não foi um número de uma solene cerimônia papal, mas uma solene e clara resposta ao bombardeio de “ideias novas” tão violentas e prolonga- das que provocaram um desconcerto também em certos pastores de almas e alguns teólogos de profissão.

Nós, enquanto recolhemos com reconhecimento e confiança a palavra que nos vem da cátedra de Pedro, queremos certamente fazer tesouro de toda a riqueza e luz que adveio às nossas almas durante o ano da Fé.

Queremos dar ao ano da fé, agora já passado, uma projeção na nossa vida e nas nos- sas atividades, que somente da fé podem tirar inspiração, sentido e valor.

Muito oportunas neste momento, são as palavras de Jean Guitton: “A Igreja se sus- tenta tão somente sobre a fé. Sem a fé a caridade não é senão fraternidade humana. Sem a fé, que seria dos Sacramentos? Símbolos mágicos! Que seria a oração? Uma pa- lavra vã! E a liturgia? Uma representação sacra! E a Confissão? Psicanálise! O Catecismo? Uma coletânea de normas morais e de absurdos! O Evangelho? Um venerável mito! Sem a fé o que seria do ecumenismo? Piedosa comédia, porque não nos podemos unir a não ser numa fé comum”.

Estas palavras merecem refletidas. Mas queremos acrescentar alguma coisa que nos toca muito de perto.

Sem a fé, de fato, tudo na Igreja e no âmbito da nossa vida religiosa, se tornaria in- compreensível ou perderia o seu significado genuíno. Que sentido teria sem a fé a vida da Graça, os Sacramentos e a Liturgia? Como poderíamos viver com alegria os nossos votos se a fé não os iluminasse diante dos nossos olhos e não no-los mostrasse como instrumento da mais viva imitação de Cristo e de plena disponibilidade ao serviço do Pai e dos Irmãos?

Como diz São Paulo, sem a fé seríamos os mais miseráveis dos homens. Mas o com- promisso que a fé exige de nós não é somente uma adesão de ordem intelectual a Deus e às verdades por Ele reveladas. Trata-se de um compromisso que invade toda a pessoa: inteligência, vontade, sentimento. Portanto, um compromisso vital, existencial.

“Crer implica entrar na escola de Cristo com o pensamento, com o coração, com o sentimento do justo e do injusto, com tudo aquilo de que a vida humana está entrela- çada” (Guardini).

Podemos dizer que estamos animados de verdadeiro espírito de fé somente quando o nosso juízo a respeito das realidades terrestres e dos acontecimentos da nossa vida e os motivos inspiradores das nossas ações os haurimos da meditação da palavra de Deus e dos ensinamentos de Cristo e da Igreja, constantemente presentes em nós. O exemplo de nosso Pai seja para nós luz e força. Dele escreveu o padre Céria: “As verdades da fé, Dom Bosco foi sempre ávido de conhecê-las, firme em acreditá-las, fervoroso em pro- fessá-las, zeloso em inculcá-las, forte em defendê-las”.

 

Alimentemos a nossa fé

Surge natural a pergunta: Como alimentamos a nossa fé?

Quais são as leituras realmente espirituais — sólidas e seguras — que enriquecem, consolidam a nossa fé e confortam a nossa alma? Certo, não poderão nutri-la — a nossa pobre alma — as páginas de certas revistas que recolhem os devaneios de escritores mais ricos de presunção que de verdadeira doutrina, ou aquelas em que tudo se coloca em discussão, desde a autoridade do Papa, até as mesmas normas da moral. Os docu- mentos do magistério pontifício e eclesiástico são certamente alimento substancioso, seguro e que corresponde às exigências dos tempos.

Quero acreditar que em todas as casas cheguem essas publicações. Lembro que L’Os- servatore Romano publica a edição semanal em várias línguas. Lá se encontra o ensina- mento do Papa e da hierarquia continuamente atualizado. Todas as casas deveriam re- cebê-lo.

Convém reconhecer, com honesta coragem: pode perder-se a fé mesmo sendo reli- giosos, sendo sacerdotes (e disso temos dolorosos exemplos). E, então, como defender- se deste perigo? Do outro lado, se a fé, para ser verdadeira, deve envolver toda a vida, como se alimenta sem a meditação, na qual a verdade se aprofunda, se assimila, se transforma em convicção, em estilo de vida, em ação?

Por isso, gostaria de interrogar a cada um de vós, com carinho paterno: como vai a tua meditação? Ela anima o teu dia? A tua atividade?

Ouçamos também as perguntas sentidas que o Papa Paulo VI nos apresenta a nós sacerdotes, apóstolos: “Como arde em nós a lâmpada da contemplação? Como nos dei- xamos atrair por esse íntimo ponto focal da nossa personalidade, afastando-nos, por alguns momentos, da pressão de ocupações exteriores para um colóquio interior? Te- mos conservado o gosto pela oração pessoal, pela meditação? Pelo breviário? Como poderemos dar à nossa atividade o seu máximo rendimento se não sabemos haurir da fonte interior, do colóquio com Deus, as melhores energias que somente Ele pode dar? (Mensagem de Paulo VI aos sacerdotes).

Sem a meditação, sem a leitura espiritual, sem a leitura meditada e metódica da Sa- grada Escritura, como se sustenta a alma religiosa e sacerdotal no meio de assaltos de toda a espécie que lhe advêm de toda parte? Sem verdadeira meditação animadora da fé viva e operosa a mesma Eucaristia se reduz a uma representação exterior.

A experiência de cada dia confirma sempre mais dolorosamente que sem a medita- ção (toda aquela riqueza de fé e caridade que esta palavra implica) se processa o esva- ziamento da alma e advêm o laicismo prático, o trabalho pelo trabalho ou por outras finalidades secundárias, o endurecimento da consciência fácil a compromissos e conces- sões, o apostolado desloca-se para atividade social: então o religioso assim esvaziado torna-se também aos olhos dos homens não portador, doador e revelador de Cristo, mas coisa bem diferente: um organizador de bonitas festas, um professor até mesmo de religião, um ministro do culto ou um diretor de obras sociais... Com que consequên- cias para ele e — não menos — para as almas?

 

Como os leigos nos querem

Permiti destacar alguns pensamentos de uma carta que um jovem enviou ao Diretor de uma das nossas Revistas. É o estilo áspero e amargo próprio do jovem de hoje, mas nela se descobre o desejo ardente de encontrar no sacerdote, no apóstolo, o homem que, vivendo a sua fé, revele às almas o dom de Deus. É matéria para um frutuoso exame de consciência para todos, não somente para os sacerdotes, que nos ajudará exata- mente a viver a nossa fé como apóstolos.

“Não basta “agir” como sacerdote; é necessário “ser” sacerdote”.

“Não encontrei coisa mais odiosa que ver um homem trair a própria missão; e hoje neste período de grande confusão de ideias, para o sacerdote esta é uma tentação. A tentação de descer do sobrenatural e reduzir-se ao humano com todas as suas conse- quências”. “Para fazer-se compreender pelos contemporâneos, isso leva vários sacerdo- tes à falência, à desintegração, ao abandono da posição de testemunhas do sobrenatu- ral. Para nós, vós sois mais do que simples homens. Diante dos nossos olhos vós sois os guardiões de “alguma coisa que garante”, que liberta, que dá alegria, paz, serenidade. Vós nos falais em nome de Cristo, por isso vos ouvimos, vos escutamos. É incômoda a posição de testemunhas de um crucificado, mas esta é a vossa missão. Vós a escolhestes “livremente”.

“Às vezes diante de alguns sacerdotes tive a sensação de encontrar-me frente à frente com renunciatários, com insatisfeitos com a vida. Tive a sensação que também nos sacerdotes se tenha subvertida a hierarquia de valores”.

“Hoje, muitas vezes o sacerdote busca o carro por si mesmo. Em casa possui todo o conforto possível: televisão, alta fidelidade, gravador, geladeira... Aos nossos olhos es- sas coisas parecem muitas vezes somente uma evasão da verdadeira vida, talvez uma

“alienação” afetiva, uma fuga. Não digo que deveis reduzir-vos à miséria, não. Mas ao menos mostrai-nos que não são essas as preocupações primeiras de um homem”.

“Tende piedade de nós... não temos necessidade que aumenteis a confusão de nos- sas ideias já por si tão pouco claras. De vós esperamos mais do que um maço de cigarros ou semelhantes paliativos. De vós esperamos o Cristo, esperamos a Deus. Vós no-lo de- veis dar com a vossa vida”.

Na recente mensagem de Paulo VI aos sacerdotes parecemos encontrar uma res- posta à invocação desses jovens... “É, portanto, para um aprofundamento da própria fé que a situação atual deve levar o sacerdote, isto é, para uma consciência sempre mais clara de quem ele é, e de que poderes está revestido, de que missão encarregado”.

Caríssimos irmãos e filhos, nas palavras deste jovem de vinte anos podemos reconhe- cer o grito de milhares e milhares de jovens de hoje.

Recolhamo-lo! Vivamos a nossa fé alimentando-a e defendendo-a cotidianamente. Sejamos dela sinais límpidos e eficazes difusores, especialmente no mundo juvenil que olha para nós com olhos de viva esperança.

O Senhor nos abençoe a todos, nos dê força e coragem para sermos todos os dias filhos dignos da Igreja e de Dom Bosco.

A todos e a cada um a minha saudação afetuosa. Rezai por mim. Eu vos asseguro a minha constante lembrança in fractione panis.

Vosso afeiçoadíssimo em Jesus Cristo,

Sac. Luís Ricceri
Reitor-Mor

A NOSSA POBREZA HOJE

 P. Luís Ricceri
Atos do Conselho Superior n. 253

Turim, 27 de outubro de 1968
Festa de Cristo Rei

A pobreza: uma virtude não contestada. – Nosso empenho. – Nas pegadas de Cristo. – A pobreza nos torna livres. – Uma ideia central do Concílio. – Um testemunho que os homens do nosso tempo espe- ram. – Uma realidade não só econômica. – Um confronto leal. – Motivos de confusão. – O vírus do bem-estar. – Ruína da vida religiosa. – Salesianos pobres para a juventude pobre. – O apelo da Con- gregação. – As nossas obras no espelho da pobreza. – A nossa resposta. – Pobre exterior e interior. – Equívoco legalista. – Maturidade e discrição. – Incoerências. – A saúde dos Irmãos. – Os bens da Con- gregação. – “A lei comum do trabalho”. – O trabalho, gloriosa divisa do Salesiano. – Valorizar os talen- tos. – Pobreza coletiva. – Solidariedade com os pobres. – Solidariedade entre as casas. – Convido a uma solidariedade concreta. – A propósito do dinheiro. – Administração ordenada e responsável. – As nossas obrigações sociais. – Bem-aventurados os pobres.

 

Irmãos e filhos caríssimos,

Há tempo estava pensando em entreter-vos sobre um argumento de particular e atual interesse para a vida e a missão da nossa Congregação na Igreja de hoje e — an- tes ainda — para a nossa vida e vocação pessoal de religiosos e salesianos.

Os contatos destes últimos meses — direta ou indiretamente — em parte com to- das as Inspetorias e com muitíssimos irmãos, as numerosas cartas de várias partes do mundo, as relações ouvidas nos três Encontros continentais dos Inspetores, confirmam que não devo deixar para mais tarde este tema.

Entreter-vos-ei, pois, sobre o tema da pobreza, convicto de cumprir assim meu exa- to dever, de vir a um tempo ao encontro do desejo e — por que não o dizer? — das preocupações de tantos irmãos que vêm precisamente na pobreza um poderoso e in- substituível sustentáculo para a sorte da nossa Congregação, sustentáculo que deve- mos todos juntos manter bem firme. Digo todos, porque cada um de nós — mesmo sem o saber — tem a sua parte positiva ou negativa na defesa desse baluarte da vida religiosa. De fato, foi dito que a pobreza, na linha de defesa e de conquista de cada Instituto, representa um ponto de ruptura. E com razão: basta um pouco de reflexão, basta um exame superficial da história eclesiástica para dar-se conta das repercussões que a pobreza tem nos pontos nevrálgicos de uma Congregação.

Explicam-se, destarte, as palavras constantemente graves, amargas e, diria, apocalí- ticas do nosso Pai, diante de perspectivas de cedimento na pobreza na Congregação. Dom Bosco, aliás, está na mesma linha dos grandes Fundadores e Pais de Ordens Reli- giosas. Santo Inácio chama a pobreza “baluarte que protege o estado religioso”. Santo

Afonso acrescenta que “tocar na pobreza significa abalar o edifício inteiro da Congre- gação”.

E Dom Bosco? Todos conservamos no coração aquelas palavras que nos fazem tre- mer: “Ai daquelas casas em que se começa a viver como ricos” (MB IX, 701); “Fazei com que ninguém tenha que dizer: estes móveis não indicam pobreza, esta mesa, esta roupa, este quarto não é de pobre... Quem dá margem razoável para tais apreciações, causa um desastre à Congregação que deve sempre gloriar-se da sua pobreza” (MB XVII, 271).

Quisera que cada uma dessas palavras do nosso Pai fosse meditada em cada casa, em cada Inspetoria e confrontada com a situação que hoje ali se verifica.

 

A pobreza: uma virtude não contestada

Existe, além do mais, um fato que todos facilmente podem verificar e nos convida à vigilante e diligente atenção sobre a pobreza.

Na Igreja hoje se ouvem contestações, embora não plausíveis, acerca do celibato, da obediência e da mesma natureza de nossa vida religiosa; mas com relação à pobre- za não só dos religiosos como dos sacerdotes, na Igreja inteira, não há contestação alguma; pelo contrário, acentua-se fortemente o auspício que se pratique na Igreja e, a esse respeito, ouve-se um coro possante de vozes provenientes de toda classe de pes- soas, dentro da mesma Igreja e fora dela. De todas as partes ecoa a voz do Concílio e do pós-concílio, de João XXIII e de Paulo VI.

Quer-se não somente uma “Igreja dos pobres”, mas “uma Igreja pobre”. Reclamam- se ministros de Cristo e apóstolos que sejam verdadeiramente pobres; desejam-se ver obras apostólicas que exprimam e demonstrem claramente essa pobreza, e não uma organização económica ou como quer que seja uma demonstração de poderio; deplo- ra-se em altas vozes que “ordens religiosas levam uma vida mais confortável e mais cômoda do que muitos leigos que têm obrigações de família e que trabalham dura- mente” (Fesquet, Roma si é convertita?). “Só uma Igreja evangelicamente pobre — foi ainda escrito — poderá evangelizar o mundo da era atômica, que se descobriu espan- tosamente pobre”.

A sensibilidade por uma pobreza que se diria insuficiente na Igreja e, mais ainda, na vida religiosa de hoje, mesmo entre elementos de intemperança e de extremismo, apresenta sem dúvida aspectos positivos, consoladores e, ao mesmo tempo, admoes- tadores.

Com efeito, o homem de hoje, em meio a tantos defeitos, possui peculiares atitudes psicológicas que o levam a procurar na Igreja e nos homens valores autênticos, coeren- tes com a sua profissão e encarnados, como se costuma dizer, tais que sejam bem “le- gíveis” também pelo superficial, mas exigente homem moderno.

A atitude, como eu dizia, verifica-se com evidência relativamente à nossa pobreza. Mas também não devemos ignorar um perigo nessa atitude, especialmente em nos-

so ambiente, isto é, o perigo do verbalismo, daquilo que foi definido a retórica da po- breza.

Um escritor de espiritualidade observa a esse respeito: “Acontece na vida religiosa que aqueles que mais falam sobre a pobreza nem sempre são os mais atentos em evi- tar desperdícios, despesas inúteis, exigências caras, e têm muitas vezes pretensões

que deixam desconcertados”. “Para a pobreza, como aliás para o resto, testemunha o Evangelho, não consiste tudo em palavras bonitas, mas em ouvir, conservar e pôr em prática as palavras mesmas do Senhor” (Benoit-Lavaud, Rivista di Ascética e Mística, 1967 pág. 347).

 

Nosso empenho.

Justamente a isso se destinam estas páginas, caríssimos irmãos. Convido-vos a lê- las, a fazer delas matéria para reflexão pessoal e, — por que não? — para diálogo útil, a fim de tirar delas conclusões concretas, embora não fáceis.

Se o fenômeno da pobreza é tão vivo no nosso tempo, despertando em todas as di- reções interesses e preocupações, a nossa Congregação deve sentir o problema como determinante no enfoque de sua vida e atividade espiritual e apostólica, antes mesmo de certos problemas de disciplina, organização, ação, etc.

A Congregação, podemos afirmá-lo tranquilamente, nasceu da pobreza, cresceu com a pobreza, surgiu para os pobres. Por isso hoje, diante de fenômenos de desvios, diante de cedimento e de compromissos, ela deve olhar com responsável clareza o problema que não é secundário, e deve indicar os caminhos e as modalidades oportu- nas para que se opere um redimensionamento substancial e prioritário com a colabo- ração de todos, na fidelidade absoluta a Dom Bosco, que foi Pai dos meninos pobres e necessitados, e quis uma Congregação pobre para a juventude pobre.

 

Nas pegadas de Cristo.

Antes, porém, de colocarmo-nos num plano prático, é necessário que recordemos juntos algumas ideias fundamentais das quais emanam, por força de lógica e coerên- cia, as deduções concretas que empenham a nossa vida pessoal e a da comunidade, as nossas responsabilidades de superiores, de administradores, de apóstolos, de mem- bros vivos e ativos da Congregação.

A nossa pobreza enraíza os seus motivos na nossa consagração a Deus, levada com os votos às últimas consequências, fazendo de nossa vida inteira um serviço exclusivo de Deus. Nós afirmamos, mais do que com as palavras, com a nossa vida de consagra- dos: “Ecce nos reliquimus omnia” (Mt 18,27); “Ego sum vinctus in Domino” (Ef. 4,1). Nós aceitamos em cheio a palavra de Paulo que diz: “Non estis vestri” (1Cor 6,19). E sentimos que uma vida religiosa que saísse dessas perspectivas seria absurda, isto é, uma vida que não teria explicação lógica, com todas as consequências.

Reconhecemos então — também através de uma ampla e triste experiência toda a verdade da afirmação do XIX Capítulo Geral: “O Salesiano para quem o Cristo e Seu Pai já não são os grandes presentes na sua vida, perdeu a fonte da verdadeira alegria e da generosidade sobrenatural” (ACG XIX, pág. 92).

Mas a nossa consagração, o estado religioso que abraçamos, levam, na expressão da Lumen Gentium a uma imitação generosa e diligente de Cristo: “... o estado religio- so mais fielmente imita e continuamente representa na Igreja a forma de vida que o Filho de Deus abraçou quando veio ao mundo” (LG 44).

E isto, é claro, vale sem mais “para a vida pobre que o Cristo Senhor escolheu para si” (ib. 46). Com ela, de fato, por meio de nossa consagração entendíamos e entende- mos uniformizar toda a nossa vida.

O Decreto Perfectae Caritatis diz precisamente, e sem dúvida são palavras bem ponderadas: “A pobreza voluntária, motivada no seguimento de Cristo, de que se constitui, sobretudo nos dias de hoje sinal muito apreciado, deve ser cultivada diligen- temente pelos religiosos” (PC 13).

Aqui está, pois, o centro e o fundamento da nossa pobreza, a “sequela Christi”, a quem voluntariamente nos devotamos: Cristo pobre, nosso exemplo, nosso tipo, nosso ideal. E isso não num plano platónico, retórico, mas real, vital.

Também nós repetimos com Francisco: “Nudus nudum sequar”. — Quero ser fiel seguidor de Cristo pobre, verdadeiro pobre. Dele diz Romano Guardini: “A estirpe da qual Cristo descende é decaída, e Ele está bem longe de pensar em reintegrá-la; de uma corrida para o poder nem sequer a mais remota ideia... Jesus é pobre. Não como Sócrates, cuja pobreza desperta fama de filósofo. Não! É pobre, assim, simplesmente, realmente” (Guardini, Il Signore, pág. 229). E ainda: “O que é característico em Cristo, não está no fato que Ele renuncie às delicadezas do mundo para impor-se privações, mas na liberdade... Liberdade perfeita, serena, soberana. Eis a grandeza do Senhor. Ele é livre de todo mais remoto rancor por aquilo que Ele não goza” (Ib. pág. 258). Estas observações de Guardini nos devem guiar na avaliação de todas as referências evangé- licas sobre o Cristo pobre que achamos também em Perfectae Caritatis. Pois bem, de Belém a Nazaré, ao Calvário, ao Sepulcro posto à disposição por José de Arimateia, Cristo viu a pobreza como libertação, e, portanto, a vida na pobreza como vida na li- berdade.

 

A pobreza nos liberta

E é justamente a liberdade um “elemento oxigenante e dinâmico” da nossa pobre- za. Liberdade que torna a nossa alma disponível para Deus. No autossuficiente não há lugar para Deus, e quando quem vive a pobreza evangélica adverte a insuficiência hu- mana e a consequente necessidade de Deus que ele procura e encontra livre dos laços e do peso das coisas terrenas.

“O sacerdote, diz Courtois, — e nós poderíamos dizer o religioso — estando pesso- almente afastado dos bens materiais, não é tentado a esquecer, na azáfama da ação, os meios sobrenaturais: ele faz as contas com Deus, conta com Deus, e Deus não falha. Desde que ele não tem outra finalidade que não seja o Seu Reino, todo o resto lhe é dado por acréscimo; desde que renunciou ao espírito de propriedade que, no entender de Olier, é o que se possa imaginar de mais contrário ao espírito cristão, Deus toma posse dele, fala através de seus lábios, ama por meio de seu coração e se doa através de sua dedicação” (G. Courtois, Incontri con Dio, Vol. II, pág. 87).

A pobreza é o primeiro corretivo a orientar para os bens espirituais numa sociedade (e todos nós não podemos ficar estranhos a ela) que com a multiplicação dos bens ma- teriais corre o risco de ficar escrava.

Com razão se fez notar que o ateísmo explícito nasceu primeiramente nos países opulentos. É mais do que sabido que o mal da imoralidade, e não somente isso, é pre- cedido pelo da riqueza e do bem-estar, que fizeram esquecer as coisas do céu. Enquan- to, pois, o progresso puramente material arrisca fazer perder a visão e o sentido das coisas espirituais, a pobreza (não dizemos a miséria, note-se bem) traz na vida do ho- mem o sentido das proporções dos valores sem nivelar nem materializar. Tudo isso, é supérfluo dizê-lo, vale exatamente também para nós religiosos, e a experiência cotidiana no-lo confirma: a falta de pobreza no indivíduo e na comunidade afeta fatalmente a vida religiosa nos seus elementos essenciais, desde a castidade à piedade, do zelo apostólico à vida comunitária. Não se exagera se se afirmar que numerosos males e desastres nas comunidades eclesiais e religiosas estão intimamente ligados com o so- lapamento da pobreza. É a lição da história que no-lo diz e o confirma a crônica e a experiência cotidianas.

 

Uma ideia central do Concílio

Compreende-se então como a Igreja do Concílio, examinando-se corajosamente à luz de Cristo e da história, tenha posto o acento sobre a pobreza como sobre um ponto cardial.

Uma ideia central, no meio de tantas referências a este respeito, a encontramos na Lumen Gentium. Aí lemos com efeito: “Assim como Cristo consumou a obra da reden- ção na pobreza, assim a Igreja é chamada a seguir o mesmo caminho a fim de comuni- car aos homens os frutos da salvação” (LG 8).

Esta afirmação programática encontra uma explicação mais concreta nas palavras de Paulo VI. Ele, de fato, na Ecclesiam suam assim fala aos Bispos: “Achamos que o espírito de pobreza seja necessário para fazer-nos compreender tantas fraquezas nos- sas e ruínas nos tempos passados e para fazer-nos compreender outrossim, qual deva ser o teor de vida e qual o método melhor para anunciar às almas a religião de Cristo. Nós aguardamos que vós digais como devam, pastores e fiéis, dar à sua palavra e à sua conduta a marca da pobreza” (n. 56).

A Igreja, pois, sem sombra de dúvida, vê na pobreza o seu caminho, o seu método,  a sua mesma vida. For isso quer libertar-se daquilo que o Papa João chamará “formas imperiais”.

E é justamente esse sentido de libertação proveniente da pobreza evangèlicamente vivida que leva o mesmo Papa João a dizer: “Não é sem grande esperança e com nosso grande conforto que vemos a Igreja hoje, finalmente, não sujeita a tantos obstáculos de natureza profana, que havia no passado” (Discurso de abertura do Concílio Ecumê- nico Vaticano II, 11 de outubro de 1962).

Paulo VI, reforçando, sentirá a necessidade de afirmar: “É mister que nós liberemos a Igreja do manto real que há séculos foi jogado sobre seus ombros...”; antes, falando à nobreza romana, Ele poderá dizer: “Sentimo-nos humanamente pobres diante de vós; diante de vós, nós agora estamos de mãos vazias”. Mas imediatamente acrescenta com ares de alegre vitória: “O título com que nós nos apresentamos é tão somente o do poder espiritual” (Discurso à Aristocracia Romana, 14 de janeiro de 1964).

 

Um testemunho que os homens de nosso tempo esperam.

É exatamente isso que a sociedade e os fiéis esperam da Igreja, dos seus homens, de nós.

Eis uma síntese dessa espera motivada: “O eclipse de Deus, que de maneira tão alarmante se produziu no seio das antigas cristandades, está em relação com a densi- dade de riquezas e com o poder que, com a sua espessa opacidade, destruiu a transpa- rência divina da Igreja. Uma Igreja humanamente poderosa e rica de maneira alguma pode fazer transparecer a distância transcendente do Absolutamente Outro. No hori-

zonte da humanidade atômica Deus só poderá aparecer através da sutil e tênue trans- parência de uma Igreja pobre, humilde e despojada” (Gonzalez Ruiz, Pobreza Evangéli- ca e promoção humana, pág. 110).

Em suma, tudo nos leva a uma pobreza que se traduz numa liberdade total diante das potências da terra, seja qual for o modo com que elas se exprimam e operem, uma pobreza destacada dos bens da terra, uma pobreza sobretudo desinteressada que sai- ba adaptar-se a condições novas, que vá ao encontro dos pobres, dos necessitados; uma pobreza que seja “desaprovação do primado da economia e da capacidade dos bens temporais na satisfação do coração humano” (Card. Montini, Discursos).

É essa pobreza de “libertação interior” (Paulo VI) que regula e dosa a justa relação com as coisas do mundo: com a técnica, com as comodidades modernas, com o diver- timento, etc.

 

Uma realidade não somente econômica

Mas consideremos mais especificamente a nossa pobreza de consagrados, de religi- osos.

Dizíamos que na definição de pobreza religiosa apresentada pelo Perfectae Carita- tis, simplicíssima, entretanto tão bem enquadrada, encontra-se o porquê dessa virtude que nós voluntariamente aceitamos: “Seguimento de Cristo” (PC 13).

Nossa pobreza, pois, não é uma realidade econômica e social, que nós não esco- lhemos, mas tão somente suportada, como a de muitos: a nossa é uma pobreza esco- lhida livremente, buscada, mas não para ficarmos livres das preocupações do dinheiro e dos bens temporais. Seria essa uma pobreza simplesmente estoica.

Lembremos o pensamento de S. Jerônimo: “O importante não é o “nós deixamos tudo”: também o filósofo Crates faz isso; e muitos outros desprezaram a riqueza. O im- portante é “para seguir-Te”, e isso é peculiar dos apóstolos e dos que acreditam” (Da Homilia do Comum dos Abades).

E nós acrescentamos que o religioso com o seu desapego também exterior se colo- ca em condições de “seguir a Cristo mais de perto”. E por que? Porque o ama! Com um amor que se faz imitação, união, serviço.

Nós escolhemos e amamos a pobreza porque Jesus a amou. Tomamos parte ale- gremente na pobreza, porque ela assinalou todas as etapas de sua vida, porque sabe- mos, como Ele ensinou, que o nosso tesouro está nos céus, e que Cristo ressuscitado é a nossa verdadeira riqueza; e isso nos leva a tender com mais entusiasmo e com maior garantia à posse dos bens eternos.

Destarte a nossa pobreza, ao mesmo tempo que é sinal de nosso amor a Cristo, ex- prime a nossa fé nele, nas suas promessas, na sua palavra; e desta palavra dá teste- munho ao mundo que hoje está mais disposto a acreditar diante da nossa pobreza que diante de obras, mesmo impressionantes.

A esse respeito dizia o Card. Verdier: “Minha longa experiência me ensinou que o povo ama verdadeiramente não o apóstolo eloquente, não o apóstolo culto, e nem sequer o apóstolo piedoso, mas aquele do qual se pode dizer: Este não tem nada para si! O apóstolo que é verdadeiramente pobre está na crista da onda do povo e faz mila- gres no meio dele”.

Por isso, ao mesmo tempo que trabalhamos seriamente e sem descanso para o nos- so sustento cotidiano, olhemos, sim, para o amanhã, devemos prevê-lo também, mas sem inquietação desesperada entregando-nos com confiança nos braços de nosso Pai que nutre as aves do firmamento e veste os lírios do campo...

 

Realizações e solidariedade

Mas essa nossa pobreza alegre e amorosamente voluntária traz outros magníficos frutos.

Com ela, enquanto renunciamos a ter bens estritamente pessoais à nossa disposi- ção, eliminando assim aqueles motivos de lutas, de ciúmes e de ansiedades que angus- tiam e envenenam tantas existências no mundo, ao mesmo tempo cada um de nós contribui com suas forças, seus recursos pessoais, suas atividades para o bem de todos os irmãos, dos quais correlativamente recebe de acordo com suas necessidades con- cretas.

É a lei da solidariedade que opera nos dois sentidos: recebe e dá; sendo cada um útil a todos e contemporaneamente é ajudado por todos.

É a realização no tempo da fraternidade dos primeiros cristãos que “viviam com igualdade e punham tudo em comum” (At, 2,44); fraternidade que deve exprimir-se numa igualdade real entre os irmãos, sem aquelas discriminações que anulam de fato a vida fraternamente comunitária. Nenhuma diferença, pois, no uso de tantas coisas entre os que administram e os que não administram, entre quem faz o trabalho dire- tamente remunerado e quem exercita atividade que economicamente não rende; a única diferença admissível será devida a motivos de saúde ou de serviço.

Uma pobreza vivida assim é a superação do egoístico “meu” e “teu” que envenena e mata, muitas vezes, também nas famílias naturais, a caridade fraterna, e é justamen- te o incentivo na construção de uma vida comunitária na verdadeira caridade.

 

Amor pelos pobres

Mas sempre a propósito da pobreza religiosa, em Perfectae Caritatis lemos outra palavra que nos convida a refletir: “Os religiosos devem amar os pobres nas entranhas de Cristo” (PC 13). Esta passagem é extremamente lógica. De fato, com a pobreza vo- luntária nós nos unimos não somente ao Cristo pobre, mas a todos os pobres dos quais Cristo quis ser irmão a ponto de, em certo sentido, identificar-se com eles.

Jesus se coloca no lugar dos pobres “... a mim o fizestes”! Tudo isso não é uma co- movente metáfora, uma sublime ficção, mas uma realidade, uma clara identificação. Jesus, de fato, não disse “suponde fazê-lo a mim”, nem “eu o considero feito a mim”; mas disse: a mim o fizestes”.

Há, portanto, uma presença de Cristo nos pobres que são os clientes privilegiados do Evangelho: a eles, nessa linha, a Igreja do Vaticano II tem demonstrado toda a sua predileção, feita não de sentimentos e retórica, mas de compreensão e obras.

Esse apelo a olhar para os pobres, de parar no seu triste caminho com o coração de samaritano, é tanto mais forte e urgente, quando, através dos meios modernos que a técnica nos oferece, os sofrimentos, a miséria, as necessidades de milhões de irmãos, pequenos, velhos, mulheres, já não são ignorados, já não se podem ignorar, mas em poucos minutos se apresentam a nossos olhos em toda a sua tristíssima e chocante realidade. Hoje podemos dizer que temos um conhecimento documentado e contínuo; há somente o perigo de que os nossos olhos e — pior ainda — o nosso coração se acostumem a essa visão.

“Hoje, na nossa assim chamada civilização da opulência, e num mundo em que os homens aprenderam a dirigir mísseis, mas não aprenderam a viver como irmãos, numa sociedade em que a maior parte desconta com a fome a indigestão de poucos, a misé- ria assumiu proporções espantosas. Há estatísticas, cifras, episódios que não deveriam deixar dormir” (A. Pronzato, Ma io vi dico, p. 143).

 

Voluntários da pobreza

Essas palavras devemos recebê-las como dirigidas a nós que, diante da Igreja e da sociedade, somos os “voluntários da pobreza”, e, como tais, os mais qualificados “a não dormir”, não vendar-nos os olhos e não betumar os ouvidos diante de milhares, centenas de milhares, milhões de irmãos que não somente nos “slums” de Calcutá, nas “favelas” do Rio de Janeiro, nas “barriadas” de Bogotá, etc., mas nas mesmas cidades onde habitualmente trabalhamos, talvez na viela ao lado de nossa casa, nos fazem ouvir a palavra angustiante: tenho fome!

Essa palavra um dia a ouviremos novamente proferida por aquele que se oculta no pobre, em cada pobre: “Tive fome!”.

Não se trata, irmãos queridos, de demagógico ou romântico classismo; não, trata- se, ao invés, de colocar-nos, de fato, no lugar que nos compete. S. Basílio, em uma de suas homilias, dirigindo-se ao rico insensato, profere estas insistentes e severas acusa- ções: “Se alguém arranca a roupa de quem está vestido, chama-se ladrão. E quem não veste ao nu, quando pode fazê-lo, merece talvez outro nome? O pão que guardas para ti, é de quem tem fome; o manto que conservas no guarda-roupa é do nu; os calçados que apodrecem na tua casa são do descalço; a prata que conservas enterrada é do necessitado”.

O Abbé Pierre, que conhece muito bem e vive como verdadeiro cristão e sacerdote a tragédia da miséria no mundo, diz palavras que se podem referir a cada um de nós: “Diante de todo sofrimento humano, de acordo com as tuas possibilidades, esforça-te não somente para aliviá-lo sem demora, mas igualmente para destruir as suas causas”.

Então, se é verdade que “ninguém tem direito de ser feliz sozinho” (Raoul Follerre- au), se é verdade que a nossa pobreza é imitação do Cristo, ela deve conduzir-nos a uma vida concretamente empenhada nos confrontos dos pobres.

 

Confronto leal

O primeiro empenho me parece deva ser este: colocar-nos corajosamente em con- fronto com essa turba de irmãos pobres, e não digo somente de subalimentados, de miseráveis, mas de pobres, de operários, de trabalhadores.

Seria interessante, por exemplo, encontra-nos às cinco da manhã em tantos trens de operários que, em todas as partes do mundo, transportam centenas de milhares de trabalhadores, empregados, professores, etc., para subúrbios ou cidades distantes 50, 60, 70 Km. E depois, à tarde, em viagem de volta, ainda juntos, após um dia de traba- lho, muitas vezes com a mente o coração voltados para os filhos, a esposa doentes...

Seria muito útil tocar com as mãos esses dramas, certas situações, certas realidades dolorosíssimas de cuja existência nem imaginamos sequer.

Também tantos parentes nossos, muitas vezes os mesmos pais de nossos alunos, a que vida de sacrifício e de trabalho não se sujeitam pela família, pelos filhos, para vi- verem sem, contudo, julgarem-se heróis! É essa a vida de milhões de homens e mulhe- res, que não fizeram voto de pobreza, de renúncia... Trata-se de todos os pobres, não somente daqueles que estão desprovidos de bens de fortuna ou de garantias do seu futuro, mas também de todos os que não têm os bens essenciais à vida humana e so- brenatural e que nós possuímos.

“Pobres são aqueles que não têm o apoio da estima dos demais. Pobres são, final- mente, aqueles que não possuem a luz da vida divina e não sabem que o Cristo vem sobretudo para eles e que Ele bate à porta de sua vida...” (G. Huyghe, I Religiosi, oggi e domani, pág. 225 s.).

Ora nós por demais falamos “da nossa pobreza”, “da nossa renúncia”, “da nossa vi- da de sacrifícios...”. Essas palavras, a força de as repetirmos, podem tornar-se a cober- tura de uma mentalidade e atitudes de pequenos burgueses.

 

Motivos de confusão

Reconheçamos honestamente, diante de um número tão grande de homens que realmente levam uma vida dura, que a nós normalmente não falta nada. Nenhuma preocupação, antes, um certo “conforto”.

Até que ponto podemos então considerar-nos pobres, especialmente quando o te- or, o estilo da nossa vida não é um “sinal” claro da nossa pobreza?

Também por uma questão de respeito para com tantos e tantos irmãos que levam uma vida de trabalho e de sacrifício, também por um senso de respeito para com a Divina Providência que, afinal de contas, nos permite uma posição que não conhece a insegurança e as preocupações que atormentam milhões de pessoas, devemos sentir o empenho de uma vida marcada pela austeridade.

Não gostaria de ser mal-entendido. Sei que muitas de nossas comunidades não so- mente são exemplares neste setor, mas muitas vezes se satisfazem com uma alimen- tação que, tanto na quantidade como na preparação, em nada se diferencia da comida de tanta gente pobre. É com alegria que daqui presto minha homenagem a esses ir- mãos que com simplicidade salesiana vivem uma vida autenticamente sacrificada.

Mas justamente também em vista desses irmãos nossos, filhos da mesma Mãe co- mum a Congregação (mas não somente por isso) devemos examinar bem o nível e o teor da mesa em cada uma de nossas comunidades.

Não se afirma, em absoluto, que devamos nos subalimentar em homenagem a tais situações e pelo fato de que milhões de homens morrem de fome. Trabalha-se e é ne- cessário alimentar-nos e sustentar-nos de modo adequado. Mas me parece que de maneira nenhuma se podem coadunar com a nossa pobreza certos serviços de mesa mais do que superabundantes, como também as exceções fáceis na comida por moti- vos nem sempre convincentes. Não podemos aceitar que a nossa mesa esteja habitu- almente provida em quantidade e qualidade, muito mais abundantemente do que a de tantos nossos benfeitores aos quais pedimos auxílios, ou de eventuais hóspedes e amigos; isso, sem dúvida, provoca neles impressões certamente não edificantes.

Isso, repito, não tem nada que ver com a alimentação sadia e adequada às necessi- dades do nosso trabalho, a qual deve ser preparada com todo cuidado e muita com- preensão por quem é encarregado; mas os exageros, não; devemos evitá-los, como também me parece seja conveniente evitar certas fotografias — publicadas não raro também em revistas — que reproduzem salesianos assentados a mesas lautamente preparadas.

Fiquei felizmente admirado lendo que há famílias católicas que uma vez por semana se deitam sem jantar, para que todos os membros, especialmente os jovens, saibam o que são os estímulos da fome e compreendam o que quer dizer “ter fome”. A poupan- ça desse jantar destina-se integralmente aos pobres. Trata-se de pessoas que não fize- ram, como nós, profissão de pobreza: justamente por esse motivo o seu exemplo me parece uma advertência mais forte para nós.

 

O vírus do bem-estar

Depois de ter aludido ao serviço de mesa, podemos acrescentar outra observação: certas longas, comodíssimas e inativas férias, que nem sequer pessoas abastadas se permitem, certas viagens de exclusivo turismo ou de qualquer maneira dispendiosas sem uma razão proporcionada, o cuidado de procurar para uso pessoal e satisfação própria carros e instrumentos não só custosos, mas que exigem sempre novas despe- sas pelo seu uso; correr, numa palavra, angustiosamente em busca da posse de tantas e tantas coisas, tudo isso pode chamar-se pobreza religiosa e conciliar?

E que dizer de certos ambientes que invés de oferecerem uma digna propriedade e simplicidade, ostentam nos móveis e no equipamento um luxo que, especialmente hoje, provoca reações e comentários em nada favoráveis?

Digamo-lo com fraterna sinceridade: hoje o vírus do bem-estar entra por muitos caminhos nas nossas comunidades, a vida se torna burguesa e se procuram justificati- vas que no final não convencem: e isso também da parte de quem deveria vigiar, in- tervir e tomar providências.

Colocamo-nos num plano perigosamente inclinado de modo que, sensim sine sensu, um desmoronamento prepara e encoraja novos desmoronamentos; a consciência, pa- ra abafar dúvidas e remorsos, se acomoda e encontra, para os abusos e as traições, motivações sutis, mesmo que não sejam decididamente convenientes, no exemplo deste ou daquele irmão, no silêncio (talvez demasiado prudente) de quem deveria chamar a atenção, etc. Entretanto o mal se espalha como mancha de óleo, o nível reli- gioso desce, a sensibilidade espiritual e apostólica tornam-se esclerosadas, abrem sempre mais caminho certo aburguesamento, certo comodismo que fatalmente de- sembocam num laicismo prático.

 

Ruína da vida religiosa

Sei que nem sempre toda a realidade corresponde exatamente ao quadro que aca- bo de esboçar. Mas isso não elimina a substância da situação. Em todo caso é absolu- tamente verdadeiro e historicamente documentado que Comunidades e Institutos Religiosos se tornaram anêmicos e foram desaparecendo, embora lentamente, pas- sando precisamente através do abandono progressivo da pobreza de indivíduos e Co- munidades.

Aliás, mesmo nos dias que correm, os leigos no-lo repetem, e mais ainda os jovens, os quais condicionam sua confiança à nossa coerência exatamente no tema da pobre- za. Eles nos dizem: “Como podemos crer em vós, homens consagrados a Deus na po- breza, que dizeis terdes renunciado a tudo por Cristo, se não viveis esses valores evan- gélicos de modo que possais ser compreendidos pelos homens numa época em que mais do que nunca o sinal externo tem mais valor?”

O Padre Häring, examinando numa conferência sobre a pobreza o valor do serviço e do testemunho pelo Evangelho que os bens materiais devem ter para nós, faz estas acertadas observações quanto ao seu reto uso: “Um Mercedes é mais útil do que um pequeno Fiat, tem maior segurança na estrada, e nos leva ao término da viagem mais rapidamente, mas não presta um maior serviço ao Evangelho. O pequeno Fiat é menos cómodo, mas presta um serviço mais alto como testemunho. O Bispo de Ringsburg, muito douto, havia recebido de presente um Mercedes no tempo do ressurgimento econômico da Alemanha; pareceu-lhe uma coisa boa porque era útil e também porque era um presente. Porém, quando foi feita uma pesquisa entre todos os estudantes se- cundaristas da cidade, “de que gostas na Igreja e de que não gostas”, o ponto número um da escala dos escândalos resultou o Mercedes do Arcebispo. Entretanto era um presente, era útil, prestava excelente serviço..., mas na escala dos escândalos ocupava o primeiro lugar. Quando o bispo soube, imediatamente vendeu o Mercedes e com- prou um Volkswagen, que também os operários já possuíam.

Depende da situação: na América são menos sensíveis, mas assim mesmo muitas vezes ouvi palavras de crítica a um Bispo que possuía dois Cadillac. Ouviu-se também criticar certo religioso que fez carreira eclesiástica e viaja de Cadillac; não presta o ser- viço de testemunho, de serviço típico, característico, que nós queremos prestar ao povo. E isso, como afirma o Decreto Perfectae Caritais depende também das circuns- tâncias”.

Os exemplos trazidos acima servem muito bem para dar critérios sobre o o uso de tantos bens e meios, do carro ao gravador, à discoteca, à máquina fotográfica, à má- quina de filmar, à coleção de selos, etc.

Mais de uma vez ouvimos, nesses últimos tempos, de jovens que recusaram fazer parte de uma Congregação na qual os membros levam uma vida cômoda, com confor- tos burgueses, onde o jovem moderno, que ama empenhar-se sem acomodações e transações, encontra, ao contrário, um abandono prático do ideal professado.

Todos vós, irmãos caríssimos, compreendeis os muitos porquês destas minhas ob- servações e acolhendo-as lhes dareis o devido valor.

 

Salesianos pobres para a juventude pobre

A nossa “sequela Christi pauperis”, a palavra de Cristo “a mim o fizestes”, nos levam a uma consideração toda salesiana, a um apelo preciso, a um empenho recebido por herança do nosso Pai, empenho reconhecido e a nós renovado ainda hoje pela Igreja, pelo Vigário de Cristo.

Dom Bosco, filho de Margarida, mestra magnífica de pobreza, e discípulo de Cafas- so, também ele mestre exemplar de pobreza, foi pobre, poderíamos dizer, por voca- ção, mas igualmente pela convicção resultante de uma longa e profunda experiência da história da Igreja antiga e moderna, e antes ainda, por uma aguçada sensibilidade evangélica e sobrenatural.

Pois bem, Dom Bosco, tão pobre, quis que a sua Congregação fosse pobre e se ori- entasse para a juventude pobre.

Essa vontade explícita, decidida, absoluta, o acompanha sem nenhuma incerteza, nenhuma concessão, durante a vida.

Podemos dizer que as afirmações a esse respeito estão documentadas em todas as páginas das Memórias, as encontramos em centenas e centenas de conferências, boas- noites, pregações, colóquios.

Pena que no tempo de nosso Pai não houvesse meios técnicos de reprodução sono- ra. Poderíamos, nós também, ouvir aquelas palavras e mais ainda sentir a ansiedade angustiante do Pai no simples temor de que a sua criatura, a Congregação, pudesse através do tempo arruinar a herança paterna.

 

Fala Dom Bosco

Leiamos novamente ao menos algumas graves e sentidas palavras de Dom Bosco, e imaginemo-las dirigidas a nós pessoalmente: “Amai a pobreza — escreveu na carta- testamento — ... Infelizes de nós se aqueles de quem esperamos a caridade puderem dizer que nossa vida é mais cômoda do que a deles” (MB XVII, p. 271).

“A nossa Congregação tem diante de si um porvir promissor preparado pela Divina Providência e sua glória será duradoura até o dia em que nossas regras forem obser- vadas. Quando entre nós começarem as comodidades e o bem-estar, nossa Sociedade já terminou o seu curso”, (ib. p. 272).

A propósito dos jovens, sempre na carta-testamento deixou escrito: “O mundo nos receberá sempre com prazer até que nossas solicitudes forem dirigidas... aos meninos mais pobres, mais em perigo na sociedade. Esta será para nós a verdadeira riqueza que ninguém nos roubará” (ib. p. 272).

Em 1874 conversando familiarmente com seus auxiliares no Oratório, alguém avan- çou a ideia dizendo que no futuro os salesianos poderiam ter colégios para os nobres: “Isso nunca!” — disse Dom Bosco de imediato — Isso não acontecerá enquanto eu estiver vivo! Dependendo de mim, isso não acontecerá nunca!... Seria a nossa ruína, como foi a ruína de outras beneméritas Ordens Religiosas... Riquezas e entradas nas casas de ricos apetecem a todos; se nós estivermos sempre apegados aos meninos pobres, estaremos tranquilos; pelo menos porque parte do mundo terá compaixão de nós, nos tolerará, e parte nos louvará. Ninguém terá inveja de nós...” (ib. p. 647).

É indiscutível, pois, que a pobreza da Congregação e a sua vocação para os jovens pobres formam a vontade de Dom Bosco, que se preocupa toda vez que ele pensa no futuro da Congregação.

Ora, nós temos nas mãos essa herança: todos, de acordo com o lugar que a Divina Providência nos confiou na nossa Família, temos a responsabilidade de não trair a von- tade paterna, especialmente num momento histórico em que a Igreja toda quer liber- tar-se de toda escória de poderio e de riqueza, e se dirige aos pobres e aos humildes, nos quais vê e reencontra — como seu Divino Fundador — a porção eleita de sua he- rança.

 

O apelo da Congregação

Os recentes Encontros Continentais sublinharam com palavras até fortes a atualida- de e urgência desse empenho.

Entre as Conclusões aprovadas na reunião dos Inspetores Salesianos da Ásia em Bangalore (20-26 de fevereiro de 1968) lemos:

“Nosso testemunho coletivo de pobreza encontra finalmente sua expressão mais salesiana na nossa preferência, de fato, pela juventude pobre. Certamente a missão Salesiana é vasta, complexa e variada, mas há um movimento de fundo e ela inspira- ção carismaticamente em Dom Bosco: uma posição de privilégio para a juventude po- bre.

A nossa fidelidade a este carisma do fundador depende do sentido que damos à pobreza (ACG XIX, p. 96). Certamente viveremos mais como pobres e seremos sinal mais patente de Cristo pobre se nos diversos países em que trabalhamos todos pude- rem verificar que o primeiro lugar das nossas obras é destinado à juventude que na- queles países é considerada pobre e abandonada.

A revisão das obras tenha presente este testemunho vital de fidelidade a Dom Bos- co. (ACS 252, p. 35).

E nas conclusões do Encontro de Caracas lemos:

“... é necessário não só que com uma informação adequada tornemos conhecido o nosso trabalho em favor dos pobres; mas também é preciso que voltemos corajosa- mente ao trabalho entre a juventude pobre e abandonada, nos lugares em que esse testemunho se tenha obscurecido e a imagem da Congregação se tenha deformado. Em nosso mundo subdesenvolvido, esse testemunho é urgente e nos obriga a uma esmerada e contínua revisão de nossos passos” (ACS 252, p. 68).

Mas já o XIX Capítulo Geral advertia: “... hoje mais do que nunca, Dom Bosco e a Igreja nos enviam a trabalhar entre os pobres, entre os menos favorecidos, entre o povo. A nossa fidelidade a este aspecto privilegiado da nossa vocação depende, em parte, do nosso sentido da pobreza; ela de fato, levar-nos-á a preferir as obras difíceis a favor dos pobres, às obras mais cômodas a favor das classes ricas” (ACG XIX, p. 82).

Convido os Inspetores e os Conselhos Inspetoriais, Diretores e Conselhos locais e a todos os irmãos a refletirem bem sobre as palavras citadas.

Nesses anos, mais de uma vez se fizeram apelos e convites nesse sentido. Sei que eles foram acolhidos por muitos.

Em diversas Inspetorias, de fato, se nota uma consoladora fermentação para tornar operantes esses apelos. Centros juvenis surgem aqui e ali: em muitas metrópoles há corajosas iniciativas de atividades sociais, de catequese em zonas extremamente po- bres e abandonadas, com a colaboração de leigos.

Mas penso que reforçar os oratórios, os pensionatos, os clubes já existentes sem regatear pessoal e meios, de modo que tenham vida eficiente, antes exuberante, ocu- par-se de jovens aprendizes e operários, e tantas outras iniciativas em prol da juventu- de pobre e necessitada, sejam coisas possíveis também nessas obras que não se po- dem ocupar exclusivamente de pobres; antes, é um modo de dar a essas obras uma

dimensão acentuadamente popular e, portanto, excelentemente salesiana. Estaremos assim certos que escolhemos bem.

Essa realidade foi fixada por De Lubac com estas claras afirmações: “Quando al- guém escolheu uma ideologia, não está nunca certo de não ter errado, ao menos em parte. Quando alguém se sujeita a uma ideologia, nunca está certo de ter adotado um bom partido. Mas quando alguém escolhe os pobres, sempre está certo, duplamente certo, de ter feito uma boa escolha. Escolheu como Jesus e escolheu a Jesus” (H. de Lubac, Nuovi Paradossi).

Compreendo as dificuldades de variada índole, a do pessoal e a econômica. Mas é mesmo o dever de enfrentá-las e superá-las, o dever de fazer sacrifícios, realizar ativi- dades e obras que não têm a garantia de uma vida que se desenvolve sobre trilhos bem determinados, sob tantos aspectos fáceis e cômodos, é tudo isso, que dá à nossa missão um renovado e atual sentido conciliar, eclesial e vivamente salesiano e aos ir- mãos, especialmente jovens, a confiança e o entusiasmo de doar-se; esse doar-se que é o aspecto mais completo de nossa pobreza que não deixa de dar a Cristo no jovem, no pobre, algo de si, mas se entrega a si mesmo por inteiro.

 

As Nossas obras no espelho da pobreza

Passando em revista nossas obras no mundo constata-se que muitas surgem e atu- am em zonas muitas vezes assaz pobres, e se ocupam de meninos e jovens pobres e necessitados. Os irmãos que lá trabalham são admiráveis pelo espírito de sacrifício com que se dedicam a esse apostolado. Em muitos países somos conhecidos como religiosos que se dedicam a obras sociais em bairros renomados pela sua triste pobre- za.

Mas também é verdade que temos muitas obras que se dedicam a outras classes. Como agir? Naturalmente ninguém pode pensar, por tantos motivos óbvios, destruir sem mais essas obras, nem poderá alguém dizer que os salesianos que nelas trabalham são... menos salesianos do que os outros. Estão cumprindo a obediência e por outro lado procuram ser Sacerdotes, Catequistas, Apóstolos no meio desses jovens que mui- tas vezes sofrem de uma pobreza espiritual e moral que tanto necessita de ajuda (e que ajuda!) da educação cristã e salesiana. Pobres, de fato, não são somente os des- providos de bens de fortuna, ou de garantias de trabalho, mas também todos aqueles que sofrem a privação de bens essenciais à vida humana e sobrenatural.

Mas o perigo é outro: o perigo é que essas obras, no fundo mais cómodas sob di- versos aspectos, e mais fáceis, tenham como que um tratamento preferencial se de- senvolvendo excessivamente, e, como consequência, restringindo o nosso apostolado de caráter destacadamente popular. Devemos, pois, perguntar-nos com serenidade:  na Inspetoria, qual é a proporção entre as obras destinadas à juventude pobre e as outras? Junto destas últimas, que atividades se desenvolvem em benefício da juventu- de pobre? Quantos irmãos dessas casas se prestam para trabalhar no meio dos po- bres? E as obras destinadas à classe popular, como se sustentam? O Oratório ou as obras semelhantes e as obras sociais, que tratamento merecem seja quanto ao pesso- al, seja quanto ao local, aos auxílios econômicos, etc.?

As respostas a essas perguntas podem ter caráter de um teste para determinar a posição que ocupam os pobres como centro de interesse da Inspetoria, nas diversas casas.

Esse exame deve ser feito, porque o perigo de uma certa corrida para obras “cômo- das”, de bem-estar, não é imaginária.

Talvez em certas partes do mundo, devido a determinadas circunstâncias, tiveram desenvolvimento hipertrófico obras para jovens de um nível social de determinado tipo com prejuízo para obras populares que devem caracterizar-nos como Salesianos.

É necessário estudar bem essas situações nestes momentos em que também aten- dendo à decisão do XIX Capítulo Geral se estão revendo as obras da Congregação. Co- mo quer que seja, devemos defender-nos contra a tendência, que diria natural, de conduzir-nos, em nossa ação apostólica, num plano superior àquele que nos foi pe- remptoriamente confiado por Dom Bosco.

E isso, com sensibilidade pelos sinais dos tempos, para as adaptações necessárias, e para agir com absoluta fidelidade à ideia substancial de Dom Bosco, mas sem medo de aceitar ou buscar novos contatos que sirvam eficazmente à ideia de sempre.

Não me parece fora de lugar aludir aqui a uma atividade da Congregação que, en- quanto atende aos fins constitucionais da Congregação, recebe o reiterado apelo da Igreja e serve magnificamente para alimentar nas nossas inspetorias e comunidades um espírito de generosidade, de disponibilidade, de renúncia estreitamente ligados ao espírito de pobreza.

Falo do apostolado missionário. Essa atividade não se restringe só aos irmãos, que deixam a própria Inspetoria para dedicar-se completamente ao serviço das almas em terras de missão. Hoje, de modo especial, as comunidades devem transformar-se em ativas e dinâmicas retaguardas das Missões.

Aliás, foi este, entre os outros, o voto que me exprimiram os voluntários para a América Latina antes de partirem... Eles, como todos os outros missionários, devem sentir-se representantes da Inspetoria, da Comunidade, na missão que lhes foi confia- da.

E isso não tanto para receberem de algum modo ajudas quanto para que a Comuni- dade de origem, viva a sua divina aventura, se torne consciente e sinta as suas dificul- dades, os seus sacrifícios, as suas conquistas apostólicas.

Como é importante, pois, que, no espírito de Ad Gentes, seja reavivado nas nossas Inspetorias o espírito missionário entre os Irmãos, entre os jovens e isso não através  de uma literatura superficial e errônea com base em florestas e animais ferozes, mas dando uma informação séria, sistemática, estudando os graves e complexes problemas que os Missionários devem enfrentar, participando, como verdadeiros irmãos, de sua vida de extrema pobreza, de renúncias cotidianas, de pesadas fadigas.

Uma comunidade que vive tal clima missionário, sentirá a necessidade de estar efi- cazmente ao lado dos irmãos missionários, mas ao mesmo tempo sentirá o dever, an- tes, a alegria, das renúncias, das economias, do estilo de vida que não soe insulto à vida sacrificada dos irmãos missionários.

E desse ambiente de generosidade só podem desabrochar vocações especialmente missionárias, as quais, é bom recordar, não podem florescer num clima de medio- cridade e de comodismo.

 

Nossa resposta

Desenvolvida a primeira parte da nossa exposição, tratando do significado espiritual da pobreza e de sua incidência essencial na vida salesiana, é tempo de chegarmos a alguma aplicação mais prática.

Serve-nos de guia o mesmo Decreto Perfectae Caritatis, que, embora resumidamen- te, se refere a alguns pontos que são neste sentido de máxima importância. Convém, no entanto, fazer primeiro uma observação que nos fará compreender o verdadeiro espírito do documento conciliar.

É significativo que em todo o texto do Decreto conciliar não se faz referência a vo- tos, mas se fale sempre de conselhos evangélicos. Tudo isso não é casual.

O problema da vida religiosa radica-se fundamentalmente numa resposta nossa, habitual, e voluntária, por isso mesmo generosa e alegre, ao convite de Jesus: “Si vis”.

Ora, não se pode conceber uma atitude minimista — ou de algum modo legalista — por parte de pessoas consagradas no trato e no serviço do Senhor, em cujo seguimen- to se colocou com espírito de ilimitada doação, própria do voluntário.

Compreende-se, então, que não é questão de voto ou de virtude, não é questão de usar toda vez o conta-gotas quando se trata de dar a Jesus Cristo as provas do nosso seguimento por amor. Colocar-se nesse plano seria colocar-se numa posição de incoe- rente contradição.

O Perfectae Caritatis não se demora em fazer sutis e muitas vezes acrobáticas dis- tinções entre voto e virtude, mas fala dos Conselhos Evangélicos, porque tem consci- ência de estar falando a quem entendeu abraçar estes Conselhos por amor, e o amor não subtiliza para dar o menos possível ao Senhor: o amor é integral.

 

Pobreza externa e interna

Essa observação ilumina claramente as interessantes diretrizes práticas que encon- tramos em Perfectae Caritatis. Eis a primeira:

“Para a prática da pobreza religiosa não basta submeter-se no uso dos bens aos Su- periores, faz-se ainda mister que os membros pratiquem uma pobreza externa e inter- na, possuindo tesouros no céu” (PC 13).

Notemos logo as palavras: “pobreza externa e interna”.

Demasiadas vezes se comete o equívoco afirmando que basta ter uma alma de po- bre, o desapego, a pobreza interna; e depois podemos possuir tudo, podemos servir- nos de tudo, permitir-nos tudo.

Nada mais contrário ao significado e ao valor da autêntica pobreza religiosa.

“De fato, afirma Pronzato, não há nenhuma disposição espiritual que não se deva traduzir num comportamento efetivo, especialmente quando essa disposição se refere aos bens deste mundo. E isso depende exatamente da natureza “encarnada” e “social” (Op. cit, p. 137).

E mais sinteticamente diz Evely: “Não há nenhum estado de alma que possa existir sem traduzir-se no gesto de um corpo”.

Aliás, lembremos as palavras evangélicas: “Do fruto se conhece a árvore”.

Dom Bosco — com seu estilo simples, mas muito claro — repetia a seus filhos: “Não vos esqueçais que somos pobres, e esse espírito de pobreza o devemos ter não somen- te no coração e no desapego do mesmo das coisas materiais, mas demonstrá-lo tam- bém externamente diante do mundo”. (MB V., pág. 675). “A nossa pobreza deve ser de fato, não de nome” (ib. IX, p. 701).

O espírito de pobreza, a pobreza interna, portanto, é necessária, mas a sua presen- ça deve ser notada pela pobreza concreta, real, numa palavra, através dos fatos, como diz Dom Bosco, que tecem nossa vida cotidiana.

Nela o próximo, quer irmão, quer estranho, poderá ler sempre nosso testemunho amoroso a Cristo pobre.

  1. Huyghe, no volume citado, põe em evidência essa distinção entre a pobreza in- terna e a externa. Ele escreve: “A pobreza tem faces diversas, tantas quantas são os campos em que o coração ameaça apegar-se ao que não é Deus e onde o amor deve cumprir a sua obra de consumação. O terreno em que ela é exercida não é somente o dos bens materiais (pobreza de bens), mas também dos próprios sentimentos (pobreza espiritual). É muito importante não traduzir a pobreza em termos simplesmente mate- riais, senão se arrisca a reduzi-la a uma questão econômica e nada mais.

Igualmente não se trata de reduzi-la à sua expressão espiritual; senão se arriscaria a tornar-se uma pobreza intencional sem encarnar-se num desapego concreto. A pobre- za material não é senão o sinal de uma pobreza mais total, a pobreza espiritual; mas dela é sinal sensível e necessário. Por isso quem verdadeiramente é pobre pode dizer: não tenho nada e não estou apegado a nenhum bem deste mundo. Mas também deve poder dizer com toda a precisão: não sou nada. Não sou capaz de nada. Essas três afirmações são as formas complementares da pobreza espiritual” (Op. cit., p. 334).

 

Equívoco legalista

No texto de Perfectae Caritatis lemos ainda estas palavras: “Não basta estar sujeitos aos superiores no uso dos bens”. São Palavras que merecem comentadas.

As condições da vida moderna, as inúmeras possibilidades de confortos e de como- didades, os meios da técnica sempre mais à disposição, parentes e amigos prontos e dispostos a oferecer dinheiro ou objetos, podem facilmente instaurar uma mentalida- de destruidora de toda pobreza e do mesmo espírito das Bem-aventuranças.

Naturalmente, devemos saber distinguir aquilo que tem função de instrumento pa- ra a eficácia de nossas obras de apostolado, daquilo que não é nada disso. Mas o equí- voco e a ladeira são fáceis: o deslize para as comodidades, as concessões para um teor e um estilo de vida burguesa são perigos que não têm nada de irreal; talvez em certos lugares já estejam em ato e se procure justificá-los com argumentos que, se bem exa- minados, não valem.

É necessário vigiar, é necessário ter coragem também de intervir, e tempestivamen- te, mas é necessário também saber distinguir aquilo que realmente serve e deve servir para o nosso trabalho, daquilo que nada ou pouco tem que ver com o serviço, com o nosso trabalho; aquilo que verdadeiros motivos de estudo, saúde, ofício exigem, da- quilo que, ao invés, é somente mera e supérflua comodidade, um instrumento para uma vida...

Infelizmente há quem com mentalidade legalista busca justificar-se para conseguir coisas em nada necessárias ou convenientes para quem fez profissão de pobreza e recorre ao expediente da licença.

Disse “expediente”, porque em certos casos se trata somente de verdadeiro expe- diente.

Crê-se de fato alguém tranquilizar a consciência obtendo, e às vezes arrancando ou até extorquindo, dispensas e comodidades que não são totalmente necessárias, que o Superior em consciência não pode dar e criam na comunidade um “ambiente de mal- estar” ou de “imitação”.

A ladeira, dizíamos acima, é bastante escorregadia, as assim chamadas “necessida- des” e as “exigências” crescem sempre mais, as pressões sobre o Superior se intensifi- cam, ao mesmo tempo que se descarrega sobre ele toda a responsabilidade de julgar, colocando-o, assim, numa posição desagradável. Conceder tudo? Torna-se cúmplice da decadência. Recusar todas as vezes? O Superior que tem a consciência do perigo deve- ria constantemente frear ou proibir; mas sabemos também que negando muitas vezes, corre-se o risco de irritar os menos fervorosos, e empurrá-los para fora...

 

Maturidade e discrição

Qual o remédio nessa deplorável situação?

Fala-se tanto de maturidade, diz-se, e com razão, que o religioso deve ser uma pes- soa madura. A maturidade é obtida com a reforma do critério que corrija e elimine a mentalidade legalista que muitas vezes é também infantil, e é a negação da mentali- dade sinceramente religiosa.

É um trabalho não fácil que deve partir das casas de formação e deve continuar nos “rendicontos”, nas conferências, nos diálogos.

A maturidade leva a julgar antes de mais nada à luz do Espirito, se existem na reali- dade motivos suficientes para tal despesa, para tal exceção; se é, pois, conveniente pedir licença para aquela despesa, para o tal objeto, etc.

O Superior concederá com generosa compreensão, mas se deve sempre supor que os pedidos sejam discretos.

Para se ter o sentido exato dessa “discrição”, cito aqui a primeira redação do trecho de Perfectae Caritatis que nos interessa e que depois foi simplificado no texto atual: mas o espírito do texto ficou.

“Os religiosos — dizia o texto — afastando todo desejo de coisas temporais, peçam aos próprios Superiores somente aquelas coisas de que têm verdadeira necessidade para si mesmos ou para o seu apostolado. Portanto moderem as despesas e se abste- nham, quanto possível, de aparelhos não necessários, de comodidades, de coisas su- pérfluas” (Vatican II, Jeanne D'Arc, O. P., p. 419, nota).

De quanto até aqui dissemos, devemos deduzir que a pobreza que professamos não é e não pode ser, nem diante de Deus nem diante dos homens, uma questão mera- mente jurídico-legal, mas uma questão de coerência e sã consciência moral e ascética; melhor ainda, motivo inspirador de nossa pobreza, como de toda a nossa consagração, é o amor que nunca nenhum legalismo poderá substituir.

Não podemos reconhecer-nos pobres quando, como já dizia acima, no que se refere à comida, moradia, móveis, viagens, férias, tenhamos exigências que, não somente o pobre, mas tantos que não se julgam absolutamente pobres, nem sequer sonham. Então nossa pobreza, na expressão de Guardini, é somente um piedoso enfeite de uma vida rica e próspera”, porque se quer conciliar a profissão de pobre com uma vida de comodidade, uma vida à qual na prática não falte nada.

Semelhante maneira de vida não se coaduna com o espírito de pobreza que o Con- cílio exige dos religiosos da renovação, e não pode oferecer aos homens nenhuma prova válida e convincente para que eles creiam na nossa pobreza.

 

Incoerências

Falamos do espírito legalista com que nos iludimos poder apaziguar a consciência com o expediente da licença.

É mister aludamos a outra atitude ainda mais grave que aqui e acolá se pode notar: a atitude de quem, embora tenha contraído claras obrigações com o voto de pobreza e vivendo na comunidade religiosa da qual recebe todas as vantagens, exime-se depois arbitrariamente dessas obrigações: consegue dinheiro, e abundantemente, de várias maneiras, e dele dispõe a seu bel-prazer, não quer que lhe falte nada daquilo que tor- na a vida mais cômoda e confortável e recorre a todos os meios para consegui-lo.

Desse (hipotético?) religioso, cercado de conforto e de objetos os mais variados, e até caros, basta ver o conjunto de baús que o acompanham quando deve mudar de casa: numa palavra, olhando para o inteiro teor de vida dessa pessoa facilmente per- cebemos como interpreta, esse que se diz religioso, a pobreza à qual publicamente se consagrou.

Tal atitude, é doloroso afirmá-lo, denota uma consciência, diria eu, anestesiada, que perdeu toda a sensibilidade religiosa, que vive uma vida em crônico e evidente con- traste com a profissão que ele faz de religioso consagrado.

Uma vida assim incoerente e contraditória, mesmo humanamente falando, não é digna, é humilhante para um homem honrado. Seria preferível tirar lealmente as con- sequências de uma vida vivida assim: ela não se justifica absolutamente, e se trans- forma numa ofensa contínua aos irmãos, a toda a comunidade, que tem direito de exigir que todos os seus membros respeitem a razoável igualdade que está na base da vida religiosa e comunitária.

Não parecem demasiado severas essas palavras: sinto que correspondem ao senti- mento comum da quase totalidade dos Salesianos que querem viver — hoje ainda mais do que ontem — aquela pobreza que é fonte de alegria, de confiança, de vigor espiritual e apostólico, e de tanta caridade tranquilizadora.

Tudo isso, porém, ao mesmo tempo que lembra aos Superiores o dever que têm de impedir com coragem paterna que se formem e se perpetuem semelhantes situações, de outro lado lembra a todos que tantos abusos e desordens se poderão evitar se os Superiores responsáveis souberem prover às necessidades e às exigências dos irmãos com amável compreensão e com razoável largueza, mesmo tendo em vista a idade, a saúde, o ofício, o serviço a que estão destinados.

Disse: “Com razoável largueza”. As duas palavras se completam, e nunca devem es- tar separadas. É necessário que haja este sentido de largueza como nos ensinou o nos-

so Pai. Às vezes se notam reações fortes — e com razão — contra quem age com ta- manha avareza diante de verdadeiras necessidades dos irmãos, ao passo que se esban- jam somas ingentes em gastos até mesmo errados, arbitrários ou em nada necessários.

Devemos dizer que muitas vezes certas desordens resultam do fato que quem tem obrigação não providencie adequadamente, em tempo oportuno, e com a maneira e a delicadeza que torna menos pesado ao irmão ter que pedir, ter que depender dos ou- tros.

Mas é também verdade que a largueza deve ser razoável, isto é, de acordo com a nossa condição de religiosos e Salesianos. O problema, no fundo, é sempre um só: o senso da discrição e do equilíbrio do irmão e do Superior, com que conseguimos dar em todo momento e em toda conjuntura e em qualquer parte do mundo aquele tes- temunho de pobreza que faz parte essencial da nossa vocação e que é uma premissa insubstituível para o nosso apostolado.

Mas não seria completo se não acrescentasse, com justa sinceridade, que não basta absolutamente que o Superior vele, consinta ou chame a atenção de acordo com os casos. Papel primário e essencial do Superior é antes de mais nada dar testemunho de pobreza com a sua vida cotidiana, no exercício do seu ofício. Estaria paralisado, antes seria contraproducente o governo de um Superior que não fosse de exemplo à sua comunidade na prática da pobreza, dispondo do dinheiro como se fosse de sua propri- edade pessoal, fazendo despesas que todos criticam, construções e trabalhos sem es- tudos prévios por parte de técnicos ou sem licença, concedendo-se comodidades e confortos não de acordo com a nossa condição. Penso, ao contrário, na força do Supe- rior que diante da comunidade parece pobre entre irmãos pobres, administrador sábio e fiel. “Homens há, escreveu Bergson, que não precisam falar, basta existirem: sua presença já é um apelo”.

O Diretor que dispõe arbitrariamente dos bens da Casa, além de uma grave ofensa à pobreza, a sua ação acarreta outras graves consequências. Permitindo-se dispensas ou interpretações subjetivas indevidas da regra, gera aquele “subjetivismo” ou relativismo da norma jurídica, que certamente é um dos elementos, não último, nas crises da obe- diência e da vida religiosa. Já Santo Ambrósio afirmava: “O Chefe tenha bem presente que não está dispensado das leis. E saiba que quando as transgride autoriza a pensar que tenha dispensado a todos com a autoridade do seu exemplo”.

 

A saúde dos irmãos

Retomando o tema da discrição e do equilíbrio no uso dos bens temporais, desejo fazer outras aplicações a alguns casos inerentes à vida salesiana.

Entre os bens que pusemos a serviço da Igreja e da Congregação, um entre os mais preciosos é certamente o da nossa saúde.

Sem ela, de fato, grandíssima parte da missão à qual nos devotamos estaria bloque- ada. Não por nada se diz que, depois da graça de Deus, a saúde é o dom mais precioso. Por isso o nosso Pai, que pessoalmente era severo consigo mesmo, não buscava trégua no trabalho e na atividade, era cheio de delicadíssimas atenções pela saúde de seus filhos.

Neste instante o meu pensamento, reconhecido e admirado, se volta para tantos magníficos irmãos, que, nas pegadas do Pai, gastaram e vão gastando com serena generosidade a sua vida em atividades apostólicas, as mais variadas e não raro duras, humildes, mas preciosas.

A saúde, pois, deve merecer o nosso cuidado com um trabalho ordenado e sereno, com um regime salutar de vida que vai do justo descanso à alimentação sadia, numa palavra, com aquelas atenções que servem a tornar o nosso serviço eficiente e dura- douro ao máximo.

Ter cuidado com a própria saúde, porém, não quer dizer fazer dela uma espécie de obsessão, de ideal: o que pode tornar-se uma verdadeira doença.

Lembro as palavras de um professor de universidade a um estudante que se atrasa- va nos exames alegando algum incômodo de saúde. “Saiba, dizia o velho professor, que aqui todos temos alguns achaques, mas trabalhamos do mesmo modo e não pa- ramos: é necessário ir para a frente no trabalho, convivendo com os achaques”. Tam- bém nisso, como em tantas outras situações, é questão de justa medida e de discrição.

Os Superiores a esse respeito podem — e devem — fazer tanta coisa. Em certo sen- tido, a saúde dos irmãos está em suas mãos.

Saber adivinhar e prevenir, muitas vezes significa salvar a saúde, até a vida, de um irmão; providenciar, pois, com sentimento de afetuosa paternidade e compreensão, cercando o irmão enfermo daquelas atenções de que Dom Bosco nos deu admirável exemplo — evitando sempre as negligências e mesquinharias que, especialmente em certos casos, podem provocar até mesmo traumas — tudo isso deve fazer parte do exercício da autêntica paternidade salesiana que é a primeira, e eu diria, a mais eficaz cura para todos os males, para todos os sofrimentos dos nossos irmãos.

 

Os bens da Congregação

A nossa Congregação, para atender à sua missão na Igreja, possui também bens ma- teriais, móveis e imóveis, administra dinheiro.

É necessário dizer uma palavra, à luz de Perfectae Caritatis, também sobre isso. Uma afirmação preliminar, mas fundamental é esta: todos os bens materiais da

Congregação, como quer que se denominem, pela sua finalidade, podem ser chama-

dos e considerados, sagrados, e por isso não pertencem a ninguém em particular, mas à comunidade religiosa que deve prestar contas à Igreja através dos Superiores.

Esses bens, pois, estão a serviço — e só a serviço — direto ou indireto — da nossa Missão na Igreja. Devemos, de imediato, distinguir nesses bens aquilo que serve à nos- sa vida, por exemplo, a habitação e relativos móveis; e aquilo que serve às obras (esco- las, oratório, instituto, colégio).

É bom dizer, desde já, que, especialmente depois das diretrizes conciliares, as resi- dências em geral e os ambientes destinados aos Salesianos devem ser bem distintos do resto. São evidentes os motivos dessa distinção e separação. Em todo caso, aos ambi- entes destinados para nós, devemos dar aquele estilo de simplicidade e diria de auste- ridade não dissociada do decoro e funcionalidade, que não pode e não deve absoluta- mente dar a sensação de luxo, tendo bem presente que o Perfectae Caritatis quer que se evite não somente o luxo, mas a aparência de luxo (PC 13).

As nossas casas, especialmente na parte reservada aos salesianos, que dessem essa impressão, seriam contrassinais de pobreza com muitas consequências negativas.

Essa norma deve vigorar em toda a parte, nos países de bem-estar como nos países do terceiro mundo; naturalmente tendo também em vista a sensibilidade peculiar e a situação sociológica e econômica do ambiente em que se vive.

Certas construções grandiosas, diria majestosas, em lugares onde tudo fala de po- breza, onde as moradias não passam de choupanas...

E para as obras propriamente ditas? Naturalmente há exigências particulares, ine- rentes às mesmas obras, há disposições das autoridades as quais devem ser respeita- das: tais obras devem estar de acordo com a sua função, antes devem sobressair pela sua boa apresentação, pela ordem, limpeza, manutenção, funcionalidade, etc.

Direi ainda que certamente não são dignas de louvor obras mesmo grandiosas, que demonstram descuido e desleixo.

Mas tudo isso não comporta necessariamente a indiscriminada grandiosidade, o su- pérfluo e, pior ainda, o luxo.

E isso se deve absolutamente evitar. As mesmas autoridades apreciam a disposição que dá aos alunos, aos internos, tudo quanto é necessário a uma educação e instrução modernas sem exceder em despesas que sabem a supérfluo e fazem pensar em uma disponibilidade de meios financeiros que dão impressão que somos ricos e fáceis em esbanjar dinheiro.

É oportuno, para corroborar essas minhas palavras, o pensamento do Prefeito da Sagrada Congregação dos Religiosos, o Cardeal Antoniutti: “Evite-se tudo o que suscita no público um juízo falso sobre as riquezas da Igreja e se mantenham as obras na sim- plicidade de estilo, na sobriedade de linhas e austeridade de abastecimentos que con- dizem com pessoas que fizeram voto de pobreza. Alguns membros de uma comunida- de religiosa me exprimiram, há pouco tempo, a tristeza que experimentaram ao ver certos ambientes de sua sede geral guarnecidos de tapetes, de móveis finos e quadros artísticos, igual a uma luxuosa residência burguesa...” (I. Antoniutti, La vita religiosa nel Concilio, pág. 40).

Desejo dizer ainda uma palavra com relação às igrejas e sua decoração. Sabe-se que muitas vezes, aqui e acolá, se constroem junto de certos ambientes muito pobres, igre- jas grandiosas, gastando nelas somas enormes em mármores, mosaicos, estátuas pre- ciosas, órgãos complicados. Sem dúvida é uma bênção para a população circunstante que se levante uma igreja bonita, funcional, devota.

Mas aqui o problema é outro. Construir, por exemplo, uma igreja imensa para uma população que não existirá nunca, certamente não é esse o modo de aplicar bem o fru- to da caridade do povo. Gastar milhões em obras de embelezamento, num lugar de extrema pobreza, quando poderiam ser utilmente empregados, por exemplo, na cons- trução de um oratório masculino e feminino, ao lado, e uma obra social para os pobres que vivem ao redor da igreja, certamente não é do espírito autenticamente conciliar e, em última análise, não é um modo inteligente de procurar com a glória de Deus o bem das almas. Tantos erros, graves até, se podem evitar com o bom senso e a humildade de aconselhar-se, de estudar antes de tomar certas iniciativas.

 

A lei comum do trabalho

Mas passemos a outro ponto que nos fala muito de perto.

No breve texto conciliar sobre a pobreza, lemos estas palavras: “Na função que exerce sinta-se cada qual sujeito à lei comum do trabalho, e... assim se adquirem as coisas necessárias à subsistência e às obras” (PC 13).

Não é preciso muito esforço para encontrar nessa advertência um tema particular- mente caro a Dom Bosco, e tão perto do nosso espírito.

O Concílio, pois, quer que nós religiosos, como verdadeiros pobres, obedeçamos à lei do trabalho: “Comerás o pão com o suor de tua fronte” (Gn 3,19), para que vivam a comunidade e as próprias obras. Precisamos dar esse testemunho ao mundo de hoje, tão sensível a esse valor.

Esta afirmação conciliar implica enfoques fundamentais de toda a nossa vida religi- osa, enfoques que são mais claramente explicitados no texto através de várias clari- ficações.

O trabalho, pois, manual ou intelectual, testemunha a nossa pobreza. O Mundo e a Igreja nos reconhecem pobres, verdadeiros pobres, porque nos vêm trabalhando. No século XVIII, o mais esplêndido testemunho de pobreza era a mendicância. No século XX não se compreende mais o valor espiritual de quem se sujeita a viver de esmolas.

O testemunho aceito é o do trabalho sério e tecnicamente válido, quer seja traba- lho manual, quer intelectual.

De fato, é o rico que vive de rendas ou do trabalho alheio; é rico aquele que não precisa empenhar-se pessoalmente no trabalho para viver, antes, aquele que, com os meios de que dispõe, tem sempre uma margem de garantia que lhe permite uma vida confortável e sem preocupações.

Pobre, entretanto, não é aquele que se cobre de farrapos ou come a sua sopa numa tigela de madeira, à soleira de uma casa que não é a sua: pobre é aquele que deve ga- nhar o seu pão de cada dia com o suor de sua fronte.

 

O trabalho, gloriosa divisa do Salesiano

Tudo isso para nós salesianos é motivo de conforto e satisfação.

O trabalho, de fato, é uma grande, inconfundível herança de nosso Pai. Ele, aliás, deu-nos disso o exemplo durante toda a sua vida,

Lembremos as palavras de Pio XI, que constituem uma síntese desse aspecto da fi- gura de Dom Bosco: “Dom Bosco, admirável trabalhador, maravilhoso organizador e educador para o trabalho”; “uma vida, a de Dom Bosco, que foi um autêntico e grande martírio; uma vida de trabalho colossal que dava a impressão de opressão...” (MB, XX, p 250); “vida tão operosa, tão recolhida, tão operante e orante que realizava o grande princípio da vida cristã: qui laborat, orat(MB, XX, p. 83).

E os ensinamentos do Pai apareciam como corolários do seu exemplo admirável. Nunca se cansou de recomendar a seus filhos o trabalho como divisa e distintivo da Família Salesiana. Também nos sonhos de nosso Pai quantas vezes ocorre nas formas as mais variadas este leit motif: “trabalhai, trabalhai... o ócio é um dos perigos da Con- gregação; o trabalho e a temperança a farão sempre florescer”.

E ainda no leito de morte a Dom Cagliero: “Recomendo que diga a todos os Salesia- nos que trabalhem com zelo e ardor: trabalho, trabalho!” (MB XVIII, p. 477).

A palavra conciliar, pois, vem trazer renovado valor à linha deixada pelo nosso Pai.

Trabalhemos, pois, seriamente, com generosidade, mas sempre na obediência e em fraterna solidariedade.

Às vezes, porém, devemos dizê-lo, ao lado de quem se entrega sem limites, pode-se encontrar quem reduz a muito pouca coisa o seu trabalho, embora objetivamente te- nha as possibilidades.

Tal procedimento não é certamente de pessoa pobre que deve ganhar o necessário para viver com o seu trabalho cotidiano, não é o procedimento de um irmão que se sente na obrigação de dar a sua contribuição de trabalho ao trabalho comum dos ir- mãos. Esses casos fazem lembrar as palavras de Pio XI, citando Dom Bosco: “Quem não sabe trabalhar não é salesiano” (MB XIX, 157).

Outras vezes, porém, há quem trabalhe muito, mas em atividades procuradas por própria conta, talvez contra a vontade dos Superiores e as necessidades da comunida- de e do apostolado de que ela é responsável.

Não é esse o trabalho que a cada um de nós pedem o Concílio e Dom Bosco. O nos- so trabalho, para que seja realmente fecundo para nós e para as almas, seja inserido através da obediência no trabalho da comunidade, seja uma constante e viva expres- são do nosso serviço à Congregação e do nosso amor aos irmãos; por isso, seja qual for o trabalho que nos ocupa, tenha sempre a chancela da obediência.

 

Valorizar os talentos

Devemos, porém, dizer que a lei do trabalho, de que devemos viver, importa tam- bém uma melhor utilização dos talentos que Deus nos deu e a mesma utilização do tempo: talentos e tempo, de fato, devem estar para nós em função da missão à qual nos consagramos.

Usá-los menos bem, desperdiçá-los, subtrair, por exemplo, o tempo ao estudo ou ao trabalho, ou mesmo ao necessário descanso para entregá-lo a futilidades ou — pior ainda — a coisas do mundo, passar horas diante do “vídeo”, pior se para programas nada úteis ou convenientes, é defraudar as almas, a comunidade.

E precisamente porque os talentos estão a serviço de nosso apostolado, é por de- mais necessário que sejam bem utilizados pelos Superiores responsáveis, quer no pe- ríodo de preparação e formação, quer no de seu uso.

De fato, muitas vezes acontece que depois de longos anos de estudo, depois de tan- tos gastos e sacrifícios para se chegar a uma especialização, ou a uma preparação es- pecífica, o irmão seja destinado a atividades que não exigem absolutamente aquela trabalhosa e custosa preparação.

Mas ainda com relação ao emprego do tempo, talvez seja necessário dirigir a aten- ção para várias coisas a respeito da atividade dos dias festivos, ou como quer que seja dos períodos de férias escolares.

O fato de que haja férias escolares, isso não pode levar sem mais os Salesianos a tomarem para si aquilo que a nossa condição de religiosos não nos pode consentir. Os dias festivos e de férias não bem aproveitados, a quantos perigos não expõem especi- almente as vocações jovens! E vice-versa, que belíssimas iniciativas de apostolado se podem realizar exatamente pela possibilidade que as férias oferecem!

 

Pobreza coletiva.

Há alguma coisa ainda de substancial na observação conciliar sobre a lei do traba- lho, que nos toca de perto.

O trabalho, diz o Perfectae Caritatis, deve servir para sustentar, por quanto possível, a comunidade e as suas obras. Digamos, de antemão, que isso não quer dizer que cada irmão ganhe diretamente o seu sustento (seria a negação da vida comum) ou que to- dos se dediquem necessariamente a um trabalho remunerativo ou financeiramente rendoso. Quem exerce determinados ministérios ou determinados ofícios, ou quem se encontra em determinadas condições por motivos de estudos, de saúde, de idade,  etc., certamente não pode realizar um trabalho economicamente rendoso. Mas nin- guém nunca pensará que isso não seja um trabalho que renda, e tenha valor — e mui- tas vezes grande valor — para a comunidade religiosa e para a missão apostólica e es- piritual.

A comunidade não é uma oficina, uma administração comercial, e a sua atividade não pode e não deve ser avaliada por critérios puramente econômicos.

Todavia, isso posto, devemos também acrescentar que, exatamente de acordo com a lei do trabalho-testemunho de pobreza, o Concílio não nos recomenda, mas quer e exige que os religiosos evitem “toda manifestação de luxo, de lucro imoderado e de acúmulo de bens” (PC 13).

Como se vê, da pobreza individual se passa à pobreza coletiva que não é menos im- portante do que a primeira.

Precedentemente, no Perfectae Caritatis se lê: “...os religiosos afastem toda preo- cupação indevida e confiem na Providência do Pai Celeste” (ib.).

E ainda mais claramente: “Os próprios Institutos façam o possível, segundo as con- dições de cada lugar, por darem um testemunho como que coletivo de pobreza...” (ib.).

O Concílio, com estas normas, nos coloca diante de perspectivas novas.

No passado, e a história no-lo diz, as abadias e as ordens religiosas foram grandes possuidoras. Embora reconheçamos as situações sociais em que essas coisas acontece- ram, devemos também reconhecer que nem sempre isso foi um bem para a fé e o pro- veito das almas.

Agora o Concílio, embora não tenha retirado dos Institutos o direito de adquirir e possuir, enquadra esse direito dentro de um espírito evangélico e tende a salvá-los do enriquecimento coletivo, com todos os perigos derivantes.

A Igreja, baseando-se numa longa e triste experiência, prescreve aos Institutos Reli- giosos que não deixem avolumar a riqueza que para eles se torna sempre um peso mortal: e a tentação é forte e subtil.

Também nesse ponto devemos agradecer vivamente a Dom Bosco que com reco- nhecida clarividência foi explícito e decisivo.

Ouçamos alguma sua palavra orientadora, entre as muitas. “Evitai as construções  ou a aquisição de imóveis que não sejam estritamente necessários para o nosso uso. Jamais coisas para revender; nem campos ou terrenos ou moradias com finalidade de lucros pecuniários” (MB XVII, p. 526-527); “Não conserveis dinheiro nem sequer sob o enganoso pretexto de beneficiar a Sociedade” (MB XVIII, p. 1.098).

“Aquilo que tem apenas uma sombra de comércio, foi sempre fatal às Ordens Reli- giosas” (MB XVIII, p. 269).

Mais solenemente na carta-testamento escrita em 1884, Dom Bosco exprimiu sua exata vontade: “Tenha-se como princípio que nunca deve ser mudado: não se conser- ve nenhuma propriedade de bens imóveis com exceção das casas e das adjacências que são necessárias para a saúde dos irmãos ou a salubridade dos alunos. A conserva- ção de imóveis rendosos é uma injúria que se faz à Providência que de modo maravi- lhoso e dir-se-ia prodigioso nos vem constantemente em auxílio” (MB XVII, p. 257- 258).

Nos regulamentos encontramos condensada em poucas linhas esta norma funda- mental que traçou para a Congregação: “Regra geral, não se conserve na Sociedade a posse de bens imóveis além das Casas de residência e suas dependências, e os terre- nos para as escolas agrícolas” (Art. 27).

Cabe, nesta ocasião, recordar a todos esse ponto, também porque aqui e acolá se nota uma tendência a afastar-se dele, tomados pela preocupação em dar segurança econômica a determinadas obras.

É justo que eu diga aqui, claramente, que a Congregação, olhando seus verdadeiros e superiores interesses, não pode e não deve afastar-se das sábias e preciosas normas deixadas pelo nosso Pai, reconhecidas válidas em cheio pela experiência e hoje assu- midas pelo próprio Concílio.

A pobreza não deve transformar-se em preocupação e atividade econômica: nossa vida assim enquadrada demonstraria “prudência natural que faz surgir a preocupação dos bens terrenos: a pobreza é, ao contrário, disposição da alma que se desprende desses bens” (Regamey).

Isso não quer dizer que devamos proceder com leviandade na administração, muito pelo contrário; seria defraudar os pobres a quem nós devemos servir; mas simples- mente não deve haver demasiada prudência e frios cálculos humanos na prática da pobreza. É com este abandono evangélico em Deus (exatamente o de Dom Bosco!), que exclui além do mais um procedimento fiscal, certas atitudes odiosas com relação a anuidades e de facilitações para quem necessita, ou mesquinhez deixando de gastar o que é necessário para obras puramente apostólicas como o oratório, que merecemos de um lado o auxílio da Providência e ao mesmo tempo evitamos um contrassinal, es- pecialmente hoje muito notado no seio da própria Igreja.

 

Solidariedade com os pobres

Mas a pobreza coletiva para a qual o Concílio nos convida tem outros aspectos não menos interessantes.

Lemos no Perfectae Caritatis (13): “Os próprios Institutos façam o possível, segundo as condições de cada lugar, por darem um testemunho como que coletivo de pobreza, e contribuam de boa vontade com algo de seus próprios bens para as demais necessi- dades da Igreja e o sustento dos pobres, a quem os religiosos todos hão de amar nas entranhas de Cristo (Cf. Mt 19,21; 25,34-36; Tg 2,15-16; Jo 3,17). As províncias e as casas dos Institutos devem pôr em comum umas com as outras os bens temporais, de forma que aquelas que mais possuem ajudem as que padecem necessidade”.

Como se vê, o Concílio nos convida à caridade, que é a alma da pobreza (e que não é esmola!), e nos convida a sair das paredes fechadas de nosso egoísmo.

Esse convite em prol dos irmãos necessitados não se refere aos que possuem quem sabe que riquezas; diz respeito à comunidade religiosa que é pobre, mas que se supõe conserve vivo o sentido de caridade cristã. E devemos trazê-lo à prática.

Não é o caso de descer a pormenores: cada comunidade saberá encontrar os cami- nhos mais aptos para responder a esse exato e precioso mandato conciliar.

Disse precioso porque a comunidade que se abre às necessidades dos irmãos, da maior comunidade eclesial, receberá uma verdadeira riqueza: são os frutos que sem- pre recolhe aquele que, movido pela caridade de Cristo, vai ao encontro, mesmo com sacrifício, do irmão necessitado.

É-me agradável uma evocação que não é somente literária.

No romance cristão “Os Noivos” há, entre outros muitos, um quadro que apresenta ao vivo a pobreza de um verdadeiro cristão que se transforma em caridade florida. O alfaiate da vila, um homem bom, “a melhor massa do mundo”, que leva adiante sua família com seu mui modesto trabalho, é feliz por hospedar, em sua casucha, a Luzia, depois de libertada e cercá-la de mil cuidados. É a festa da vila, há visita do Cardeal Frederico Borromeu. A pequena família está sentada à mesa, modesta, mas perfumada de alegria serena, com Luzia. Mas eis que o alfaiate se surpreende com um pensamen- to, “parou um momento; depois juntou num prato um pouco de iguarias que estavam na mesa, e acrescentando um pão, colocou o prato num guardanapo, e segurando este pelas quatro pontas disse à sua filhinha mais crescida: “toma aqui”. Colocou-lhe na outra mão uma garrafinha de vinho e ajuntou: Vai à casa da Maria, a viúva; deixa-lhe estas coisas e dize-lhe que passe um pouco alegre com seus filhinhos. Mas com boas maneiras, ouviu? não pareça que lhe estás dando uma esmola. E se encontrares al- guém não diz nada. E cuidado para não quebrar” (Manzoni, Os noivos, c. XXIV).

Não vos parece que cada palavra, cada gesto, cada matiz neste admirável episódio seja uma lição de como a pobreza de uma alma verdadeiramente cristã se traduz não em esmola, mas em caridade florida?

 

Solidariedade entre as casas.

O convite que o decreto faz à solidariedade entre as “casas que mais possuem e aquelas que padecem necessidade” nos faz pensar muito. Eis, por exemplo, a reação de um comentador: “Como! Foi necessário que um Concílio tenha vindo para fazer-nos pensar nisso...”

Entretanto, trata-se de um gesto de distribuição equitativa tão frequente, tão es- pontânea entre as famílias cristãs — e não somente entre as famílias, e não somente entre os cristãos — mas simplesmente por solidariedade, num movimento fraterno, entre amigos, entre vizinhos, sobretudo entre os mais pobres: ajudar simplesmente os desprovidos, aliviar com alguma ajuda os amigos que se encontram em dificuldades...

E entre os que fazem profissão de tender sem trégua à plenitude do amor, que de- vem apresentar ao mundo a imagem mesma de uma comunidade de irmãos, em que regras jurídicas puderam eles ser aprisionados; que leis de contabilidade puderam ser enredados, para que às vezes esse intercâmbio tão simples não lhes venha à mente, ou talvez lhes seja até impossível, não se sabe por que falso pretexto? Não leram eles a advertência de São João (Citada aliás pelo Concílio): “Se alguém tendo os bens deste mundo e vendo seu irmão na necessidade, fecha-lhe o coração, como a caridade de Deus pode estar nele?” O que se pode lamentar somente é que esta prescrição figure aqui como um acréscimo: como de fato é” (Vatican II, Jeanne D'Arc, O.P. 438).

Infelizmente aquilo que o comendador deplora é uma realidade que devemos reco- nhecer presente também entre nós.

 

Convite à solidariedade concreta.

Deixando de lado alguns louváveis exemplos, há uma larga insensibilidade para uma solidariedade no seio de nossas comunidades. As causas são múltiplas e também expli- cáveis até agora.

Só um exemplo não raríssimo. Na mesma Inspetoria, uma casa economicamente privilegiada constrói, embeleza, gasta... e a outra, embora apostolicamente válida, des- falece e definha...

Mas já é tempo de acordar e concretizar essa precisa e preciosa advertência do Concílio.

Devemos tornar operante o princípio da solidariedade: por isso antes de citá-lo para dele tirarmos alguma vantagem, devemos preocupar-nos por fazer algo em benefício de nossos irmãos mais necessitados. Falemos bem claro: assim como é necessário der- rubar o muro de certo individualismo e egoísmo que leva o salesiano a viver no círculo fechado de seus pequenos interesses, sem inserir-se na vida da comunidade, assim igualmente devemos alargar a colaboração solidária entre as casas no âmbito Inspeto- rial, entre as mesmas Inspetorias e entre estas e a Direção Geral.

Passando o olhar ao nosso redor, percebemos que no mundo, na Igreja, hoje, há um movimento positivo para encaminhar e desenvolver de fato esse sentido de solidarie- dade entre os mais abastados e os que o são menos. E nós, na Congregação, podemos manter-nos no isolamento egoístico que evidentemente acaba por ser nocivo a nós todos?

Essa atitude concreta de caridade será de vantagem não somente a quem deu: a experiência no-lo confirma. Aliás — e quem não sabe disso? — o exercício da caridade operosa é fruto de grande riqueza espiritual para os indivíduos e as comunidades.

Devo dizer com grande alegria que já no Encontro dos Inspetores da América Latina notara-se viva e urgente a atuação dessa peremptória ordem do Concílio e surgiram conclusões validíssimas.

Ei-las:

  1. Os Inspetores se esforcem para eliminar as diferenças estridentes entre as casas de uma mesma
  2. O Inspetor exija que as casas com maiores recursos econômicos sustentem algu- ma obra social...
  3. Estude-se com sinceridade a caridade, no âmbito da Conferência Inspetorial, a possibilidade de colaborar com dinheiro, pessoal especializado ou bolsas, para ajudar as Inspetorias mais pobres do grupo ou outras mais necessitadas do Continente. Se- guindo o exemplo da Igreja primitiva, ajude cada Inspetoria, embora em suas estreitezas e pobreza, ao Reitor-Maior e à Direção Geral dos Salesianos na solução de seus problemas econômicos (ACS 252, p. 69).

Tal sensibilidade é consoladora, mas, repito, devemos torná-la operante e será uma grande bênção para toda a família; como vedes, de fato, não se trata só de uma solida- riedade expressa puramente em termos econômicos, mas algo de substancial, nobre, realmente edificante e enriquecedor.

A expedição dos Voluntários para a América Latina, por exemplo, não é um modo eficaz sob todos os aspectos dessa desejada solidariedade?

Por isso, tenho o prazer de comunicar-vos (veja-se em outra parte destes Atos) que o Conselho Superior estudou em suas grandes linhas um plano para atuar esses princí- pios de solidariedade na Congregação.

Os Superiores Regionais estudarão com os Inspetores nas Conferências Inspetoriais a maneira dessa atuação nos diversos níveis.

Tenho plena confiança que Inspetorias, Casas, Irmãos darão o seu valioso e deseja- da contribuição de ideias, iniciativas, colaboração e atenderão não só de boa vontade, mas com entusiasmo a esse convite que muitos esperavam com vivo desejo e que ser- virá para criar uma osmose permanente de viva caridade na Congregação.

 

A propósito do dinheiro

A esta altura, sempre dentro do tema “pobreza coletiva”, penso ser oportuno, à luz do Perfectae Caritatis, das Constituições e de nossa válida tradição, lembrar algumas ideias essenciais a propósito do dinheiro e do seu uso.

Também o dinheiro, como qualquer outro bem que a Providência nos manda, deve ser um instrumento a serviço da nossa Missão.

Sei muito bem que é fácil aceitar o princípio, mas é menos fácil levá-lo à prática;  não é imaginário o perigo, devido a tantas causas, que o dinheiro, embora em diferen- tes medidas, se torne de fato um interesse primário. As deploráveis consequências de semelhante atitude estão à vista de todos. A mesma justiça é sacrificada com escânda- lo dos leigos.

Por isso é grande responsabilidade nossa e especialmente daqueles que na Congre- gação — em todos os níveis — ocupam cargos administrativos ou — de algum modo — manejam o dinheiro.

O Cardeal Antoniutti, Prefeito da Sagrada Congregação dos Religiosos e dos Institu- tos Seculares, que em função de seu ofício conhece bem a vida religiosa, ao falar da administração diz palavras que devem ser meditadas: “... a administração da Comuni- dade seja confiada a pessoas competentes, as quais... saibam evitar tanto as arriscadas aventuras de especulações proibidas, quanto o deplorável desleixo dos métodos re- queridos para fazer frutificar o que se possui para o benefício comum”.

Depois passa a elencar os requisitos, as qualidades necessárias às pessoas que ad- ministram nos Institutos Religiosos.

“As pessoas encarregadas da administração dos Institutos Religiosos devem ser prudentes, ordenadas, leais, conscienciosas, diligentes nos “rendicontos” periódicos, ou balancetes, que não façam uso do dinheiro a não ser de acordo com as diretrizes dos próprios superiores e para a execução não de obras arbitrárias, mas de obras que atendam às finalidades dos mesmos Institutos”.

Cada adjetivo, cada frase denota preocupações provenientes de não poucas e dolo- rosas experiências, das quais nem a nossa família conseguiu livrar-se.

Por isso me parece muito útil repetir ainda a palavra do Cardeal Antoniuti: Servir- nos-á para um bom exame de consciência.

“Infelizmente devemos reconhecer que certas administrações de Institutos Religio- sos são confiadas a pessoas que carecem do preparo específico para fazer a escrita contábil, da elaboração dos balanços de receita e despesas, do patrimônio e da conta econômico-financeira. Nem sempre os documentos são devidamente conservados; é descuidada a execução dos legados; às vezes não se observam cuidadosamente as dis- posições testamentárias e os legados pios, e nem se cuida da boa colocação do dinhei- ro proveniente dos dotes e da beneficência. Essas faltas às vezes se tornam mais gra- ves pela ignorância das leis canônicas e civis que comprometem a administração ordi- nária e extraordinária. Faz-se mister o auxílio de algum técnico competente e conscien- cioso; mas sobretudo é necessária a formação de algum elemento do Instituto que possa obter os diplomas exigidos e garantir a competência e os títulos para uma admi- nistração séria.

A pobreza religiosa não exclui a propriedade; mas exclui a negociata, a excessiva preocupação pelos bens materiais, a megalomania das empresas, sem falar da inge- nuidade da administração.

A má administração de alguns Institutos Religiosos constitui um dos escândalos mais graves, porque cria no público um juízo severo acerca da avaliação dos valores morais.

Quem quer que entre em contato com religiosos, mesmo por motivo de negócios materiais, deve perceber o espírito sobrenatural que os anima e que exclui todo ato contrastante com a vida de perfeição professada” (Op. cit. p. 39-40).

 

Administração ordenada e responsável

Gostaria de acrescentar a essa abalizada intervenção ainda alguma minha concreta observação.

O registro claro, exato, atualizado, os “rendicontos” administrativos sinceros e completos, apresentados a tempo aos Superiores, não são uma praxe burocrática su- pérflua ou formal, mas, antes de serem um elementar dever profissional, são instru- mentos e subsídios necessários e indispensáveis para uma sadia e séria administração: somente quem não sabe o que seja administrar e administrar bens alheios é que pode subestimar esses instrumentos.

Também as revisões e análises que se fazem por ocasião das visitas, em nada de- vem ser consideradas como atos de desconfiança, mas se bem-vistas, servem para ajudar e confortar a quem administra, especialmente quando, como em muitos casos, se exerce a função sem ter dela muito conhecimento específico e experiência.

Há ainda outros pontos sobre os quais desejo chamar a atenção: falo das despesas extraordinárias, de construções, aquisições e venda de imóveis, obras novas, etc.

As nossas Constituições e Regulamentos, baseados no Direito Canônico, isto é, na prudência, na justiça e na experiência, contêm a esse respeito, normas bem claras ain- da recentemente recordadas. A observância de tais normas, entre outras coisas, elimi- na tristíssimas surpresas, verdadeiras desordens, abusos, inconvenientes graves, que geram nos irmãos perturbação e desconfiança, ao notarem que às vezes se age com desprezo prático dessas normas que regulam a vida ordinária da Congregação.

Por isso, enquanto chamo atenção de todos para que se atenham às normas nos vá- rios casos previstos para as respectivas competências dos Conselhos das Casas, dos Conselhos Inspetoriais, lembro que o seu parecer não é e não deve ser puramente formal: eles (os Conselhos) devem ser em tempo e claramente informados e interessa- dos nos problemas e o seu parecer manifestado com objetividade não pode ser igno- rado e subestimado e deve constar em ata.

Não se pode admitir, pois, que os Superiores responsáveis, como por exemplo o Conselho Superior, venha a encontrar-se diante de decisões graves, discutíveis, ou to- talmente erradas e nocivas à Congregação, com compromissos já aceitos e vinculados também com obras novas.

Este procedimento, como dizia acima, produz um duplo e grave dano à Congrega- ção; de fato muitas vezes compromete os verdadeiros interesses, provocando também situações extremamente prejudiciais que se poderiam ter evitado, e ao mesmo tempo dá o exemplo de arbitrariedades e abusos de poder que servem de triste lição para os Irmãos.

Penso que não será necessário insistir mais sobre esse ponto: aliás vós certamente estais de acordo sobre a necessidade dessas observações que não partem de desconfi- ança, nem de excessiva prudência, não; elas partem, além do mais, de uma longa ex- periência e têm como preocupação única os interesses da Congregação no sentido mais amplo da palavra.

Finalmente, creio oportuno, dentro do espírito conciliar que deseja os religiosos corresponsáveis e cointeressados na comunidade, convidar os Superiores dessas co- munidades a informar adequadamente os irmãos também acerca dos problemas e das situações econômicas. Tal informação empenha mais os irmãos na vida e nos interes- ses da casa em que trabalham e é um meio de união e de verdadeira formação para os membros da comunidade.

 

Nossas obrigações sociais

Seja-me permitida ainda uma palavra que se refere aos nossos deveres de justiça social e de cidadãos.

Todos conhecemos e muitas vezes explicamos os grandes documentos sociais da Igreja. E é coisa boa. Esses documentos devem ser traduzidos em realidades operantes primeiramente por nós, no nosso ambiente. Seria paradoxal falar tanto de justiça soci- al, de Populorum Progressio, se às palavras não correspondessem os fatos; e nos expo- ríamos a irônicas e decepcionantes reações que teriam reflexos na Congregação e na mesma Igreja.

Na prática, todos aqueles que estão ligados a nós por motivos de trabalho tenham o tratamento econômico e social exigido pela lei e pela mesma natureza do seu serviço: não se pode pretender que tantas boas pessoas renunciem, como podemos fazer nós em força de nossa consagração, aos próprios direitos, tanto mais quando atrás de si há uma família, ou como quer que seja tantos problemas a enfrentar.

Não só, mas essas relações sejam sempre encaminhadas e guiadas num sentido profundamente cristão, sacerdotal e salesiano: também quando para a vida de nossas obras, tornamo-nos de algum modo empregadores, não podemos esquecer a nossa condição especial com relação a eles: a seus olhos somos sempre religiosos e sacerdo- tes, pais.

“Que pensar, se pergunta um escritor, das pequenas desonestidades “para a glória de Deus” ou “para o bem da Congregação”, das falsas declarações e, pior ainda, da recusa de inscrever as pessoas, que nos prestam serviço, na previdência social? Faz pouco, uma senhora empregada numa comunidade, e não inscrita na previdência soci- al, tomava a liberdade de pedir um aumento. Mas ouviu estas palavras: “Mas, minha senhora, poderia trabalhar por amor de Deus!” (G. Huyghe, op. cit. p. 228).

Aludi acima aos nossos deveres de cidadãos. Sobre este ponto não preciso falar muito. Em qualquer país onde trabalhamos, sentimo-nos integrados na grande comu- nidade: dela recebemos vantagens e serviços. É óbvio que devamos dar a nossa contri- buição para o bem comum também com a observância sincera das leis, inclusive as financeiras, fiscais, alfandegárias. É supérfluo dizer quais seriam os reflexos por causa de uma conduta diferente. O bom cristão — e o religioso — é um cristão por excelên- cia, é cidadão exemplar: “Dai a Cesar...”.

 

Bem-aventurados os pobres

Caríssimos irmãos, tenho-vos entretido bastante. Mas acho que vós mesmos estais convencidos que o argumento merecia. Quero crer que o tratado, embora na sua mo- déstia, tenha demonstrado como são vastos os reflexos da pobreza e quão profundos em toda a nossa vida. Compreendamos bem a palavra de São Francisco de Assis que, é bom tê-lo presente, “numa época de triunfalismo, no tempo em que na Roma papal há uma corte esplendorosa, faz o protesto não violento, mas um protesto de testemunho pleno de amor a Cristo, à Igreja, e para tanto desposa a pobreza”.

Pois bem, São Francisco, o evangélico protestador do amor, dizia a seus religiosos: “Enquanto a pobreza resistir, resistirá também a nossa tenda: mas se a pobreza vacilar, ai da tenda”.

É o mesmo pensamento que preocupava Dom Bosco: “O bem-estar — dizia ele — marcará o fim da Congregação”. “O mundo nos respeitará se formos pobres e castos”.

Essa clara convergência de ideias e de valorizações por parte desses grandes servi- dores da Igreja, que viveram à distância de séculos, em épocas providenciais para a Igreja, é para nós uma advertência, um convite, um conforto reiterado ainda nestes dias pela palavra elevada e abalizada do Papa. Nossa Pobreza — diz ele — “é um ates- tado de fidelidade evangélica: é a condição, às vezes sobre-humana da liberdade de espírito, com relação aos vínculos da riqueza, que dá mais vigor à missão do Apóstolo” (Disc. de Paulo VI à Conferência Latino-Americana).

Quais as conclusões desta longa conversação?

Para que de fato a pobreza seja a verdadeira riqueza da nossa Congregação nesta hora de confusão e de desvios, à luz das considerações apresentadas nesta minha carta, que serão relidas e oportunamente comentadas e aplicadas, convido a todos a fazerem o que em certas Ordens Religiosas se chama “scrutinium paupertatis”, exame de pobreza.

Para tal fim, segue a esta carta um exame de consciência prático respectivamente para os Conselhos Inspetoriais e para cada Comunidade. Aos irmãos sugiro fazer esse exame pelo formulário publicado depois do Capítulo Geral: ocasião propícia é a do retiro mensal.

Espiritualmente preparados, reunamo-nos, nos Conselhos e nas Comunidades, para fazer, com o roteiro do exame, uma eficaz revisão de vida sobre a pobreza.

Finalmente, tomemse resoluções, corajosas até, mas concretas, por parte dos Ins- petores e Diretores.

Sentir-me-ei feliz em conhecer o êxito desse grande escrutínio, que visa, bem vedes, dar à nossa querida Congregação o impulso e otimismo de que a pobreza integralmen- te vivida e realizada é fonte e condição.

E o Senhor Jesus faça sentir e saborear a cada um de nós que quer segui-lo genero- samente no seu convite à vida pobre, toda a alegria de sua palavra inundada de luz: “Bem-aventurados os pobres no espírito”.

Com a minha afetuosa saudação, tende a certeza da minha lembrança diária por vós no altar. Fazei o mesmo e vos serei cordialmente agradecido.

Vosso afeiçoadíssimo

Sac. Luís Ricceri
Reitor-Mor