1.Graça e misericórdia envolvem a nossa vida– “Por meio de Cristo”- Amor gratuito e práxis salesiana. 2. O amor leva ao juízo – Deus misericordioso e justo – O sentido do pecado – A formação da consciência – Juízo e vida salesiana. 3. Conversão e vida nova no Espírito – O retorno a Deus – A salvação nas raízes do mal – Aspectos salesianos. 4. O sacramento da Reconciliação – Um caminho de revalorização – Sacramento e espiritualidade salesiana – Reconciliados e ministros da Reconciliação. Conclusão: atravessar os umbrais.
Roma, 15 de agosto de 1999
Solenidade da Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria
Queridos Irmãos,
2000 apresenta-senão só como prazo de calendário, embora singular, mas como passagem cultural com consequências imprevisíveis sobre as pessoas e o gênero humano. Estimula à leitura e valorização do conjunto daquilo que vivemos no século que se encerra e reacende esperanças que parecem hoje ao alcance do esforço humano e além dele.
Para nós, é um convite, quase uma provocação, a repensar-nos como discípulos de Cristo, numa complexa transformação que tem algo de frenético, mas na qual se descobre um sentido e uma direção. Sentimo-nos solidários e parte viva dessa evolução: não só críticos, mas responsáveis daquilo que aconteceu e do que virá.
Queremos, por isso, acolher e realizar comunitariamente a principal instrução do Jubileu, repetidamente expressa pelo Santo Padre na Bula de convocação: “O Ano Santo é, por sua natureza, um tempo de chamada à conversão”[2] . “A ocorrência bimilenária do mistério central da fé cristã seja vivida como caminho de reconciliação e como sinal de genuína esperança para todos os que olham para Cristo e para a sua Igreja”[3] .
Dá-se, também a nós, uma oportunidade extraordinária de reviver a experiência da Reconciliação segundo a nossa condição de consagrados salesianos, compreendendo com a sua dimensão teologal, também a humana e educativa. Torna-se urgente, hoje, conseguir ver o modo com que a salvação realizada por Deus em Cristo torna-se relevante para o homem que vive a experiência de divisão e sofrimento, de conflito e culpa. Com efeito, a Revelação cristã deve ser capaz de instruir o homem sobre o modo de estar no mundo, humana e divinamente bem.
Devemos, pois, retomar e relacionar, articulando-os de acordo com as situações, os diversos aspectos da Reconciliação: retorno a Deus e aproximação aos irmãos, unificação interior e reconstrução das relações sociais, harmonia do próprio ser e compromisso com a justiça, alegria íntima e construção da paz no mundo, verdade e caridade, desmascaramento do mal dissimulado e “renovação” no Espírito, dom sacramental e estilo de vida e ação.
Poderíamos fazer uma resenha das dilacerações pessoais e sociais produzidas pelo pecado, evidenciando a extrema urgência de reconciliação sentida pelo mundo, sem conseguir chegar a ela. Diversos documentos eclesiais tomam este caminho e vós mesmos o haveis percorrido com os jovens.
Nesta ocasião, porém, coroando o caminho que nos levou até 2000, prefiro, como primeiro passo, ir às fontes que tornam a reconciliação possível e real. Ela está na Trindade, em Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo, isto é, amor total que se comunica: nele dá-se o dom e a acolhida incondicional do outro. Isso permite pensar a Reconciliação como algo de originário, não determinado pela nossa culpa ou apenas dependente dela; mas como uma realidade que tem a sua raiz em Deus e estende-se à nossa experiência humana integral.
É verdade que a “reconciliação” se refere imediatamente a alguma “separação”, divisão ou culpa anterior; mas é mais verdade ainda que a possibilidade originária de todo perdão é o fato que Deus é em si mesmo Amor, Gratuidade, Misericórdia, Vísceras de ternura, Altruísmo, Dom ou algo que o valha.
A forma trinitária de Deus, que é comunhão, dá à um sentido incondicionalmente positivo à “reconciliação”. O outro, pessoa ou coisa, é válido para Ele segundo a sua forma atual de ser. A “misericórdia” é aquele radical “deixar ser”, pelo qual todas as coisas são abençoadas no próprio vir à luz, respeitadas em sua existência, esperadas em vista de sua realização plena.
Se existem no próprio Deus várias Pessoas, que têm origem no amor e no amor convivem, então Deus é capaz de assumir para si a honra de todos os seres, também do homem pecador, e criar as condições possíveis para que a criação seja encaminhada à participação real em sua própria vida.
O pecado não chega, então, a romper a unidade do plano de Deus e a enfraquecer a responsabilidade paterna, assumida por Deus ao colocar outras liberdades no mundo. Deus mostra-se capaz de assumir, desde o início, a responsabilidade da possível recusa da sua criatura. A Escritura, por isso, refere-se ao “Cordeiro imolado” desde a fundação do mundo[4] : o amor incondicional de Deus, que oferece o seu Filho, tinha previsto e aceito o risco da liberdade.
Em poucas palavras, a Criação é ordenada à Aliança, a nossa existência à comunhão com Deus: ela é primeira na intenção, é a finalidade. A reconciliação é a predisposição pela qual Deus não se arrepende da sua criação, mas em qualquer situação a recria internamente para atraí-la novamente a si.
Este pensamento funda em bases realmente sólidas o amor autêntico e a gratuidade: dar não é perder, mas viver mais plenamente; perdoar e ser perdoado não é recoser ou remendar, mas recriar e ser recriados no Espírito por virtude da “paixão” que levou Deus a participar-nos a sua vida e a participar da nossa existência.
O primeiro esforço da nossa reflexão pessoal e do anúncio evangélico, será compreender a Revelação de Deus, como nos é manifestada em Cristo, o único capaz de representar a plenitude de Deus e a sua universal vontade salvífica[5] .
Uma linguagem que fuja das simplificações ou ambiguidades e que se deixe instruir pela luminosidade evangélica, mantendo algumas tensões sem ampliá-las ou diminui-las, deveria ser a atitude de cada educador da fé, para poder garantir a todos o encontro confiante com um Deus que dá segurança, capaz de realizar toda reconciliação, capaz, depois de todas as nossas tentativas e do reconhecimento da nossa impotência, de “consolar-nos em qualquer tribulação”[6] , de realizar todo bem a que nos tivermos tenazmente afeiçoado[7] e, enfim, capaz de “enxugar toda lágrima”[8] .
Esta atitude de Deus para com o homem revela-se na existência de Jesus, que o reproduz em seus gestos e ilumina com suas palavras. Ele reconcilia em si o humano e o divino: assume o homem e enche-o de Deus; faz de todos nós “uma só criatura”, abate o muro de toda divisão[10] e reúne a humanidade que se dirige à realização definitiva numa história com vicissitudes alternadas. Ele instaura a possibilidade do homem e da humanidade nova, propõe-na com seus ensinamentos, inicia-a no Espírito com a sua mote e Ressurreição.
Anuncia, por isso, a misericórdia, pede a conversão, atua a reconciliação e entrega-a à sua Igreja como dom e missão: “Tudo isso vem de Deus, que nos reconciliou consigo por meio de Cristo e nos deu o ministério da Reconciliação”[11] .
Há no Evangelho muitas cenas de reconciliação e de perdão das quais uma lectio cuidadosa pode tirar tesouros infinitos. Estas cenas atingem particularmente a nós, que temos predileção pela contemplação de Jesus Bom Pastor, e de bom grado nos detemos a ressaltar as suas características.
A reconciliação nas narrações do Evangelho é sempre iniciativa de Jesus: não é a pessoa, homem ou mulher, que por primeiro pede ou deseja o perdão, mas é Jesus que o oferece. A pessoa, quando muito, sente-se sob a opressão do sentimento de culpa ou da condenação social. Muitas vezes é movida pelo interesse da própria saúde, pela curiosidade ou por um interrogativo espontâneo ou imediato.
É Jesus quem se dirige a Levi[12] ; é Jesus quem olha em direção de Zaqueu e se convida à sua casa[13] . É Jesus quem vem em defesa da mulher pecadora[14] e da adúltera[15] . É Jesus quem pronuncia o perdão ao paralítico descido do teto em busca de saúde[16] . É Jesus quem olha para Pedro, já esquecido da sua infidelidade[17] .
O caminho de reconciliação – essa é uma outra constante – não tem início com a acusação das culpas, mas com o sentir-se “pessoas” reconhecidas, em nova e inesperada relação, oferecida gratuitamente, que ilumina a vida e faz ver dela ao mesmo tempo a deformidade e as possibilidades. À origem do desejo de reconciliação há sempre o impacto da palavra ou da pessoa que desperta a nossa letargia numa existência depauperada e nos chama a ser.
É preciso, pois, ir além da mentalidade que se fixa nas infrações ou na realização dos propósitos como elemento principal que leva à reconciliação. É necessário, porém, colocar-se diante das próprias relações com Deus e ver se Ele conta para nós, se percebemos a sua presença e ação em nossa vida, se esperamos muito dele, se interessa-nos muito não perde-lo.
A coisa mais importante para nós e para a nossa atividade pastoral é reconhecer, apreciar e proclamar a misericórdia de Deus, e concentrar a atenção sobre Ele, Pai de Jesus e nosso. A misericórdia de Deus recompõe a história que diversamente se desfaz, e restabelece continuamente a aliança descuidada pela nossa fraqueza ou esquecimento.
A experiência da reconciliação no Evangelho é, por isso, sempre uma experiência de superabundância de graça, além do racional, de alegria e plenitude. Há grande festa para quem se converte, com escândalo das “pessoas de bem”. Há derramamento de perfumes custosos, com queixas dos poupadores. Há um banquete e convites estendidos a todos, com murmurações da gente de bem. Há liberação de culpas, injustificadas aos olhos do homem, sem garantia, e uma amorável compreensão do humano que aproxima-se da ingenuidade.
O contexto da reconciliação é sempre de louvor e ação de graças, reproduzindo o que repetidamente cantam os salmos: “Celebrai ao Senhor porque é bom; porque perene é a sua misericórdia”[18] . “Bendiz ao Senhor, minha alma... Ele perdoou todas as tuas culpas e sarou todas as tuas enfermidades”[19] .
A sinfonia de motivos com que se apela à reconciliação como acontecimento de relações e de vida, mais do que como fato religioso, comunica o que acontece na pessoa quando descobre que tem valor para Deus e é por Ele amada.
A grande mediação e instrumento de reconciliação foi e continua sendo a humanidade de Cristo. Ela abateu todos os muros e distâncias entre Deus e os homens. Com ela, a comunicação de Deus conosco chegou aos máximos níveis possíveis.
Trata-se de uma afirmação que tem implicações extremamente concretas em nossa vida e práxis pastoral. Chega-se dificilmente ao desejo de reconciliação sem a experiência humana da acolhida. A práxis pastoral do Bom Pastor sugere, pois, que se saiba aceitar com gratidão o afeto que nos é oferecido e demonstrar consideração, estima e escuta das pessoas. Essa é a via que leva a reexaminar a própria vida e ao desejo de mudança.
Justamente isso faz perceber que os aspectos mais luminosos do nosso carisma já são “reconciliação”. A característica “preventiva” da nossa pedagogia é um reflexo imediato do coração misericordioso de Deus[20] e, portanto, autêntica atuação humana da reconciliação que ele é e oferece: a revelação cristã afirma, de fato, que Deus previne não só enquanto Criador, mas também como Redentor, porque só pela sua iniciativa é possível ao homem desejar realisticamente os dons que dela provêm.
A “gratidão ao Pai pelo dom da vocação divina a todos os homens”[21] , de que falam as nossas Constituições, é a comoção com que nos aproximamos de qualquer jovem, porquanto pobre seja, seguros de que existe nele a nostalgia de uma dignidade maior, de um “paraíso” não tão perdido que Deus não o possa dar de novo.
A amabilidade que marca nossas relações é manifestação experimentável do projeto e do desejo de Deus, também e justamente pelo menino difícil que perdeu qualquer sinal de uma possível alegre comunhão com as pessoas e a vida.
O otimismo é o reconhecimento daquela intenção divina de felicidade, jamais negada, sempre presente em algum traço de bem, mesmo pequeno, pelo sinal talvez já debilíssimo, mas que deve e pode ser despertado, também com a simples oferta de simpatia humana, em que o divino e o humano se “con-cretizam” e crescem juntos: representação daquela “humanidade e benignidade do nosso Salvador”[22] pela qual encontrar o Senhor era ver a Deus.
A consistência, o descortino e a laicidade do nosso estilo pastoral são, enfim, a forma mais radical da convicção de que a paternidade de Deus e a sua Soberania se manifestam e se tornam críveis nos sinais de libertação do mal e na oferta de vida digna para todos. Onde quer que haja o cuidado por um pequeno, ali Deus é bendito: por isso a realização lúcida da nossa missão de evangelização-promoção-educação tornar-se-á reconciliação também onde ela, por mil motivos, não é nem pedida nem querida nem sonhada nem tematizada como tal: reconciliação como graça antecedente, concedida “quando ainda éramos pecadores”[23] .
O Reino já se faz presente na acolhida da necessidade juvenil, do “sabes assobiar?” ao “catecismo”, sem solução de continuidade, sem barreiras, sem contraposições ou ciúmes.
Uma reflexão análoga pode ser levada também à vida de nossas comunidades, e espero que a façais. É um reflexo de Deus, e é uma sabedoria humana, o fato de que em nossas relações tudo passe preferencialmente através da lógica do coração, do espírito de família e de caridade, de estima e de confiança recíprocas[24] .
É realmente verdade que a reconciliação passa mais pela humildade e pela coragem de dar o primeiro passo e menos pela espera do outro, mais ou menos entrincheirada. E é sobretudo verdade que os caminhos de reconciliação são percorridos dentro de relações em que o outro se sente mais promovido do que julgado.
Aprofundar o espírito de família em vista dos caminhos de reconciliação significará dizer-nos com solidez o que é para nós, além do formal, comunicação fraterna, silêncio, iniciativa e paciência, pureza e correção fraterna. De modo mais radical, observando tantas situações comunitárias perguntemo-nos: o quanto será necessário imitar o amor antecedente de Deus e a bondade do Bom Pastor para erguer um irmão amargurado, desiludido, ferido pela vida, ressentido pelos muitos erros cometidos ou sofridos? Como se faz para dar vida nova a quem está tão “mortificado” a ponto de não mais achar em si recursos de resgate?
2. O AMOR LEVA AO JU