Queridos irmãos,
hoje,
finalmente, teve início de forma solene, em Turim, na basílica de Nossa Senhora
Auxiliadora, o processo oficial de beatificação e canonização de Mamãe Margarida.
Em Valdocco, onde ela testemunhou - pode-se dizer heroicamente por bem dez
anos - a sua generosa colaboração com o filho João para dar vida ao providencial
carisma salesiano da Obra dos oratórios. Sabe o nosso Pai e Fundador quanto
isso tenha custado à Mãe e quanto ela mesma tenha contribuído para o sucesso,
estilo, ambiente de família, espírito de bondade e sacrifício, que caracterizam
ainda hoje toda a instituição salesiana de Dom Bosco. Agradeçamos ao Senhor
e rezemos para que a causa possa caminhar positivamente e com rapidez.
Ofereço-vos, por ocasião de data tão significativa, a reflexão sobre um
argumento que me foi solicitado para o 20º Encontro do Instituto de Teologia
da Vida Religiosa "Claretianum", aqui em Roma no dia 16 de dezembro
de 1994. Deram-me o delicado e importante tema "A releitura fundacional
feita pelos Salesianos". O desenvolvimento não foi pensado diretamente
para nós, mas em, certo sentido, pode resultar muito útil pensá-lo juntamente
com outros consagrados.
Ao apresentar-vos os conteúdos dessa minha conversação entendo convidar-vos
a fazer uma atenta consideração de síntese histórico-carismática que sirva
para iluminar salesianamente os caminhos de renovação que estamos percorrendo
depois do Concílio Vaticano II.
Uma experiência vivida
A ótica desta minha relação é substancialmente a de uma espécie de cronistória
repensada. O tema de "como reler hoje" o carisma é desenvolvido
com uma ótica "de fato", não tanto para indicar "como"
se deva fazer, quanto para dizer o que fez o meu Instituto. Trata-se de uma
experiência que eu vivi pessoalmente desde o Concílio Vaticano II até hoje.
A experiência vivida não é tese a defender, mas realidade de vida - confortada
por decênios de experimentação - que pode também oferecer sugestões (em
parte comprovadas) para saber reler sempre melhor as próprias origens espirituais.
Duas convinções básicas
A releitura do carisma do nosso Fundador está nos empenhando já há bem trinta
anos. Dois grandes fachos de luz nos ajudaram nesse trabalho: primeiro, o
Concílio Ecumênico Vaticano II, segundo, a transformação epocal
desta hora de aceleração histórica.
Partimos da convicção que o Concílio
é uma visita histórica do Espírito Santo à Igreja de Cristo
para uma nova hora de sua missão no mundo: o
maior acontecimento pastoral do século XX em vista de uma
renovação autêntica. Nele devia-se buscar luzes e
orientações também para a renovação da Vida Religiosa.
Tratava-se de centrar-se sobre pontos
estratégicos da grande mensagem conciliar,
aprofundá-los, assumi-los e aplicá-los à releitura do nosso
carisma.
Procurou-se aplicar, particularmente à luz de quanto dito na Lumen gentium,
aquilo que o decreto Perfectae caritatis solicitava no n. 2: a "accommodata
renovatio" com suas duas componentes de "retorno às fontes"
e "adaptação às mudadas condições dos tempos".
A complementaridade dos dois critérios devia evitar a ameaça de fixismo, de
esclerose e de formalismo e, ao mesmo tempo, evitar a ruptura com as origens.
A aplicação desses dois critérios, simples e claros no enunciado, demonstrou-se,
porém, muito complexa na prática.
A transformação epocal, já descrita com aguda percepção prospética
na Constituição conciliar Gaudium et spes, apresentara-se com vigor
sobretudo em algumas zonas ocidentais onde nosso Instituto atua com numerosas
presenças. Enfrentava-se uma crescente problemática de novidades culturais
que influíam fortemente na missão específica do Instituto e também, ao
menos em parte, no estilo de vida religiosa. De outra parte, já se notavam
impulsos de autenticidade duvidosa, que podiam fazer desviar ou esvaziar um
sadio processo de renovação .
A renovação cultural não podia ser excluída e desconhecida, mas devia
ser confrontada com a novidade evangélica inerente a um carisma verdadeiro.
E isso abria um horizonte de trabalho muito vasto e delicado. Foi então
que se formulou a famosa expressão : "Com Dom Bosco e com os tempos,
e não com os tempos de Dom Bosco!".
O fato de ter consciência clara desse inelutável desafio levou os responsáveis
pelo Instituto a dar extraordinária importância ao Capítulo Geral Especial
desejado pela Sé Apostólica. Houve o esforço de prepará-lo com seriedade
verdadeiramente inédita, com a participação de todas as Províncias e de
todos os irmão s. Organizaram-se equipes de especialistas para uma análise
bem detalhada dos temas vitais a serem enfrentados e se predispôs também um
esboço de reelaboração das mesmas Constituições. Foram redigidos acuradamente
um conjunto de bem 20 pequenos volumes para uso dos capitulares. Pensava-se
na grave responsabilidade, quase de "refundação ": aquilo que
Dom Bosco tinha feito "pessoalmente" deveria ser repensado e
reelaborado, em certo sentido, "comunitariamente", em relação às
exigências da transformação epocal e em plena fidelidade às origens.
Muito ajudou, ao lado de estudos históricos, uma análise séria, embora sintética,
dos questionamentos das mudanças culturais (secularização , socialização ,
personalização , libertação , inculturação , aceleração da história, promoção
da mulher, etc.).
Jamais se fizera um trabalho tão vasto e realista.
Os caminhos a seguir
A releitura fundacional não podia ser simplesmente um estudo, mais ou
menos científico, das fontes, mas discernimento espiritual, feito por discípulos
empenhados a partir do interior da mesma experiência vocacional.
É a consideração de quem sabe perceber a alma do próprio Instituto, sua
intencionalidade, seus dinamismos, seu modo de seguir Cristo e de trabalhar
na Igreja, e de amar os jovens no mundo assim como eles são . O retorno às
fontes não devia ser um passeio arqueológico através de documentos antigos,
mas uma revisitação dos momentos de fundação e do coração do Fundador
em sua experiência original de discípulo do Senhor. Devia ser uma releitura
orgânica e dinâmica que implicasse auto-consciência de comunhão com o Fundador,
mediante a experiência coletiva de todo um Instituto que, através dos tempos
compartilhou seu espírito e missão . Era preciso saber harmonizar, com dosagem
apropriada, tanto o momento histórico como o teologal e o cairológico.
Foi necessário percorrer caminhos complementares e interdependentes para
encaminhar essa releitura procurando, em cada um deles, uma contribuição
específica. Os principais caminhos seguidos foram:
a. O caminho histórico: o carisma é uma experiência vivida e não
uma teoria abstrata. Fez-se, por isso, um sério estudo das fontes que se referem
à pessoa do Fundador e à mesma fundação : o contexto cultural e social e seu
influxo sobre o Fundador; sua vida e suas obras; as pessoas que tiveram influência
sobre ele e com as quais teve especiais contatos; seus escritos, etc.
b. O caminho experiencial: adquire importância e concretitude na releitura
fundacional, a experiência vivida pela grande comunidade dos discípulos,
os valores que encarnaram a partir da consciência e da responsabilidade
da mesma vocação . O caminho de fidelidade constitui uma espécie de "sensus
fidelium" congregacional. Faltando a experiência perseverante e fiel
dos seguidores do Fundador, arrisca-se
.a ser sujeitos de contínuas mudanças de identidade, em busca de uma modernização
forçada do carisma segundo a moda do tempo, confundindo o que é caduco com
o que é essencial;
.a deixar o fundador de lado, com o pretexto de que suas finalidades e objetivos
já não são atuais,
c. O caminho dos sinais dos tempos: o caminho "histórico"
e o "experiencial" permitem aproximar-se, com mais sensibilidade
e tranqüilidade, também da contribuição dos sinais dos tempos. Como já disse,
ignorá-los seria condenar o carisma a permanecer fechado - contra sua natureza
- em um museu. Se, de um lado os sinais dos tempos exigem aprofundamentos
e adaptações por parte do Instituto, de outro permitem uma compreensão
nova e de verdadeira atualidade do dom do Espírito. Ajudam a perceber até
para quais horizontes o Senhor impele sua Igreja e seus carismas.
d. O caminho espiritual: é um caminho que não exclui nenhum dos anteriores,
mas que os unifica e incorpora a partir de uma atitude e uma ótica fundamentais:
discernimento da vontade do Senhor, obediência ao seu chamado ao longo da
transformação da história. Podem percorrer esse caminho somente pessoas
"espirituais", que cultivem uma especial docilidade ao Espírito.
Ele permite ultrapassar o contexto sócio-cultural vivido pelo Fundador, para
fazer brotar no hoje suas intenções evangélicas com suas intuições fundantes,
a ponto de realizá-las no contexto atual e nos novos tempos, e transformá-las
em "cultura" de atualidade.
A reelaboração das Constituições
O empenho de reelaborar a fundo o texto constitucional teve um papel importante
de concretitude e de guia dos trabalhos em nossa releitura fundacional. De
início existiram resistências por vários motivos; e mesmo depois, com o trabalho
já encaminhado, alguém pensava que bastasse retocar aqui e ali as Constituições
anteriores. Resultou uma decisão muito sábia a audácia de, na fidelidade,
embarcar no repensamento e na reelaboração de tudo.
Evidentemente o delicado trabalho foi impostado segundo as novas orientações
conciliares. Devia-se trabalhar para se chegar a um "Codigo fundamental"
no qual descrever com autenticidade a identidade, os valores evangélicos,
a índole própria, a dimensão eclesial, as tradições sadias e, também, as
indispensáveis normas jurídicas, necessárias para garantir o caráter, fins
e meios do Instituto.
Diversamente da normativa anterior, o Ecclesiae Sanctae quis que
as Constituições renovadas fossem ricas de princípios evangélicos, teológicos
e eclesiais; não , contudo, como agregado artificial introduzido exteriormente
e a nível teórico, mas como percepção e explicitação emanadas da mesma
vivência do Fundador e de todo o seu projeto de vida. Elas deviam conter a
síntese integral de um projeto original de vida consagrada, indicando
os princípios substanciais com que o Fundador quer que os seus sejam discípulos
de Cristo com um determinado senso eclesial.
Era preciso chegar nas Constituições a uma integração harmônica entre
inspiração evangélica, criteriologia apostólica e concretitude estrutural,
pondo à vista, para além das exigências institucionais, a experiência histórica
de Espírito Santo vivida pelo Fundador e por ele transmitida ao Instituto.
Dom Bosco, nosso Fundador, esforçara-se ao máximo para transfundir a sua experiência
pessoal nas Constituições (nos limites do que então se podia fazer), para
deixar um "testamento vivo" que fosse como espelho refletor das
linhas mais características de sua feição espiritual e apostólica. Ele mesmo,
com razão , tinha podido afirmar que "amar Dom Bosco é amar as Constituições";
e, entregando uma cópia delas ao P. Cagliero de partida para a Patagônia
como chefe de sua primeira expedição missionária, exclamou com comovida
persuasão : "aqui está Dom Bosco que vai convosco".
Na reelaboração das Constituições, procurou-se justamente, enviar o mais
possível à realidade espiritual do Fundador, aos seus escritos mais carismáticos,
à sua experiência comprovada, como "modelo" de onde deriva a ótica
genuína e a chave indispensável de releitura fundacional.
Esse trabalho não foi fácil; durou mais de um decênio, mas constitui de
fato a síntese mais clara e autorizada de nossa releitura fundacional.
Tudo isso foi enriquecido com um "comentário" autorizado,
artigo por artigo, como válido subsídio para a reta interpretação das Constituições.
Elaborou-se, também, um "livro de governo" - em dois volumes
- um para o Provincial e outro para o Superior local - em vista da renovação
do exercício da autoridade. Pôde-se também redigir uma apropriada "Ratio
institutionis" para a formação inicial e permanente dos irmão s.
O espírito do Fundador
Para a reelaboração das Constituições foi dada particular atenção à sua
estruturação orgânica, numa visão global e unitária. Um projeto de vida
não suporta rupturas que escondam ou prejudiquem o alcance de um plano que
é, em si, vitalmente orgânico. Mas, para que isso fosse feito, era necessário
que elucidássemos dois conceitos postos à base de tudo: "consagração
" e "missão " e suas recíprocas relações. Pode-se dizer que
se desencadeou então uma verdadeira batalha capitular; que não se resolveu
muito facilmente, como veremos, mas, no fim, em sua solução , encontramos
a chave da organicidade.
Entretanto, como elemento independente e basilar (pelo menos para o trabalho
que se devia fazer), desejou-se garantir a descrição dos traços mais significativos
da fisionomia espiritual do Fundador. No interior dos grandes valores evangélicos,
comuns a todos os Institutos de vida consagrada, era preciso saber individuar
o estilo quotidiano, aas atitudes pessoais e comunitárias, as modalidades
de convivência e de trabalho, ou seja aquele clima e atmosfera de casa, que
constitui a fisionomia própria; decerto, mesmo nisso era preciso hierarquizar
as componentes, porque se tratava de uma releitura em profundidade com
um próprio centro propulsor, que não devia tornar-se teoria lógica mas permanecer
descrição tipológica.
Foi colocado na importante 1ª Parte do novo texto constitucional um capítulo
todo novo de 12 artigos (de 10 a 21) que condensam o que se considerou a
substância do "espírito de Dom Bosco".
O
Vaticano II - como já dissemos - convidara os religiosos a
concentrar a própria atenção na figura do Fundador, como
expressão original da multiforme santidade e vida
evangélica da Igreja. Cada Fundador nasceu dEla e para Ela
viveu.
Paulo VI recordou a todos: "O Concílio insiste na obrigação , para religiosos
e religiosas, de serem fiéis ao espírito de seus Fundadores, às suas
intenções evangélicas, ao exemplo de sua santidade, vendo nisso um dos
princípios da renovação em curso e um dos critérios mais seguros
do que cada Instituto deve eventualmente realizar. Porque, se o chamado de
Deus se renova e se diferencia de acordo com as circunstâncias de lugar e
de tempo, exige contudo orientações constantes".
Usamos a terminologia "espírito" mais que "espiritualidade",
por fidelidade à historicidade e à vivência do Fundador como "kairòs"
que se fez modelo; a "espiritualidade", diversamente, parece referir-se
a conceitos mais abstratos.
O trabalho realizado constitui hoje certamente um dos valores de nossa releitura
fundacional; estamos convencidos de agradar ao próprio Dom Bosco que, falando
com humildade do texto constitucional por ele redigido segundo as normativas
da época, dizia que o texto podia ser considerado como um "rascunho"
daquilo que ele mesmo desejava, mas que seria "passado a limpo"
pelos seus filhos.
Concentrar a atenção no espírito do Fundador significava privilegiar a
interioridade e as atitudes do coração , ter os mesmos sentimentos com que
ele recopiara os de Cristo.
Isso também faz entender o salto de qualidade desejado pelo Concílio na concepção
das Constituições: de um texto mais normativo e jurídico, à síntese genial
e estimulante da experiência evangélica de um "chefe-de-escola"
de santidade e de apostolado.
O
espírito do Fundador está certamente ligado também à cultura do tempo;
nela se manifesta transcendendo-a, a ponto de constituir um conjunto de
traços espirituais possíveis de encarnação em outras culturas.
Ele pertence, por isso, à transcendência e à adaptabilidade
do carisma. Sua transmissão , porém, não
acontece simplesmente com palavras, mas com uma
tradição continuada de vida ligada de fato a um longo
e delicado processo de sadia inculturação .
Da "missão " à redescoberta do "carisma"
Já acenei ao debate capitular sobre as noções fundamentais de "consagração
" e "missão ". O aprofundamento da relação recíproca entre
esses dois aspectos vitais esteve no centro de nossa releitura e constituiu
uma base para a síntese conclusiva. O Concílio bem interpretado levou-nos
a uma convergência convicta e dinâmica.
Iniciados os trabalhos do Capítulo Geral Especial foi estabelecida, entre
outras, uma comissão dedicada especificamente ao estudo do "carisma
do Fundador". Ela encontrou grandes dificuldades e, depois de certo
tempo, foi dissolvida. Por que?
Os motivos fundamentais foram de duas espécies, entre si contrastantes. Alguns
não queriam o estudo do carisma, que poderia abrir o futuro a aventuras arbitrárias;
outros, diversamente, não o queriam porque poderia sacralizar elementos
culturais e transitórios do século passado. A soma dos dois grupos prevaleceu
numericamente; não havia ainda mentalidade suficientemente iluminada a respeito.
É útil recordar também que nos documentos do Concílio jamais
se usa a expressão "carisma" do Fundador,
embora sejam indicados os elementos característicos da
índole própria. O primeiro uso oficial da expressão
"carisma" do Fundador é encontrado na Exortação apostólica Evangelica testificatio de Paulo VI, de 1971. Encontra-se, depois,
esclarecimento autorizado mais específico e descrição mais definida no documento
Mutuae relationes de 1978.
De outro lado, era convicção que, num momento de rápidas mudanças, o aspecto
que se fazia mais sentir como questionamento era o da "missão ".
Mas, em que consiste a "missão "? era muito fácil esquecer a sua
natureza teológica para restringi-la ao âmbito operativo das atividades.
E assim uma mentalidade de tipo "essencialista" afirmava o primado
ontológico do tipo de "consagração " que não poucos pensavam
que devia preceder e orientar todo o projeto.
Um problema nada fácil, alimentado entre os capitulares de concepções redutivas
e impróprias tanto do conceito de "consagração " como de "missão
".
O caminho que nos abriu o sentido autêntico da releitura do carisma foi o
de entender o significado desejado pelos Padres conciliares no famoso verbo
"consecratur" da Lumen gentium n. 44. Foi um trabalho longo
e debatido para se chegar a mudar a mentalidade sobre o conceito de "consagração
" religiosa.
Antes, ela era identificada com os aspectos mais típicos da
interioridade (oração , votos) e se considerava como seu sujeito agente
o indivíduo religioso ("eu me consagro"). Isso levava a
prescindir do verdadeiro conceito de carisma e a colocar em
segunda linha a "missão " com suas exigências, como se
se tratasse apenas da ação e das obras e não fosse
teologicamente inerente à própria consagração . Isso tudo influia
evidentemente no próprio modo de estruturar as Constituições.
Houve um debate muito sofrido para superar esse dualismo entre
"consagração " e "missão ", que atingia na raiz a identidade de
nossa vocação apostólica.
Muito serviu o que afirma o Concílio no n. 8 do Decreto Perfectae caritatis
e, sobretudo a consideração de que é Deus o agente ativo tanto da consagração
como da missão . Dessa forma repensou-se o significado da Profissão e
dela se elaborou uma nova fórmula.
Em particular aprofundou-se o nexo teológico inseparável entre "consagração
" e "missão ", dando um sentido renovado a todo o projeto
da índole própria e abrindo a possibilidade de repensar a estrutura constitucional.
Essa visão de nossa "consagração apostólica" foi sintetizada
num artigo das Constituições que diz: "Nossa vida de discípulos do Senhor
é uma graça do Pai que nos consagra com o dom do seu Espírito e
nos envia para sermos apóstolos dos jovens. Com a profissão religiosa
oferecemo-nos a nós mesmos a Deus para caminhar no seguimento de Cristo
e trabalhar com Ele na construção do Reino. Missão apostólica, comunidade
fraterna e prática dos conselhos evangélicos são os elementos inseparáveis
da nossa consagração , vividos num único movimento de caridade para com
Deus e para com os irmão s. A missão dá a toda a nossa existência o
seu tom concreto, especifica a tarefa que temos na Igreja e determina
o lugar que ocupamos entre as famílias religiosas".
Trata-se, então , de viver uma existência cristo, ao mesmo
tempo consagrada e apostólica, ou melhor, apostólica porque
consagrada. O dom do Espírito ao professo comporta nele uma "graça de unidade"
que o torna capaz de uma síntese vital entre a plenitude da consagração
e a autenticidade da operosidade apostólica. "Esse tipo de vida - afirma
o Capítulo Geral Especial - não é algo de fixo e pré-fabricado, mas um projeto
em construção permanente. Sua unidade não é estática, mas unidade em tensão
e em necessidade contínua de equilíbrio, revisão , conversão e adaptação
".
Essa graça de unidade, fruto da caridade pastoral, foi recentemente descrita
também pelo Santo Padre na Exortação apostólica Pastores dabo vobis.
E o mesmo João Paulo II numa alocução feita aos Capitulares do nosso CG23
a 1º de maio de 1990: "Agrada-me - disse - sublinhar, antes de tudo,
como elemento fundamental, a força de síntese unitiva que brota da
caridade pastoral. Ela é fruto da potência do Espírito Santo, que garante
a inseparabilidade vital entre união com Deus e dedicação ao próximo,
entre interioridade evangélica e ação apostólica, entre coração orante
e mão s operantes. Os dois grandes Santos, Francisco de Sales e João Bosco,
testemunharam e fizeram frutificar na Igreja essa esplêndida 'graça de unidade'.
Seu defeito abre um perigoso espaço para os ativismos ou intimismos,
que constituem uma insidiosa tentação para os Institutos de vida apostólica".
Encontramos, nessa visão de síntese vital, a centelha
inicial de nossa identidade, que brilha lá onde tudo começa, onde
explode a amizade e se ratifica a aliança, onde palpita a graça
de unidade. Trata-se do encontro de dois amores, de duas
liberdades que se fundem: O "Pai que nos consagra" e "nos
envia" e nós que "nos entregamos totalmente a Ele" na
aceitação do "envio". A iniciativa e a
possibilidade mesma da aliança apostólica provém de Deus, nessa
recíproca fusão de amizade, mas é confirmada por nossas
respostas livres: foi Ele quem nos chamou, enviou e ajudou a
responder, mas somos nós que nos entregamos e nos fazemos
"missionários".
Para nós, o termo "consagração " sublinhava sobretudo a iniciativa
de Deus: é Ele quem consagra! Sabíamos bem que - em seus conteúdos - o
próprio termo "consagração " não é de per si unívoco; diferencia-se
efetivamente segundo vários níveis de vida eclesial. não entramos de imediato
na consideração dessas diferenciações, deixando para a elaboração das Constituições
aquilo que o termo significaria para nós em concreto.
Interessava-nos evidenciar por primeiro o salto de qualidade da parte da iniciativa
de Deus: "consecratur a Deo"!
Esse é o salto de qualidade que nos abriu os horizontes.
Fomos levados, nessa ótica de consagração apostólica, a contemplar também
o Fundador: Deus, que o escolheu e guiou, fez da sua existência em missão
uma "experiência de Espírito Santo" a ser continuada e incrementada
no tempo da Igreja.
Eis-nos, assim, diante de uma visão teologal do "carisma do Fundador":
"uma experiência do Espírito", transmitida e constantemente
desenvolvida em sintonia com o Corpo de Cristo em contínuo crescimento...
com uma índole própria que comporta também um particular estilo
de santificação e de apostolado".
O
elemento dinâmico que permitiu amadurecer essa categoria
teológica de "carisma" foi justamente o reconhecimento da
iniciativa divina na "consagração " como ação específica de
Deus. De fato, essa foi uma verdadeira reviravolta conciliar, que fez
repensar o significado da Profissão e a obra
específica do Fundador. Serviu também para dar o nome de "vida consagrada" aos Institutos, que eram antes chamados
de "estados de perfeição ".
"Consagração apostólica" e "carisma" tornaram-se, para
nós, duas categorias teológicas que se sobrepõem e se permutam reciprocamente.
Trata-se com efeito, de uma iniciativa exclusiva de Deus, que não se enfraquece
num genericismo descaracterizado, mas consiste numa intervenção peculiar
que determina uma missão própria e um projeto evangélico de vida para
dar uma fisionomia concreta ("estilo de santificação e apostolado")
ao Instituto.
Pode-se dizer que a visão conciliar de "consagração " comporta
uma ótica de iniciativa do Espírito Santo que, aplicada à luta histórica
da fundação , manifesta-nos a substância mesma do "carisma" dado,
tanto ao Fundador como ao Instituto, que tem como fonte permanente de sua
continuidade a profissão religiosa de cada um dos sócios.
Embora tenhamos partido com exclusão temporária da categoria "carisma"
em nossa releitura fundacional, nela aproamos seguramente, através do aprofundamento
providencial do acontecimento "consagração " segundo o Concílio.
A duração e os atores da releitura
Podemos considerar, "grosso modo", quatro etapas pelas quais passou
a nossa releitura: o Capítulo Geral Especial e os três sucessivos Capítulos
Gerais; trata-se praticamente de duas intensas décadas de trabalho: dos anos
'70 aos anos posteriores a 1990.
-O CG20 (10 de junho de 1971 a 5 de janeiro de 1972: sete meses!) foi
o Capítulo "especial" desejado pelo Motuproprio Ecclesiae sanctae
e a etapa mais longa e trabalhosa de repensamento e reelaboração dos elementos
da identidade; continua o Capítulo fundamental de todo o trabalho realizado.
-O CG21 (31 de outubro de 1977 a 12 de fevereiro de 1978)
foi um tempo ulterior de revisão e de consolidação . Completou alguns aspectos
peculiares da nossa identidade (como o Sistema Preventivo, o papel do Diretor,
a figura do Salesiano Coadjutor) em harmonia com a doutrina e as orientações
do Vaticano II, e prolongou por outro sexênio a experimentação das Constituições
renovadas.
-O CG22 (de 14 de janeiro a 12 de maio de 1984) constitui a última
contribuição , que leva a termo a experimentação vivida ao longo de dois
sexênios e entrega à Congregação as Constituições e Regulamentos de forma
renovada e orgânica.
-O CG23 (de 4 de março a 5 de maio de 1990) diferencia-se dos três
Capítulos Gerais anteriores porque propriamente "ordinário". Os
três anteriores pertencem, de algum modo, à categoria do Capítulo Geral
"Especial", por se referirem globalmente à identidade do carisma
com variados argumentos a serem discernidos. O CG23, diversamente, trata
só de um argumento concreto, escolhido para intensificar a caminhada de renovação
. Pode ser interessante observar que, se os três Capítulos "Especiais"
aproam com clareza numa identidade já redescrita nas Constituições, o CG23
lança a identidade carismática no campo de uma acelerada evolução em
vista de uma ortopraxis da missão , recorda-nos que a releitura da
identidade não fecha, mas abre a porta com mais coragem, na busca
de empenhos a serem inventados na nova evangelização . Portanto: uma releitura
também em vista de uma melhor busca em favor da missão .
É
interessante observar que as quatro etapas constituem, pode-se
dizer, um único processo contínuo e complementar. Isso significa que
o texto reelaborado transcende não só o empenho de grupos resritos de determinados
irmão s, mas os de cada um dos quatro Capítulos Gerais. Em cada um deles,
separados um do outro por seis anos, mudou de fato uma boa parte dos membros
e, a cada vez, foi uma novidade de experiência vivida e refletida; pode-se
aquietar, nos Capítulos que se seguiram, o eventual influxo de elementos
anteriores que tivessem sido fruto de consideração circunstancial; uma mais
profunda e prolongada reflexão pôde corrigir imprecisões ou eventuais ambigüidades;
o tempo fez amadurecer o aprofundamento de aspectos delicados, enquanto a
aceleração das mudanças levou a saber distinguir mais claramente os valores
permanentes dos caducos, aqueles de identidade dos de extração apenas cultural,
aumentando a consciência da dimensão eclesial e mundial do projeto evangélico
de Dom Bosco.
Pontos nevrálgicos no processo de discernimento
As Constituições, no visual conciliar do Ecclesiae sanctae, deviam
ser a apresentação autorizada de um projeto de vida evangélica; pedia-se
nelas indicação dos princípios fundamentais da sequela de Cristo, sua dimensão
eclesial, sua originalidade carismática, as tradições sadias e as estruturas
adequadas de serviço.
Elas apresentam, de fato, uma integração
harmoniosa entre inspiração evangélica e concretitude
estrutural. São um documento fundamental do Direito
particular da Congregação . Mais do que estabelecer
prioritariamente normas detalhadas a serem observadas, elas
descrevem principalmente uma modalidade espiritual e
apostólica a testemunhar segundo o espírito das Bem-aventuranças.
Ajudam a reler o mistério de Cristo na ótica do Fundador, para
nós, na ótica salesiana de Dom Bosco. Repensou-se a sua estrutura
geral segundo ordenamento e estilo que convidam à leitura orante
e estimulam ao empenho de vida. Se quem a medita o "faz na fé", ou
seja, com olhos "novos", tira dela luz e força.
Foram seguidos alguns critérios orientadores, compartilhados - também após
sofridas discussões -, que podem ser considerados como pontos nevrálgicos
do caminho percorrido. Além do senso vivo do Fundador, de que já falei, enumero
os seguintes:
. O alcance da profissão religiosa
A releitura do carisma despertou sobretudo a consciência de uma hora germinal
para a vida consagrada, com um empenho global de reinício para lançar de novo
o projeto do Fundador. Essa sensibilidade de relançamento trouxe consigo
a recuperação do significado vital da Profissão religiosa.
Compreendeu-se que não se pode reduzir a profissão somente à emissão
dos três votos, como se fossem idênticos em todos os Institutos de consagração
. não se tratava de escrever nas Constituições uma espécie de pequeno
tratado genérico de vida consagrada, mas oferecer uma descrição tipológica
daquilo que o Concílio chama de "índole própria" do projeto evangélico
professado. Era preciso descrever os traços espirituais e as atitudes existenciais
que nos devem distinguir e caracterizar no Povo de Deus. Esses aspectos
supõem e exigem, sem dúvida, os elementos constitutivos de toda vida cristo,
que temos necessariamente em comum com os demais fiéis e religiosos.
A índole própria é constituída por aspectos e colorações
existenciais, descritos e precisados no texto constitucional e
assumidos explicitamente na profissão como praxe da
sequela de Cristo. Coisa, de fato, nem insignificante nem
negligenciável para os professos. Para nós, o modo de ser discípulos
e de viver o Batismo é o de praticar nossa "Regra de vida". Para
sermos bons cristão sdevemos viver como bons salesianos.
"Não existem dois planos - dizia-nos já o CGE -: o da
vida religiosa, um pouco mais acima, e o da vida cristo, um
pouco mais abaixo. Para o
religioso, testemunhar o espírito das
bem-aventuranças com a profissão é a sua única maneira de
viver o batismo e de ser discípulo do Senhor".
Na profissão religiosa descobrimos, em definitivo, o significado vivo e
global da nossa especial Aliança com Deus.
. O critério oratoriano
Refere-se igualmente ao problema dos destinatários: ponto crucial no Capítulo
Geral Especial. Dom Bosco teve como prioridade, a obra dos Oratórios com
seus destinatários privilegiados. Em nosssa releitura do carisma o primeiro
Oratório de Valdocco foi assumido como modelo apostólico de referência.
Esse modelo não se identifica com uma determinada estrutura ou instituição
, mas comporta uma específica ótica pastoral para julgar as presenças existentes
ou a serem criadas.
No centro deste "coração oratoriano" há a predileção pelos jovens,
sobretudo os mais necessitados e das classes populares; antes e além das "obras"
existem os "jovens"; o discípulo de Dom Bosco deve sentir-se "missionário
dos jovens".
A inspiração desse critério ilumina os empenhos eclesiais desejados por
Dom Bosco para a Congregação . São eles: a evangelização dos jovens, sobretudo
pobres e do mundo do trabalho; o cuidado pelas vocações; a iniciativa apostólica
em ambientes populares, particulamente com a comunicação social; e as
missões.
A fim de entender com fidelidade os limites desse critério convém ter presentes
algumas exigências constitucionais em três diferentes níveis complementares:
- escolha preferencial dos destinatários, jovens pobres e,
ao mesmo tempo, aqueles que demonstram germes vocacionais;
-
experiência espiritual e educativa do Sistema Preventivo;
-
capacidade de convocação de numerosos corresponsáveis escolhidos sobretudo
no laicato e entre os próprios jovens.
Trata-se, pois, de um critério complexo mas concreto que nos convida a transcender
a materialidade das obras e a entrar no coração de Dom Bosco para julgar
e programar segundo a angulação específica de sua caridade pastoral.
Esse critério, de fato, desembocou, entre outros, num corajoso "Projeto-África"
que, depois de 15 anos, vê mais de 800 missionários salesianos em 36 países
do continente.
. A dimensão comunitária
Outro ponto vevrálgico da releitura foi o da dimensão comunitária, intrínseca
à vida religiosa, embora - para nós - com peculiar estilo próprio.
Não se tratava, porém, de só intensificar um genuíno "espírito de família"
entre os irmão s - muito sublinhado desde as origens -, mas de insistir na
comunhão especial de responsabilidade na missão : ela é confiada primeiramente
à comunidade, que é seu sujeito responsável.
De aqui o modo peculiar de exercer a autoridade, o aspecto comunitário do
projeto educativo-pastoral, o empenho de o formular, realizar e rever em
comum, de aqui o estímulo para as contribuições pessoais fora de todo individualismo
e de toda independência arbitrária. A comunidade é chamada a um constínuo
discernimento pastoral para em seguida caminhar unida e fiel na realização
apostólica do carisma.
Esse ponto nevrálgico resultou de grande influxo no
longo caminho de renovação .
. A "forma" do Instituto
A "forma" do Instituto (seja ele "clerical", "laical",
"misto", "indiferente"...) comporta alguns traços constitutivos
que exprimem e garantem, também juridicamente, a índole própria e caracterizadora
do carisma. Ela tem, de fato, uma importância teologal e espiritual na vitalidade
e crescimento do carisma: "segundo a nossa tradição - afirmou-se no
texto das Constituições - as comunidades são guiadas por um sócio sacerdote
que, pela graça do ministério presbiteral e pela experiência sacerdotal,
sustenta e orienta o espírito e a ação dos irmão s".
A missão , que dá o tom a toda a vida do Instituto, é de natureza pastoral,
e todo o espírito do Fundador brota da caridade pastoral do seu coração
sacerdotal.
Nosso Instituto não é nem estritamente "sacerdotal",
nem simplesmente "laical", e nem mesmo propriamente
"indiferente". Os sócios são "clérigos" e
"leigos" que vivem "a mesma vocação em fraterna
complementaridade"; cada um tem consciência de ser membro
co-responsável do "todo", antes de considerar-se clérigo ou
leigo. « componentes "sacerdotal" e "laical" da Sociedade
não comportam a adição extrínseca de duas dimensões
confiadas cada uma a categorias de irmão s diferentes entre si,
que caminham paralelamente e somam forças separadas,
mas constituem juntos uma comunidade que é, como vimos, o sujeito
verdadeiro da única missão salesiana. Isso exige uma
formação original da personalidade de cada sócio, de modo que o coração
do "salesiano-clérigo" sinta-se intimamente atraído e envolvido
na dimensão "laical" da comunidade, e o coração do "salesiano-leigo"
sinta-se, por sua vez, intimamente atraído e envolvido naquela "sacerdotal"».
Essa é uma característica unitária ligada à específica "dimensão secular"
do Instituto. Por isso é verdadeiramente importante promover a um só tempo
entre nós uma consciência e um crescimento harmônico dos sócios "clérigos"
e dos sócios "leigos" no espírito da tradição salesiana.
Pois bem, o serviço da autoridade na Congregação está ligado a essa originalidade
da "forma". Desenvolve uma delicada função de identidade no espírito
e de unidade na ação apostólica. Seu papel específico é o de promover
e orientar a "caridade pastoral", centro e síntese do espírito salesiano
e alma de toda a nossa atividade. A graça da Ordenação sacerdotal (que é
"o Sacramento da caridade pastoral") enriquece e avaliza sua capacidade
de serviço e faz com que um genuíno critério "pastoral" oriente
toda a nossa participação na missão evangelizadora da Igreja, que compreende
também a promoção humana e a incisividade na cultura.
Trata-se de uma contribuição a todos os sócios, porque intimamente unido
ao critério oratoriano.
. A descentralização
Estávamos convencidos da urgência de saber encarnar, com metodologia flexível,
a identidade comum na diversidade das culturas locais. Essa é uma árdua
tarefa: exige clareza da identidade na formação , e uma verdadeira sensibilidade
e inteligência de discernimento para as diferenças culturais.
Nós
nos sentíamos plenamente de acordo com o P. Voillaume: "Manifesta-se
hoje uma tendência questionar a unidade de uma Congregação
sob o pretexto de desenvolver as características regionais ou
nacionais das fundações. Essa tendência é ambígua. Legítima
enquanto reação contra o empenho uniforme de uma
expressão unívoca de vida religiosa muito dependente de uma
única mentalidade, arrisca-se de forma não menor a pôr em causa
uma das características do Reino de Deus, que é o fato de
situar-se além de toda cultura, na unidade fraterna do Povo de
Deus, que não deveria conhecer nem fronteiras nem raças".
Um carisma fechado e inflexível aos valores das culturas esclerosa-se e marginaliza-se
em relação ao futuro; mas uma cultura fechada ao desafio dos sinais dos
tempos, ao intercâmbio com as demais culturas e à transcendência do mistério
de Cristo e do seu Espírito, corre o risco de apresentar-se como simples museu
do passado ou como interpretação redutiva da universalidade. Percebe-se aqui
o quanto se tornou hoje delicada e empenhativa a atividade formativa no Instituto.
E, ao mesmo tempo, percebe-se o quanto seja importante um exercício da autoridade
adequadamente descentralizado para garantir nas Províncias e nos grupos
de Províncias homogêneas uma concreta possibilidade de inculturação .
. A Família Salesiana
Convencidos que o Fundador lançara o seu espírito e a sua missão mais
além do nosso Instituto, e que para ele deixara em herança responsabilidades
particulares de animação e coordenação de muitas forças apostólicas, consideramos
que o cuidado daquela que se chama "Família Salesiana" é um dos
grandes caminhos da nossa renovação .
A
"Família Salesiana" é composta de vários grupos instituídos
(Institutos de vida consagrada, Associações laicais ou movimentos), que
partilham - de formas diferenciadas - o espírito e a
missão de Dom Bosco. Isso resulta um campo
vasto e fecundo que vê hoje especiais possibilidades no âmbito do
laicato empenhado. Já estamos caminhando decididamente, seguindo as
pegadas do Fundador, e queremos intensificar e aperfeiçoar essa
opção no próximo Capítulo Geral 24 (1996):
"Salesianos e leigos: comunhão e participação no
espírito e na missão de Dom Bosco".
Urgência de concretitude metodológica
A releitura fundacional foi, em si mesma, uma intensa e não fácil busca
da nossa identidade carismática. Ficamos contentes pelo que se fez e disso
agradecemos ao Senhor.
Devemos acrescentar, porém, que essa tão longa releitura não fechou
o período de busca: absolutamente. Ou melhor, abriu - ela mesma - uma
modalidade de busca ainda mais acelerada e intensa. É como se a releitura
fundacional tivesse desencadeado todas as energias a disposição para uma
maior significatividade e criatividade apostólica.
Não , portanto, uma leitura terminada e já concluída, mas uma espécie de
profecia que relança o processo de renovação iniciado num duplo trilho de
novidade: o da assimilação por todos os irmão s em vista da renovação
espiritual das pessoas e das comunidades, e o do envolvimento operativo
no enfrentamento dos desafios da nova evangelização .
Sabendo com mais clareza e segurança "quem" somos hoje
na Igreja (=releitura fundacional), sentimo-nos interpelados enquanto portadores
de um "carisma de atualidade". Isso exige a especial capacidade
metodológica de projetação e de ação . O caminho que vai da identidade carismática
à atualização da missão hoje (da ortodoxia à ortopraxis) é muito complexo.
Aqui se concentra todo o grande problema pastoral da Igreja, "novo
ardor, nova metolodogia, novas expressões", capacidade de projetação
, seriedade da revisão .
Quanto mais clara for a própria identidade de consagrados, tanto mais exigente
será a busca de uma dinâmica atualizada do carisma.
É por isso que o nosso primeiro Capítulo Geral "ordinário"
de 1990 (CG23), depois dos "Especiais" para a releitura da identidade,
teve como preocupação fazer reviver a missão de Dom Bosco hoje para "educar
os jovens à fé".
Percebemos que a estrada é longa e com inúmeras incógnitas, e que a constância
nesse caminho pastoral será a melhor comprovação da autenticidade da releitura
fundacional.
Sentimos a urgência de promover todo um setor de reflexão teológica que
vá mais além das disciplinas da fé fundamentais e clássicas. Trata-se de
um tipo de "teologia pastoral", que se dobre sobre a vida real entrando
em diálogo também com as ciências humanas (históricas, antropológicas,
filosóficas, sociológicas, pedagógicas, políticas, etc.), levando solidamente
em conta as orientações do Magistério que acompanham a praxe eclesial animada
pelo Espírito do Senhor: essa praxe também precede de per si a reflexão
científica. Uma mentalidade pastoral precisa de muitas contribuições: ao
lado da reflexão teológica de caráter bíblico, histórico, dogmático e litúrgico,
deve saber desenvolver uma apropriada metodologia de abordagem, fruto da reflexão
pedagógica e metodológica que comporta estratégia de ação , estudo e programação
de tempos, modos, itinerário, meios, ou seja, elaboração de projetos nos
quais se passe de uma situação desafiadora a uma solução positiva como
meta a qual se tende.
Quem vive em missão apostólica sente urgência de
qualificar sempre melhor a sua mentalidade pastoral; olha com
atenção para o nascimento de centros de séria "teologia
pastoral": teologia "particular", que não pretende
elevar-se como única interpretação do todo, mas que ilumina
a praxe. Ela "insere-se na vasta área teológica como
parte vital e importante, não , porém, como um todo
ou como único critério válido do todo. A 'pastoral' não procura
mudar a formalidade da teologia; sobretudo, não deve
mudá-la quando volta sua atenção e reflexão para algo
de concreto, urgentemente vital. Se a urgência de reflexão
é precisamente teológica, ou seja, polarizada pela revelação e
pela luz do mistério de Cristo sob a orientação do Magistério,
seria um grave erro privá-la (como infelizmente aconteceu
alguma vez) dessa sua conatural polarização ,
substituindo-a por uma ótica horizontalista que pretendesse
manipular a seu prazer a interpretação do
Cristianismo".
A nossa leitura fundacional levou-nos, assim, a rever e renovar também as
estruturas acadêmicas da nossa Universidade Pontifícia, para que tivessem
maior proponibilidade pastoral. Garantindo sempre uma séria reflexão teológica,
porque é justamente no âmbito de certo entusiasmo dito "pastoral"
que se corre também o risco de entrar por estradas não justas, desvinculando-se
pouco a pouco da autenticidade do carisma.
Animação e governo
A concretitude metodológica em vista de ação apostólica atualizada e
mais incisiva fez surgir em primeiro plano a indispensabilidade de um empenho
de formação permanente para todos os irmão s: assumir com clareza a releitura
fundacional e estimular cada comunidade a uma capacidade de projetação concreta
para a nova evangelização .
Esse
amplo empenho mudou o estilo do exercício da autoridade no governo:
o segredo desse exercício é a competência na animação
. Quantas iniciativas surgiram a respeito! não
se trata de trabalho simples nem a breve termo, mas absolutamente
indispensável; sem ele a releitura fundacional termina na biblioteca.
Constatou-se, assim, que nesta hora de profundas mudanças, o conceito de "formação
" tem o seu significado fundamental e prioritário ("princeps analogatum")
na formação permanente, que toda casa religiosa autêntica torna-se
centro de formação e que a formação inicial deve voltar-se para a permanente
a fim de preparar os formandos para serem sujeitos capazes e empenhados no
embate com os variados e perseguidos desafios do futuro cultural e eclesial.
A mudança epocal chama todos os religiosos a se sentirem de certa forma inscritos
num "segundo noviciado" para que renovem a própria profissão religiosa
segundo a releitura pós-conciliar.
Com fidelidade ao espírito estimula-se a criatividade na missão com sensibilidade
pela multiformidade das situações e levando o governo a se estruturar e
caminhar em vista de um "pluralismo na unidade" e de uma "unidade
no pluralismo".
Uma visita do Espírito do Senhor
Estávamos e estamos convencidos - como já disse - que o Concílio Vaticano
II foi uma visita do Espírito do Senhor à sua Igreja; ele veio provocar um
salto de qualidade em toda a pastoral, partindo da identidade do mistério
da Igreja, de suas relações com o mundo e de sua presença de fermento na
história.
Preparamo-nos para a nossa releitura fundacional nesse clima
de Pentecostes. Tivemos, sem dúvidas, lentidões, resíduos
pré-conciliares, miopias e temores que prolongaram
muito a releitura; quem sabe ainda ficaram cá e lá algumas
zonas escuras a serem eliminadas em harmonia com o conjunto;
consideramos, porém, com simplicidade de fé, que todo o trabalho feito
não se poderia explicar sem a luz, a criatividade, a
visão de futuro próprios de uma especial presença do
Espírito do Senhor. Olhando para trás, relendo as Constituições
renovadas, observando o desenvolvimento da vida do Instituto, suas
transformações e sua vitalidade em todos os continentes, cremos
que o Espírito Santo, com a intervenção materna
de Maria, presenteou-nos com lentes apropriadas e límpidas
para bem reler as nossas origens e relançar-nos para o futuro.
Sentimo-nos no Povo de Deus, chamados pelo Espírito a colaborar, através de
nossa missão específica, no laborioso caminho eclesial em direção ao terceiro
milênio.
Temos uma "carta de identidade" válida e atualizada
Caros irmão s, agradeçamos e exultemos. O Espírito do Senhor nos iluminou
e acompanhou; indicou-nos a via mestra; enriqueceu-nos com um tesouro de vida;
tirou-nos das penas da insegurança e dos desvios e garantiu-nos a nossa identidade
no Povo de Deus; mas, justamente por isso, abriu-nos um imenso campo de trabalho,
onde se deve buscar, labutar, criar, profetizar aquele espírito de iniciativa
e de originalidade que caracterizaram as origens apostólicas da nossa
missão . Maria nos guie, através da nossa releitura fundacional, ao relançamento
do carisma de Dom Bosco em direção às imensas possibilidades e esperanças
do terceiro milênio.
Com Mamãe Margarida olhemos para o futuro com intuição e fecundidade
maternas.
Com votos de comprometimento.
Cordialmente,
P. Egídio Viganò