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Como reler o carisma do Fundador (ACG 352)

CARTAS DO REITOR-MOR - EGIDIO VIGANÒ


Queridos irmãos,

hoje, finalmente, teve início de forma solene, em Turim, na basílica de  Nossa Senhora Auxiliadora, o processo oficial de beatificação  e canonização  de Mamãe Margarida. Em Valdocco, onde ela testemunhou - pode-se dizer heroicamente  por bem  dez anos - a sua generosa colaboração  com o filho João  para dar  vida  ao providencial carisma salesiano da Obra dos oratórios. Sabe o nosso Pai e  Fundador  quanto  isso tenha custado à Mãe e quanto ela mesma  tenha  contribuído para o sucesso, estilo, ambiente de família, espírito de bondade e sacrifício, que caracterizam ainda hoje toda a instituição  salesiana de Dom Bosco. Agradeçamos ao Senhor e rezemos para que a causa possa caminhar positivamente e  com rapidez.

            Ofereço-vos, por ocasião  de data tão  significativa, a reflexão  sobre  um argumento  que me foi solicitado para o 20º Encontro do Instituto de  Teologia da  Vida Religiosa "Claretianum", aqui em Roma no dia 16 de dezembro de  1994. Deram-me  o  delicado e importante tema "A releitura fundacional  feita  pelos Salesianos".  O desenvolvimento não  foi pensado diretamente para nós, mas  em, certo sentido, pode resultar muito útil pensá-lo juntamente com outros  consagrados. 

            Ao apresentar-vos os conteúdos dessa minha conversação  entendo convidar-vos a fazer uma atenta consideração  de síntese histórico-carismática que sirva para iluminar salesianamente os caminhos de renovação  que estamos  percorrendo depois do Concílio Vaticano II.

Uma experiência vivida

            A ótica desta minha relação  é substancialmente a de uma espécie de  cronistória  repensada. O tema de "como reler hoje" o carisma é desenvolvido  com uma ótica "de fato", não  tanto para indicar "como" se deva fazer, quanto  para dizer o que fez o meu Instituto. Trata-se de uma experiência que eu vivi  pessoalmente desde o Concílio Vaticano II até hoje.

            A experiência vivida não  é tese a defender, mas realidade de vida - confortada  por decênios de experimentação  - que pode também  oferecer  sugestões (em parte comprovadas) para saber reler sempre melhor as próprias origens  espirituais.

Duas convinções básicas

            A  releitura do carisma do nosso Fundador está nos empenhando já há  bem trinta anos. Dois grandes fachos de luz nos ajudaram nesse trabalho: primeiro, o  Concílio Ecumênico Vaticano II, segundo, a transformação  epocal desta  hora de aceleração  histórica.

            Partimos da convicção  que o Concílio é uma visita histórica do  Espírito Santo  à Igreja de Cristo para uma nova hora de sua missão   no mundo:  o  maior acontecimento pastoral do século XX em vista de uma renovação  autêntica.  Nele devia-se buscar luzes e orientações também para a renovação  da Vida Religiosa. Tratava-se  de  centrar-se  sobre  pontos  estratégicos  da  grande   mensagem conciliar, aprofundá-los, assumi-los e aplicá-los à releitura do nosso  carisma.

            Procurou-se aplicar, particularmente à luz de quanto dito na Lumen  gentium, aquilo que o decreto Perfectae caritatis solicitava no n. 2: a "accommodata renovatio" com suas duas componentes de "retorno às fontes" e  "adaptação  às mudadas condições dos tempos".

            A complementaridade dos dois critérios devia evitar a ameaça de fixismo, de  esclerose e de formalismo e, ao mesmo tempo, evitar a ruptura com as  origens.

            A  aplicação  desses dois critérios, simples e claros no  enunciado,  demonstrou-se, porém, muito complexa na prática.

            A  transformação  epocal, já descrita com aguda percepção   prospética  na Constituição  conciliar Gaudium et spes, apresentara-se com vigor sobretudo  em algumas  zonas ocidentais onde nosso Instituto atua com  numerosas  presenças. Enfrentava-se  uma crescente problemática de novidades culturais que  influíam fortemente  na missão   específica do Instituto e também, ao menos em parte,  no estilo de vida religiosa. De outra parte, já se notavam impulsos de autenticidade duvidosa, que podiam fazer desviar ou esvaziar um sadio processo de renovação .

            A  renovação  cultural não  podia ser excluída e desconhecida,  mas  devia ser confrontada com a novidade evangélica inerente a um carisma verdadeiro.  E isso  abria um horizonte de trabalho muito vasto e delicado. Foi então  que  se formulou a famosa expressão  : "Com Dom Bosco e com os tempos, e não  com os tempos de Dom Bosco!".

            O  fato de ter consciência clara desse inelutável desafio levou os  responsáveis  pelo Instituto a dar extraordinária importância ao  Capítulo  Geral Especial desejado pela Sé Apostólica. Houve o esforço de prepará-lo com seriedade  verdadeiramente inédita, com a participação  de todas as Províncias e  de todos os irmão s. Organizaram-se equipes de especialistas para uma análise  bem detalhada dos temas vitais a serem enfrentados e se predispôs também um esboço de reelaboração  das mesmas Constituições. Foram redigidos acuradamente um conjunto de bem 20 pequenos volumes para uso dos capitulares. Pensava-se na grave responsabilidade,  quase  de "refundação ": aquilo que Dom  Bosco  tinha  feito "pessoalmente" deveria ser repensado e reelaborado, em certo sentido, "comunitariamente", em relação  às exigências da transformação  epocal e em plena fidelidade às origens.

            Muito ajudou, ao lado de estudos históricos, uma análise  séria,  embora sintética, dos questionamentos das mudanças culturais (secularização , socialização , personalização , libertação , inculturação , aceleração  da história,  promoção  da mulher, etc.).

            Jamais se fizera um trabalho tão  vasto e realista.

Os caminhos a seguir

            A  releitura fundacional não  podia ser simplesmente um estudo,  mais  ou menos científico, das fontes, mas discernimento espiritual, feito por discípulos empenhados a partir do interior da mesma experiência vocacional.

            É a consideração  de quem sabe perceber a alma do próprio Instituto,  sua intencionalidade, seus dinamismos, seu modo de seguir Cristo e de trabalhar na Igreja, e de amar os jovens no mundo assim como eles são  . O retorno às  fontes não   devia ser um passeio arqueológico através de documentos antigos, mas  uma revisitação  dos momentos de fundação  e do coração  do Fundador em sua experiência original de discípulo do Senhor. Devia ser uma releitura orgânica e  dinâmica  que implicasse auto-consciência de comunhão  com o Fundador,  mediante  a experiência coletiva de todo um Instituto que, através dos tempos compartilhou seu  espírito e missão  . Era preciso saber harmonizar, com dosagem  apropriada, tanto o momento histórico como o teologal e o cairológico.

            Foi  necessário   percorrer caminhos complementares  e  interdependentes para encaminhar essa releitura procurando, em cada um deles, uma  contribuição  específica. Os principais caminhos seguidos foram:

            a.  O  caminho histórico: o carisma é uma experiência vivida e  não   uma teoria abstrata. Fez-se, por isso, um sério estudo das fontes que se referem à pessoa do Fundador e à mesma fundação : o contexto cultural e social e seu  influxo sobre o Fundador; sua vida e suas obras; as pessoas que tiveram influência sobre ele e com as quais teve especiais contatos; seus escritos, etc.

            b. O caminho experiencial: adquire importância e concretitude na  releitura fundacional, a experiência vivida pela grande comunidade dos  discípulos, os  valores  que encarnaram a partir da consciência e da  responsabilidade  da mesma vocação . O caminho de fidelidade constitui uma espécie de "sensus  fidelium" congregacional. Faltando a experiência perseverante e fiel dos  seguidores do Fundador, arrisca-se

 .a ser sujeitos de contínuas mudanças de identidade, em busca de uma  modernização   forçada do carisma segundo a moda do tempo, confundindo o  que  é caduco com o que é essencial;

 .a deixar o fundador de lado, com o pretexto de que suas finalidades e objetivos já não  são   atuais,

            c. O caminho dos sinais dos tempos: o caminho "histórico" e o "experiencial" permitem aproximar-se, com mais sensibilidade e tranqüilidade, também da contribuição  dos sinais dos tempos. Como já disse, ignorá-los seria condenar o carisma  a permanecer fechado - contra sua natureza - em um museu. Se,  de  um lado  os  sinais dos tempos exigem aprofundamentos e adaptações por  parte  do Instituto,  de outro permitem uma compreensão   nova e de verdadeira  atualidade do dom do Espírito. Ajudam a perceber até para quais horizontes o Senhor impele sua Igreja e seus carismas.

            d. O caminho espiritual: é um caminho que não  exclui nenhum dos anteriores, mas que os unifica e incorpora a partir de uma atitude e uma ótica fundamentais: discernimento da vontade do Senhor, obediência ao seu chamado ao longo da transformação  da história. Podem percorrer esse caminho somente  pessoas "espirituais",  que cultivem uma especial docilidade ao Espírito. Ele  permite ultrapassar o contexto sócio-cultural vivido pelo Fundador, para fazer  brotar no  hoje suas intenções evangélicas com suas intuições fundantes, a  ponto  de realizá-las no contexto atual e nos novos tempos, e transformá-las em  "cultura" de atualidade.

A reelaboração  das Constituições

            O  empenho  de reelaborar a fundo o texto constitucional teve  um  papel importante de concretitude e de guia dos trabalhos em nossa releitura fundacional. De início existiram resistências por vários motivos; e mesmo depois, com o  trabalho já encaminhado, alguém pensava que bastasse retocar aqui e ali  as Constituições  anteriores. Resultou uma decisão   muito sábia a audácia  de,  na fidelidade, embarcar no repensamento e na reelaboração  de tudo.

            Evidentemente o delicado trabalho foi impostado segundo as novas  orientações conciliares. Devia-se trabalhar para se chegar a um "Codigo  fundamental" no qual descrever com autenticidade a identidade, os valores evangélicos, a  índole própria, a dimensão   eclesial, as tradições sadias e, também, as  indispensáveis  normas  jurídicas, necessárias para garantir o caráter,  fins  e meios do Instituto.

            Diversamente  da  normativa anterior, o Ecclesiae Sanctae  quis  que  as Constituições  renovadas fossem ricas de princípios evangélicos, teológicos  e eclesiais; não , contudo, como agregado artificial introduzido exteriormente  e a nível teórico, mas como percepção  e explicitação  emanadas da mesma  vivência do Fundador e de todo o seu projeto de vida. Elas deviam conter a síntese  integral  de  um projeto original de vida consagrada,  indicando  os  princípios substanciais  com que o Fundador quer que os seus sejam discípulos  de  Cristo com um determinado senso eclesial.

            Era  preciso chegar nas Constituições a uma integração   harmônica  entre inspiração   evangélica,  criteriologia apostólica e  concretitude  estrutural, pondo à vista, para além das exigências institucionais, a experiência histórica de Espírito Santo vivida pelo Fundador e por ele transmitida ao Instituto.

            Dom Bosco, nosso Fundador, esforçara-se ao máximo para transfundir a sua experiência  pessoal nas Constituições (nos limites do que então  se podia  fazer),  para  deixar um "testamento vivo" que fosse como espelho  refletor  das linhas mais características de sua feição  espiritual e apostólica. Ele  mesmo, com razão , tinha podido afirmar que "amar Dom Bosco é amar as  Constituições"; e, entregando uma cópia delas ao P. Cagliero de partida para a Patagônia  como chefe de sua primeira expedição  missionária, exclamou com comovida  persuasão  : "aqui está Dom Bosco que vai convosco".

            Na reelaboração  das Constituições, procurou-se justamente, enviar o mais possível à realidade espiritual do Fundador, aos seus escritos mais carismáticos, à sua experiência comprovada, como "modelo" de onde deriva a ótica genuína e a chave indispensável de releitura fundacional.

            Esse trabalho não  foi fácil; durou mais de um decênio, mas constitui  de fato  a síntese mais clara e autorizada de nossa releitura  fundacional.  Tudo isso  foi enriquecido com um "comentário" autorizado, artigo por artigo,  como válido subsídio para a reta interpretação  das Constituições. Elaborou-se, também,  um "livro de governo" - em dois volumes - um para o Provincial  e  outro para o Superior local - em vista da renovação  do exercício da autoridade.  Pôde-se também redigir uma apropriada "Ratio institutionis" para a formação  inicial e permanente dos irmão s.

O espírito do Fundador

            Para a reelaboração  das Constituições foi dada particular atenção  à  sua estruturação   orgânica, numa visão   global e unitária. Um projeto de  vida  não  suporta  rupturas que escondam ou prejudiquem o alcance de um plano que é,  em si,  vitalmente orgânico. Mas, para que isso fosse feito, era  necessário  que elucidássemos dois conceitos postos à base de tudo: "consagração " e "missão  " e suas recíprocas relações. Pode-se dizer que se desencadeou então  uma verdadeira batalha capitular; que não  se resolveu muito facilmente, como veremos, mas, no fim, em sua solução , encontramos a chave da organicidade.

            Entretanto, como elemento independente e basilar (pelo menos para o trabalho  que  se devia fazer), desejou-se garantir a descrição  dos  traços  mais significativos  da fisionomia espiritual do Fundador. No interior dos  grandes valores evangélicos, comuns a todos os Institutos de vida consagrada, era preciso  saber individuar o estilo quotidiano, aas atitudes pessoais e  comunitárias, as modalidades de convivência e de trabalho, ou seja aquele clima e  atmosfera de casa, que constitui a fisionomia própria; decerto, mesmo nisso  era preciso  hierarquizar  as componentes, porque se tratava de uma  releitura  em profundidade  com um próprio centro propulsor, que não  devia tornar-se  teoria lógica mas permanecer descrição  tipológica.

            Foi colocado na importante 1ª Parte do novo texto constitucional um  capítulo todo novo de 12 artigos (de 10 a 21) que condensam o que se  considerou a substância do "espírito de Dom Bosco".

            O Vaticano II - como já dissemos - convidara os religiosos a  concentrar a própria atenção  na figura do Fundador, como expressão   original da multiforme santidade  e vida evangélica da Igreja. Cada Fundador nasceu dEla e  para  Ela viveu.

            Paulo VI recordou a todos: "O Concílio insiste na obrigação , para  religiosos  e religiosas, de serem fiéis ao espírito de seus Fundadores,  às  suas intenções evangélicas, ao exemplo de sua santidade, vendo nisso um dos princípios da renovação  em curso e um dos critérios mais seguros do que cada  Instituto deve eventualmente realizar. Porque, se o chamado de Deus se renova e  se diferencia de acordo com as circunstâncias de lugar e de tempo, exige  contudo orientações constantes".

            Usamos a terminologia "espírito" mais que "espiritualidade", por fidelidade à historicidade e à vivência do Fundador como "kairòs" que se fez modelo; a "espiritualidade", diversamente, parece referir-se a conceitos mais  abstratos.

            O  trabalho realizado constitui hoje certamente um dos valores de  nossa releitura  fundacional;  estamos convencidos de agradar ao próprio  Dom  Bosco que, falando com humildade do texto constitucional por ele redigido segundo as normativas  da época, dizia que o texto podia ser considerado como um  "rascunho"  daquilo  que ele mesmo desejava, mas que seria "passado a  limpo"  pelos seus filhos.

            Concentrar  a atenção  no espírito do Fundador significava privilegiar  a interioridade e as atitudes do coração , ter os mesmos sentimentos com que  ele recopiara os de Cristo.

            Isso também faz entender o salto de qualidade desejado pelo Concílio  na concepção  das Constituições: de um texto mais normativo e jurídico, à  síntese genial e estimulante da experiência evangélica de um "chefe-de-escola" de santidade e de apostolado.

            O espírito do Fundador está certamente ligado também à cultura do tempo; nela se manifesta transcendendo-a, a ponto de constituir um conjunto de traços espirituais possíveis de encarnação  em outras culturas. Ele pertence, por  isso,  à transcendência e à adaptabilidade do carisma. Sua  transmissão  ,  porém, não   acontece  simplesmente com palavras, mas com uma tradição   continuada  de vida ligada de fato a um longo e delicado processo de sadia inculturação .

Da "missão  " à redescoberta do "carisma"

            Já acenei ao debate capitular sobre as noções fundamentais de "consagração "  e "missão  ". O aprofundamento da relação  recíproca entre  esses dois  aspectos vitais esteve no centro de nossa releitura e constituiu uma base para a síntese  conclusiva. O Concílio bem interpretado levou-nos a uma  convergência convicta e dinâmica.

            Iniciados os trabalhos do Capítulo Geral Especial foi estabelecida,  entre  outras,  uma comissão   dedicada especificamente ao estudo do  "carisma  do Fundador".  Ela encontrou grandes dificuldades e, depois de certo  tempo,  foi dissolvida. Por que?

            Os motivos fundamentais foram de duas espécies, entre si  contrastantes. Alguns não  queriam o estudo do carisma, que poderia abrir o futuro a aventuras arbitrárias;  outros,  diversamente, não  o queriam porque  poderia  sacralizar elementos  culturais e transitórios do século passado. A soma dos dois  grupos prevaleceu numericamente; não  havia ainda mentalidade suficientemente iluminada a respeito.

            É  útil recordar também que nos documentos do Concílio jamais se  usa  a expressão   "carisma" do Fundador, embora sejam indicados os elementos  característicos  da índole própria. O primeiro uso oficial da expressão   "carisma"  do Fundador é encontrado na Exortação  apostólica Evangelica testificatio de Paulo VI, de 1971. Encontra-se, depois, esclarecimento autorizado mais específico e descrição  mais definida no documento Mutuae relationes de 1978.

            De outro lado, era convicção  que, num momento de rápidas mudanças, o aspecto que se fazia mais sentir como questionamento era o da "missão  ".

            Mas, em que consiste a "missão  "? era muito fácil esquecer a sua natureza teológica  para restringi-la ao âmbito operativo das atividades. E  assim  uma mentalidade  de tipo "essencialista" afirmava o primado ontológico do tipo  de "consagração "  que  não  poucos pensavam que devia preceder e orientar  todo  o projeto.

            Um  problema nada fácil, alimentado entre os capitulares  de  concepções redutivas e impróprias tanto do conceito de "consagração " como de "missão  ".

            O caminho que nos abriu o sentido autêntico da releitura do carisma  foi o de entender o significado desejado pelos Padres conciliares no famoso  verbo "consecratur"  da Lumen gentium n. 44. Foi um trabalho longo e  debatido  para  se chegar a mudar a mentalidade sobre o conceito de "consagração " religiosa.

            Antes, ela era identificada com os aspectos mais típicos da interioridade (oração , votos) e se considerava como seu sujeito agente o indivíduo  religioso  ("eu me consagro"). Isso levava a prescindir do verdadeiro conceito  de carisma  e a colocar em segunda linha a "missão  " com suas exigências, como  se se  tratasse apenas da ação  e das obras e não  fosse teologicamente inerente  à própria consagração . Isso tudo influia evidentemente no próprio modo de estruturar  as Constituições. Houve um debate muito sofrido para superar esse  dualismo entre "consagração " e "missão  ", que atingia na raiz a identidade de nossa vocação  apostólica.

            Muito serviu o que afirma o Concílio no n. 8 do Decreto Perfectae  caritatis e, sobretudo a consideração  de que é Deus o agente ativo tanto da consagração   como da missão  . Dessa forma repensou-se o significado da  Profissão    e dela se elaborou uma nova fórmula.

            Em  particular aprofundou-se o nexo teológico inseparável entre  "consagração " e "missão  ", dando um sentido renovado a todo o projeto da índole  própria  e abrindo a possibilidade de repensar a estrutura  constitucional.  Essa visão   de nossa "consagração  apostólica" foi sintetizada num artigo das Constituições  que diz: "Nossa vida de discípulos do Senhor é uma graça do  Pai  que nos  consagra com o dom do seu Espírito e nos envia para sermos apóstolos  dos jovens. Com a profissão   religiosa oferecemo-nos a nós mesmos a Deus para caminhar no seguimento de Cristo e trabalhar com Ele na construção  do Reino.  Missão   apostólica, comunidade fraterna e prática dos conselhos evangélicos são   os elementos  inseparáveis da nossa consagração , vividos num único  movimento  de caridade para com Deus e para com os irmão s. A missão   dá a toda a nossa  existência o seu tom concreto, especifica a tarefa que temos na Igreja e determina o lugar que ocupamos entre as famílias religiosas".    

            Trata-se,  então , de viver uma existência cristo, ao mesmo tempo  consagrada e apostólica, ou melhor, apostólica porque consagrada. O dom do Espírito ao professo comporta nele uma "graça de unidade" que o torna capaz de uma síntese  vital entre a plenitude da consagração  e a autenticidade da  operosidade apostólica. "Esse tipo de vida - afirma o Capítulo Geral Especial - não  é algo de fixo e pré-fabricado, mas um projeto em construção  permanente. Sua  unidade não  é estática, mas unidade em tensão   e em necessidade contínua de equilíbrio, revisão  , conversão   e adaptação ".

            Essa graça de unidade, fruto da caridade pastoral, foi recentemente descrita também pelo Santo Padre na Exortação  apostólica Pastores dabo vobis.  E o  mesmo João  Paulo II numa alocução  feita aos Capitulares do nosso CG23 a  1º de maio de 1990: "Agrada-me - disse - sublinhar, antes de tudo, como  elemento fundamental, a força de síntese unitiva que brota da caridade pastoral. Ela  é fruto da potência do Espírito Santo, que garante a inseparabilidade vital  entre  união  com Deus e dedicação  ao próximo, entre interioridade  evangélica  e ação   apostólica, entre coração  orante e mão s operantes. Os dois grandes  Santos,  Francisco de Sales e João  Bosco, testemunharam e fizeram  frutificar  na Igreja essa esplêndida 'graça de unidade'. Seu defeito abre um perigoso espaço para os ativismos ou intimismos, que constituem uma insidiosa tentação  para os Institutos de vida apostólica".

            Encontramos,  nessa visão   de síntese vital, a centelha inicial de  nossa identidade, que brilha lá onde tudo começa, onde explode a amizade e se  ratifica a aliança, onde palpita a graça de unidade. Trata-se do encontro de  dois amores, de duas liberdades que se fundem: O "Pai que nos consagra" e "nos  envia"  e nós que "nos entregamos totalmente a Ele" na aceitação  do  "envio".  A  iniciativa e a possibilidade mesma da aliança apostólica provém de Deus, nessa recíproca fusão   de amizade, mas é confirmada por nossas respostas livres:  foi Ele quem nos chamou, enviou e ajudou a responder, mas somos nós que nos entregamos e  nos fazemos "missionários".

            Para  nós,  o termo "consagração " sublinhava sobretudo a  iniciativa  de Deus:  é Ele quem consagra! Sabíamos bem que - em seus conteúdos -  o  próprio termo "consagração " não  é de per si unívoco; diferencia-se efetivamente segundo  vários níveis de vida eclesial. não  entramos de imediato  na  consideração  dessas diferenciações, deixando para a elaboração  das Constituições aquilo que o termo significaria para nós em concreto.

            Interessava-nos evidenciar por primeiro o salto de qualidade da parte da iniciativa de Deus: "consecratur a Deo"!

            Esse é o salto de qualidade que nos abriu os horizontes.

            Fomos levados, nessa ótica de consagração  apostólica, a contemplar  também o Fundador: Deus, que o escolheu e guiou, fez da sua existência em  missão   uma  "experiência de Espírito Santo" a ser continuada e incrementada no  tempo da Igreja.

            Eis-nos,  assim, diante de uma visão   teologal do "carisma do  Fundador": "uma  experiência do Espírito", transmitida e constantemente  desenvolvida  em sintonia com o Corpo de Cristo em contínuo crescimento... com uma índole  própria  que comporta também um particular estilo de santificação  e de  apostolado".

            O elemento dinâmico que permitiu amadurecer essa categoria teológica  de "carisma"  foi justamente o reconhecimento da iniciativa divina na  "consagração " como ação  específica de Deus. De fato, essa foi uma verdadeira reviravolta conciliar, que fez repensar o significado da Profissão   e a obra  específica do  Fundador. Serviu também para dar o nome de "vida consagrada" aos  Institutos, que eram antes chamados de "estados de perfeição ".

            "Consagração  apostólica" e "carisma" tornaram-se, para nós, duas categorias  teológicas que se sobrepõem e se permutam reciprocamente.  Trata-se  com efeito, de uma iniciativa exclusiva de Deus, que não  se enfraquece num genericismo  descaracterizado, mas consiste numa intervenção  peculiar que  determina uma  missão    própria e um projeto evangélico de vida para dar  uma  fisionomia concreta ("estilo de santificação  e apostolado") ao Instituto.

            Pode-se dizer que a visão   conciliar de "consagração " comporta uma  ótica de  iniciativa do Espírito Santo que, aplicada à luta histórica  da  fundação , manifesta-nos a substância mesma do "carisma" dado, tanto ao Fundador como  ao Instituto, que tem como fonte permanente de sua continuidade a profissão   religiosa de cada um dos sócios.

             Embora tenhamos partido com exclusão   temporária da categoria  "carisma" em nossa releitura fundacional, nela aproamos seguramente, através do aprofundamento providencial do acontecimento "consagração " segundo o Concílio.

A duração  e os atores da releitura

            Podemos  considerar, "grosso modo", quatro etapas pelas quais  passou  a nossa releitura: o Capítulo Geral Especial e os três sucessivos Capítulos  Gerais; trata-se praticamente de duas intensas décadas de trabalho: dos anos '70 aos anos posteriores a 1990.

            -O CG20 (10 de junho de 1971 a 5 de janeiro de 1972: sete meses!) foi o Capítulo "especial" desejado pelo Motuproprio Ecclesiae sanctae e a etapa mais longa e trabalhosa de repensamento e reelaboração  dos elementos da identidade; continua o Capítulo fundamental de todo o trabalho realizado.

           -O CG21 (31 de outubro de 1977 a 12 de fevereiro de 1978) foi um  tempo ulterior de revisão   e de consolidação . Completou alguns aspectos peculiares da nossa  identidade (como o Sistema Preventivo, o papel do Diretor, a figura  do Salesiano  Coadjutor) em harmonia com a doutrina e as orientações do  Vaticano II,  e prolongou por outro sexênio a experimentação  das Constituições  renovadas.

            -O CG22 (de 14 de janeiro a 12 de maio de 1984) constitui a última contribuição , que leva a termo a experimentação  vivida ao longo de dois  sexênios e  entrega à Congregação  as Constituições e Regulamentos de forma  renovada  e orgânica.

            -O CG23 (de 4 de março a 5 de maio de 1990) diferencia-se dos três  Capítulos Gerais anteriores porque propriamente "ordinário". Os três  anteriores pertencem,  de  algum modo, à categoria do Capítulo Geral "Especial",  por  se referirem globalmente à identidade do carisma com variados argumentos a  serem discernidos. O CG23, diversamente, trata só de um argumento concreto, escolhido para intensificar a caminhada de renovação . Pode ser interessante  observar que,  se os três Capítulos "Especiais" aproam com clareza numa  identidade  já redescrita  nas Constituições, o CG23 lança a identidade carismática no  campo de  uma acelerada evolução  em vista de uma ortopraxis da  missão  ,  recorda-nos que a releitura da identidade não  fecha, mas abre a porta com mais coragem, na busca de empenhos a serem inventados na nova evangelização . Portanto: uma  releitura também em vista de uma melhor busca em favor da missão  .

            É interessante observar que as quatro etapas constituem, pode-se  dizer, um único processo contínuo e complementar. Isso significa que o texto reelaborado  transcende não  só o empenho de grupos resritos de determinados  irmão s, mas os de cada um dos quatro Capítulos Gerais. Em cada um deles, separados  um do outro por seis anos, mudou de fato uma boa parte dos membros e, a cada vez, foi uma novidade de experiência vivida e refletida; pode-se aquietar, nos  Capítulos que se seguiram, o eventual influxo de elementos anteriores que tivessem sido fruto de consideração  circunstancial; uma mais profunda e  prolongada reflexão  pôde corrigir imprecisões ou eventuais ambigüidades; o tempo fez amadurecer o aprofundamento de aspectos delicados, enquanto a aceleração  das  mudanças  levou  a saber distinguir mais claramente os valores  permanentes  dos caducos, aqueles de identidade  dos de extração  apenas cultural, aumentando  a consciência da dimensão   eclesial e mundial do projeto evangélico de Dom Bosco.

Pontos nevrálgicos no processo de discernimento

            As Constituições, no visual conciliar do Ecclesiae sanctae, deviam ser a apresentação  autorizada de um projeto de vida evangélica; pedia-se nelas indicação  dos princípios fundamentais da sequela de Cristo, sua dimensão   eclesial, sua  originalidade carismática, as tradições sadias e as estruturas  adequadas de serviço.

            Elas  apresentam,  de fato, uma integração  harmoniosa  entre  inspiração  evangélica e concretitude estrutural. São   um documento fundamental do  Direito particular  da  Congregação . Mais do que estabelecer  prioritariamente  normas detalhadas  a serem observadas, elas descrevem principalmente  uma  modalidade espiritual e apostólica a testemunhar segundo o espírito das Bem-aventuranças. Ajudam  a reler o mistério de Cristo na ótica do Fundador, para nós, na  ótica salesiana de Dom Bosco. Repensou-se a sua estrutura geral segundo  ordenamento e estilo que convidam à leitura orante e estimulam ao empenho de vida. Se quem a medita o "faz na fé", ou seja, com olhos "novos", tira dela luz e força.

            Foram  seguidos alguns critérios orientadores, compartilhados  -  também após sofridas discussões -, que podem ser considerados como pontos nevrálgicos do caminho percorrido. Além do senso vivo do Fundador, de que já falei, enumero os seguintes:

            . O alcance da profissão   religiosa

            A  releitura  do carisma despertou sobretudo a consciência de  uma  hora germinal para a vida consagrada, com um empenho global de reinício para lançar de novo o projeto do Fundador. Essa sensibilidade de relançamento trouxe  consigo a recuperação  do significado vital da Profissão   religiosa.

            Compreendeu-se que não  se pode reduzir a profissão   somente à emissão   dos três  votos, como se fossem idênticos em todos os Institutos  de  consagração . não   se tratava de escrever nas Constituições uma espécie de  pequeno  tratado genérico de vida consagrada, mas oferecer uma descrição  tipológica daquilo que o  Concílio  chama de "índole própria" do projeto evangélico  professado.  Era preciso  descrever  os traços espirituais e as atitudes existenciais  que  nos devem distinguir e caracterizar no Povo de Deus. Esses aspectos  supõem e exigem,  sem  dúvida, os elementos constitutivos de toda vida cristo,  que  temos necessariamente em comum com os demais fiéis e religiosos.

            A  índole própria é constituída por aspectos e colorações  existenciais, descritos  e precisados no texto constitucional e assumidos explicitamente  na profissão   como praxe da sequela de Cristo. Coisa, de fato,  nem insignificante nem negligenciável para os professos. Para nós, o modo de ser discípulos e  de viver o Batismo é o de praticar nossa "Regra de vida". Para sermos bons  cristão sdevemos viver como bons salesianos. "Não  existem dois planos -  dizia-nos já  o CGE -: o da vida religiosa, um pouco mais acima, e o da vida cristo,  um pouco  mais  abaixo.  Para  o  religioso,  testemunhar  o  espírito  das  bem-aventuranças com a profissão   é a sua única maneira de viver o batismo e de ser discípulo do Senhor".

            Na profissão   religiosa descobrimos, em definitivo, o significado vivo  e global da nossa especial Aliança com Deus.

            . O critério oratoriano

            Refere-se  igualmente  ao problema dos destinatários: ponto  crucial  no Capítulo Geral Especial. Dom Bosco teve como prioridade, a obra dos  Oratórios com seus destinatários privilegiados. Em nosssa releitura do carisma o primeiro  Oratório  de Valdocco foi assumido como modelo apostólico  de  referência. Esse  modelo não  se identifica com uma determinada estrutura  ou  instituição , mas comporta uma específica ótica pastoral para julgar as presenças existentes ou a serem criadas.

            No  centro deste "coração  oratoriano" há a predileção  pelos jovens,  sobretudo os mais necessitados e das classes populares; antes e além das "obras" existem os "jovens"; o discípulo de Dom Bosco deve sentir-se "missionário  dos jovens".

            A inspiração  desse critério ilumina os empenhos eclesiais desejados  por Dom Bosco para a Congregação . São   eles: a evangelização  dos jovens,  sobretudo pobres e do mundo do trabalho; o cuidado pelas vocações; a iniciativa  apostólica  em  ambientes populares, particulamente com a comunicação  social;  e  as missões.

            A  fim de entender com fidelidade os limites desse critério  convém  ter presentes algumas exigências constitucionais em três diferentes níveis complementares:

- escolha preferencial dos destinatários, jovens pobres e,

  ao mesmo tempo, aqueles que demonstram germes vocacionais;

- experiência espiritual e educativa do Sistema Preventivo;

- capacidade de convocação  de numerosos corresponsáveis escolhidos sobretudo

  no laicato e entre os próprios jovens.

            Trata-se,  pois, de um critério complexo mas concreto que nos convida  a transcender a materialidade das obras e a entrar no coração  de Dom Bosco  para julgar e programar segundo a angulação  específica de sua caridade pastoral.

            Esse critério, de fato, desembocou, entre outros, num corajoso "Projeto-África"  que, depois de 15 anos, vê mais de 800 missionários salesianos em  36 países do continente.

            . A dimensão   comunitária

            Outro  ponto vevrálgico da releitura foi o da dimensão   comunitária,  intrínseca à vida religiosa, embora - para nós - com peculiar estilo próprio.

            Não  se tratava, porém, de só intensificar um genuíno "espírito de  família" entre os irmão s - muito sublinhado desde as origens -, mas de insistir na comunhão  especial de responsabilidade na missão  : ela é confiada  primeiramente à comunidade, que é seu sujeito responsável.

            De  aqui o modo peculiar de exercer a autoridade, o aspecto  comunitário do  projeto educativo-pastoral, o empenho de o formular, realizar e  rever  em comum, de aqui o estímulo para as contribuições pessoais fora de todo  individualismo e de toda independência arbitrária. A comunidade é chamada a um constínuo discernimento pastoral para em seguida caminhar unida e fiel na realização  apostólica do carisma.

            Esse  ponto  nevrálgico resultou de grande influxo no longo  caminho  de renovação .

            . A "forma" do Instituto

            A "forma" do Instituto (seja ele "clerical", "laical", "misto", "indiferente"...) comporta alguns traços constitutivos que exprimem e garantem,  também juridicamente, a índole própria e caracterizadora do carisma. Ela tem,  de fato, uma importância teologal e espiritual na vitalidade e crescimento do carisma: "segundo a nossa tradição  - afirmou-se no texto das Constituições -  as comunidades  são   guiadas por um sócio sacerdote que, pela graça do  ministério presbiteral  e pela experiência sacerdotal, sustenta e orienta o espírito e  a ação  dos irmão s".

            A missão  , que dá o tom a toda a vida do Instituto, é de natureza  pastoral,  e todo o espírito do Fundador brota da caridade pastoral do seu  coração  sacerdotal.

            Nosso  Instituto não  é nem estritamente "sacerdotal",  nem  simplesmente "laical",  e nem mesmo propriamente "indiferente". Os sócios são   "clérigos"  e "leigos"  que vivem "a mesma vocação  em fraterna complementaridade";  cada  um tem consciência de ser membro co-responsável do "todo", antes de considerar-se clérigo  ou  leigo. « componentes "sacerdotal" e "laical" da  Sociedade  não  comportam a adição  extrínseca de duas dimensões confiadas cada uma a categorias  de irmão s diferentes entre si, que caminham paralelamente e  somam  forças separadas,  mas constituem juntos uma comunidade que é, como vimos, o  sujeito verdadeiro da única missão   salesiana. Isso exige uma formação  original da personalidade de cada sócio, de modo que o coração  do "salesiano-clérigo"  sinta-se  intimamente  atraído e envolvido na dimensão   "laical" da comunidade,  e  o coração  do "salesiano-leigo" sinta-se, por sua vez, intimamente atraído e  envolvido  naquela "sacerdotal"». Essa é uma característica unitária ligada  à específica "dimensão   secular" do Instituto. Por isso é verdadeiramente  importante promover a um só tempo entre nós uma consciência e um crescimento harmônico dos sócios "clérigos" e dos sócios "leigos" no espírito da tradição  salesiana.

            Pois bem, o serviço da autoridade na Congregação  está ligado a essa originalidade da "forma". Desenvolve uma delicada função  de identidade no espírito  e  de unidade na ação  apostólica. Seu papel específico é o de  promover  e orientar a "caridade pastoral", centro e síntese do espírito salesiano e  alma de toda a nossa atividade. A graça da Ordenação  sacerdotal (que é "o Sacramento da caridade pastoral") enriquece e avaliza sua capacidade de serviço e  faz com  que um genuíno critério "pastoral" oriente toda a nossa  participação   na missão    evangelizadora da Igreja, que compreende também a promoção  humana e  a incisividade na cultura.

            Trata-se de uma contribuição  a todos os sócios, porque intimamente unido ao critério oratoriano.

            . A descentralização

            Estávamos  convencidos  da urgência de saber encarnar,  com  metodologia flexível,  a identidade comum na diversidade das culturas locais. Essa  é  uma árdua tarefa: exige clareza da identidade na formação , e uma verdadeira sensibilidade e inteligência de discernimento para as diferenças culturais.

            Nós nos sentíamos plenamente de acordo com o P. Voillaume: "Manifesta-se hoje  uma tendência questionar a unidade de uma Congregação  sob o pretexto  de desenvolver as características regionais ou nacionais das fundações. Essa tendência  é ambígua. Legítima enquanto reação  contra o empenho uniforme  de  uma expressão   unívoca de vida religiosa muito dependente de uma única mentalidade, arrisca-se de forma não  menor a pôr em causa uma das características do  Reino de  Deus, que é o fato de situar-se além de toda cultura, na unidade  fraterna do Povo de Deus, que não  deveria conhecer nem fronteiras nem raças".

            Um carisma fechado e inflexível aos valores das culturas esclerosa-se  e marginaliza-se  em relação  ao futuro; mas uma cultura fechada ao  desafio  dos sinais dos tempos, ao intercâmbio com as demais culturas e à transcendência do mistério de Cristo e do seu Espírito, corre o risco de apresentar-se como simples museu do passado ou como interpretação  redutiva da universalidade. Percebe-se aqui o quanto se tornou hoje delicada e empenhativa a atividade formativa no Instituto.

            E,  ao mesmo tempo, percebe-se o quanto seja importante um exercício  da autoridade  adequadamente descentralizado para garantir nas Províncias  e  nos grupos de Províncias homogêneas uma concreta possibilidade de inculturação .

            . A Família Salesiana

            Convencidos  que o Fundador lançara o seu espírito e a sua  missão    mais além  do nosso Instituto, e que para ele deixara em herança  responsabilidades particulares de animação  e coordenação  de muitas forças apostólicas,  consideramos que o cuidado daquela que se chama "Família Salesiana" é um dos  grandes caminhos da nossa renovação .

            A "Família Salesiana" é composta de vários grupos instituídos  (Institutos de vida consagrada, Associações laicais ou movimentos), que partilham - de formas  diferenciadas  - o espírito e a missão   de Dom Bosco. Isso  resulta  um campo vasto e fecundo que vê hoje especiais possibilidades no âmbito do laicato empenhado. Já estamos caminhando decididamente, seguindo as pegadas do Fundador,  e queremos intensificar e aperfeiçoar essa opção  no  próximo  Capítulo Geral  24 (1996): "Salesianos e leigos: comunhão  e participação  no espírito  e na missão   de Dom Bosco".

Urgência de concretitude metodológica

            A releitura fundacional foi, em si mesma, uma intensa e não  fácil  busca da  nossa  identidade carismática. Ficamos contentes pelo que se fez  e  disso agradecemos ao Senhor.

            Devemos  acrescentar, porém, que essa tão  longa releitura não   fechou  o período de busca: absolutamente. Ou melhor, abriu - ela mesma - uma modalidade de  busca  ainda mais acelerada e intensa. É como se a  releitura  fundacional tivesse desencadeado todas as energias a disposição  para uma maior  significatividade e criatividade apostólica.

            Não , portanto, uma leitura terminada e já concluída, mas uma espécie  de profecia que relança o processo de renovação  iniciado num duplo trilho de  novidade: o da assimilação  por todos os irmão s em vista da renovação   espiritual das pessoas e das comunidades, e o do envolvimento operativo no  enfrentamento dos desafios da nova evangelização .

            Sabendo com mais clareza e segurança "quem" somos hoje na Igreja  (=releitura fundacional), sentimo-nos interpelados enquanto portadores de um  "carisma de atualidade". Isso exige a especial capacidade metodológica de  projetação  e de ação . O caminho que vai da identidade carismática à atualização   da missão    hoje (da ortodoxia à ortopraxis) é muito complexo. Aqui  se  concentra todo o grande problema pastoral da Igreja, "novo ardor, nova metolodogia,  novas expressões", capacidade de projetação , seriedade da revisão  .

            Quanto  mais clara for a própria identidade de consagrados,  tanto  mais exigente será a busca de uma dinâmica atualizada do carisma.

            É  por  isso  que o nosso primeiro Capítulo Geral  "ordinário"  de  1990 (CG23), depois dos "Especiais" para a releitura da identidade, teve como preocupação  fazer reviver a missão   de Dom Bosco hoje para "educar os jovens à fé".

            Percebemos  que  a estrada é longa e com inúmeras incógnitas,  e  que  a constância  nesse caminho pastoral será a melhor comprovação  da  autenticidade da releitura fundacional.

            Sentimos a urgência de promover todo um setor de reflexão  teológica  que vá  mais além das disciplinas da fé fundamentais e clássicas. Trata-se  de  um tipo de "teologia pastoral", que se dobre sobre a vida real entrando em diálogo  também com as ciências humanas (históricas,  antropológicas,  filosóficas, sociológicas,  pedagógicas, políticas, etc.), levando solidamente em conta  as orientações do Magistério que acompanham a praxe eclesial animada pelo Espírito  do Senhor: essa praxe também precede de per si a reflexão  científica.  Uma mentalidade pastoral precisa de muitas contribuições: ao lado da reflexão  teológica de caráter bíblico, histórico, dogmático e litúrgico, deve saber desenvolver uma apropriada metodologia de abordagem, fruto da reflexão  pedagógica e metodológica que comporta estratégia de ação , estudo e programação  de  tempos, modos,  itinerário, meios, ou seja, elaboração  de projetos nos quais se  passe de uma situação  desafiadora a uma solução  positiva como meta a qual se tende.

            Quem  vive em missão   apostólica sente urgência de qualificar sempre  melhor a sua mentalidade pastoral; olha com atenção  para o nascimento de centros de séria "teologia pastoral": teologia "particular", que não  pretende  elevar-se  como única interpretação  do todo, mas que ilumina a praxe. Ela  "insere-se na  vasta  área teológica como parte vital e importante, não , porém,  como  um todo  ou como único critério válido do todo. A 'pastoral' não  procura mudar  a formalidade da teologia; sobretudo, não  deve mudá-la quando volta sua  atenção  e reflexão  para algo de concreto, urgentemente vital. Se a urgência de  reflexão  é precisamente teológica, ou seja, polarizada pela revelação  e pela luz do mistério de Cristo sob a orientação  do Magistério, seria um grave erro  privá-la  (como infelizmente aconteceu alguma vez) dessa sua conatural  polarização , substituindo-a  por uma ótica horizontalista que pretendesse manipular  a  seu prazer a interpretação  do Cristianismo".

            A  nossa leitura fundacional levou-nos, assim, a rever e renovar  também as  estruturas acadêmicas da nossa Universidade Pontifícia, para que  tivessem maior proponibilidade pastoral. Garantindo sempre uma séria reflexão   teológica,  porque é justamente no âmbito de certo entusiasmo dito "pastoral" que  se corre também o risco de entrar por estradas não  justas, desvinculando-se pouco a pouco da autenticidade do carisma.

Animação  e governo

            A  concretitude  metodológica em vista de ação  apostólica  atualizada  e mais incisiva fez surgir em primeiro plano a indispensabilidade de um  empenho de  formação  permanente para todos os irmão s: assumir com clareza a  releitura fundacional e estimular cada comunidade a uma capacidade de projetação  concreta para a nova evangelização .

            Esse amplo empenho mudou o estilo do exercício da autoridade no governo: o  segredo  desse exercício é a competência na animação .  Quantas  iniciativas surgiram  a respeito! não  se trata de trabalho simples nem a breve termo,  mas absolutamente indispensável; sem ele a releitura fundacional termina na biblioteca.

            Constatou-se, assim, que nesta hora de profundas mudanças, o conceito de "formação " tem o seu significado fundamental e prioritário ("princeps analogatum") na formação  permanente, que toda casa religiosa autêntica torna-se  centro  de formação  e que a formação  inicial deve voltar-se para a  permanente  a fim de preparar os formandos para serem sujeitos capazes e empenhados no embate com os variados e perseguidos desafios do futuro cultural e eclesial.

            A mudança epocal chama todos os religiosos a se sentirem de certa  forma inscritos num "segundo noviciado" para que renovem a própria profissão   religiosa segundo a releitura pós-conciliar.

            Com fidelidade ao espírito estimula-se a criatividade na missão   com sensibilidade pela multiformidade das situações e levando o governo a se estruturar  e  caminhar em vista de um "pluralismo na unidade" e de uma  "unidade  no pluralismo".

Uma visita do Espírito do Senhor

            Estávamos e estamos convencidos - como já disse - que o Concílio Vaticano II foi uma visita do Espírito do Senhor à sua Igreja; ele veio provocar  um salto  de qualidade em toda a pastoral, partindo da identidade do mistério  da Igreja,  de suas relações com o mundo e de sua presença de fermento na  história.

            Preparamo-nos  para a nossa releitura fundacional nesse clima de  Pentecostes.  Tivemos, sem dúvidas, lentidões, resíduos pré-conciliares, miopias  e temores  que  prolongaram muito a releitura; quem sabe ainda ficaram cá  e  lá algumas zonas escuras a serem eliminadas em harmonia com o conjunto;  consideramos, porém, com simplicidade de fé, que todo o trabalho feito não  se poderia explicar sem a luz, a criatividade,  a visão   de futuro próprios de uma especial presença do Espírito do Senhor. Olhando para trás, relendo as Constituições renovadas, observando o desenvolvimento da vida do Instituto, suas transformações  e sua vitalidade em todos os continentes, cremos que o  Espírito  Santo, com  a intervenção  materna de Maria, presenteou-nos com lentes  apropriadas  e límpidas para bem reler as nossas origens e relançar-nos para o futuro.

            Sentimo-nos no Povo de Deus, chamados pelo Espírito a colaborar, através de  nossa missão   específica, no laborioso caminho eclesial em direção  ao  terceiro milênio.

Temos uma "carta de identidade" válida e atualizada

            Caros irmão s, agradeçamos e exultemos. O Espírito do Senhor nos iluminou e acompanhou; indicou-nos a via mestra; enriqueceu-nos com um tesouro de vida; tirou-nos das penas da insegurança e dos desvios e garantiu-nos a nossa  identidade no Povo de Deus; mas, justamente por isso, abriu-nos um imenso campo de trabalho,  onde se deve buscar, labutar, criar, profetizar aquele espírito  de iniciativa  e  de originalidade que caracterizaram as origens  apostólicas  da nossa  missão  . Maria nos guie, através da nossa releitura fundacional, ao  relançamento do carisma de Dom Bosco em direção  às imensas possibilidades e  esperanças do terceiro milênio.

            Com  Mamãe  Margarida olhemos para o futuro com intuição   e  fecundidade maternas.

            Com votos de comprometimento.

            Cordialmente,

P. Egídio Viganò