Rm 8, 28-39; Sl 27,1.4.5.7.8.; Jo 15,9-15
Homilia na celebração fúnebre do P. Pedro Brocardo
Reunimo-nos novamente no coração da Casa Geral, a igreja da Comunidade, para oferecer a Deus o sacrifício agradável do seu Filho com o de um de nossos irmãos. Hoje o Senhor quis unir plenamente a si o nosso caríssimo P. Pedro Brocardo, a quem consagrara desde o batismo para fazê-lo entrar numa aliança especial de amor através da profissão de vida salesiana, tornando-o participante também do seu único e sumo sacerdócio.
Queremos apresentar nossas condolências à família, à irmã Irma e ao irmão Ettore aqui presentes, mas também à irmã Giuseppina, enferma, e a todos os parentes. Acompanhamos-vos com o nosso reconhecimento pelo dom que nos fizestes em vosso irmão Pedro, e com a oração de sufrágio por ele e de consolação por todos vós.
Ontem à noite, após o jantar, chegou improvisamente uma chamada da comunidade das Filhas dos Sagrados Corações que cuidam da enfermaria da UPS, para dizer-nos que o P. Brocardo estava mal, que o seu coração dava sinais de alarme. O tempo foi suficiente apenas para estarmos próximos enquanto fazia a sua despedida deste mundo e passava à casa do Pai. Uma morte serena, como fora a sua vida. Uma passagem tranqüila à eternidade, preparada desde o início da sua existência. Também nisso foi afortunado e abençoado.
Procurei ler a história pessoal do P. Pedro Brocardo – pelo menos no que pude conhecer – à luz da Palavra de Deus e foi-me muito estimulante contemplar quantos textos destinavam-se à sua vida, ou melhor, quanto ela se adaptava à palavra de Deus, como se não quisesse ter outro programa de vida que a sua identificação com o Evangelho. Falando freqüentemente com ele, podia-se perceber facilmente como lhe fosse congenial o seu processo de “cristificação” assim como é descrito pela carta aos Efésios, que fala dos carismas e dos ministérios orientados à construção do corpo de Cristo e precisa: “até chegarmos ao estado de homem perfeito, dignos da infinita grandeza de Cristo. Então, não seremos mais como crianças agitadas por uma nova idéia, carregados aqui e ali pelo vento... Pelo contrário, viveremos na verdade e no amor, para crescer continuamente e para aproximar-nos sempre mais de Cristo” (4,13b-14.15).
Deve-se supor que essa fina sensibilidade espiritual seja fruto da educação recebida em casa dos pais, que fizeram germinar duas estupendas vocações salesianas e outras três de leigos de forte identidade cristã. Certamente a formação salesiana, a qualificação teológica e as atribuições de responsabilidade desenvolvidas como professor, formador e diretor foram outros dinamismos que vieram a configurar a rica e atraente personalidade do P. Pedro.
As leituras que escolhi para esta eucaristia querem ser uma vista de olhos sobre o seu perfil espiritual e uma proposta válida para nós, justamente porque palavra de Deus. Embora diversas entre si pela precedência e pelos contextos, associam-se ao redor de um único tema: a confiança no amor de Deus, que se manifestou na salvação operada pelo seu Filho, que nos fez passar da condição de servos à de amigos, comensais e filhos adotivos de Deus, que nos torna capazes de enfrentar e triunfar plenamente sobre todas as provas e tentações, sobre todas as dificuldades externas e internas da vida humana, cristã e apostólica. Nenhuma força e nenhum acontecimento podem-nos arrancar do amor de Deus, e esse amor torna-se uma energia de bem de tal modo forte que nos leva a ser instrumentos e sinais do seu amor, a amar os outros com o mesmo amor com que fomos amados. Assim, o trecho da carta aos Romanos e o do evangelho de João que foram proclamados iluminam a vida do P. Brocardo e projetam a nossa.
A paternidade e a fraternidade do P. Pedro, tão estimado por todos – baste pensar em tantos de seus ex-alunos da Crocetta que passavam para cumprimentá-lo cheios de belas recordações – encontram a sua fonte nessa experiência fundamental, insubstituível para o desenvolvimento da pessoa e o seu aperfeiçoamento, isto é, sentir-se profundamente aceito e amado sem condições. Eis a força maior da vida!
Para além de qualquer experiência, também a mais triste, Deus “ilumina a face de cada um de nós”. É uma garantia de amor que cobre a vida de todas as pessoas, que deve ser, porém, mediada através da acolhida, da bondade, da ternura, da estima de quantos nos querem bem. O amor de Deus, porém, tornou-se visível, crível e eficaz em Cristo. A página de Paulo na carta aos Romanos é canto de triunfo do amor de Deus sobre toda negatividade da história. Um amor que se manifestou de modo supremo no dom do Filho e na alegria da Páscoa, raiz da nossa salvação. Essa é a fonte da união absoluta entre o fiel e o amor de Cristo. Mesmo as energias demoníacas hostis ao homem devem deter-se diante dessa intimidade de amor entre o homem amado e redimido e o seu Deus. Se for verdade que o sofrimento, sobretudo o que é fruto do egoísmo, continua sendo hoje a pedra de escândalo para a fé e razão do ateísmo, para aqueles que amam, porque se sentiram previamente amados, porém, “tudo concorre para o seu bem” e nada nem ninguém os poderá arrancar do amor de Deus. Todo dia, ou melhor, todo instante, é novo, tocado como é pelo amor de um Deus eterno.
Esse é o Padre Brocardo que conhecemos, que podia responder fazendo suas as palavras do salmista: “O Senhor é minha luz e minha salvação, de quem terei medo?... Uma só coisa pedi ao Senhor, e só ela eu desejo: habitar toda a minha vida na casa do Senhor, para gozar da bondade do Senhor, e vigiar no seu templo.... Penso novamente na tua palavra: ‘Vem a mim’. Eis-me aqui, venho a ti, senhor” (27,1.4.8).
Hoje P. Pedro repensou e novamente escutou a palavra do seu Deus: “Vem a mim”, e ele, que tinha vivido feliz por habitar na casa do Senhor, de agora em diante poderá “gozar plenamente da bondade do Senhor”.
Esse é o fruto de ter sido um ramo unido à Videira através do amor e da fidelidade que se faz sacrifício, segundo a dinâmica do amor, que nos traz salvação e nos enche de alegria. Exprime-o João com um texto dos mais densos e eloqüentes do discurso da última ceia: “Como o Pai me amou, assim também eu vos amei: permanecei no meu amor! Se puserdes em prática os meus mandamentos, estareis enraizados no meu amor... Digo-vos isto para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja perfeita”. Jesus não pede tanto para ser amado, mas, sobretudo para acolher o amor que vem dele e de seu Pai e comunicá-lo a outros. Parece um paradoxo, mas é profundamente verdadeiro: para o homem, amar a Deus significa antes de tudo deixar-se amar por ele, porque amar a Deus jamais é iniciativa do homem, mas sempre resposta a um dom.
Dizia que, preparando a homilia, a primeira coisa que fiz foi escolher os textos que melhor pudessem iluminar a figura do P. Brocardo e projetar a nossa. Foi assim que encontrei nestes trechos alguns traços que me pareceram o seu programa de vida.
Certamente, isso tudo vivido com uma forte identidade salesiana. Para ele, a forma de ser homem, de ser cristão, de ser religioso passava necessariamente através da experiência, do carisma, do espírito, da espiritualidade, da missão de Dom Bosco, de que o P. Pedro se sentiu e foi seu digníssimo filho.
Admirava tanto a Dom Bosco que não duvidou em escrever traços de sua vida num livro que se tornou estimadíssimo pelos salesianos e também por não salesianos: Dom Bosco profundamente homem – profundamente santo. Nele diz: “Grande de vida natural, ou seja, homem entre os homens, ou mais, tão profundamente homem que ‘o ordinário’ pareceu a muitos contemporâneos velar o ‘extraordinário’ que havia nele. Grande em humanidade, Dom Bosco foi igualmente grande de vida sobrenatural, ou melhor, grandíssimo, porque a Graça desposou-se com qualidades humanas superiores às dos comuns mortais e encontrou nele correspondência plena e total, melhor ainda, heróica” (p. 19).
Mesmo sendo tentado a respigar alguns trechos desse seu volume, no qual melhor se descobre a imagem que ele tinha de Dom Bosco, limito-me a ler o retrato que faz dele no final da introdução: “Dissemos que a sua intimidade com Deus – escreve sobre Dom Bosco – ficou muitas vezes, como em outros piemonteses, ou melhor, de regra, um segredo impenetrável. Algo, porém, se podia ver dela, intuía-se sobre ela. Da sua existência mágica algo brilhava no seu rosto, transparecia de seus olhos penetrantíssimos, do seu só esboçado e permanente sorriso; algo de sobre-humano exalava de todo o seu comportamento, da sua calma soberana de um homem extraordinariamente operoso”.
Perdemos, com o P. Brocardo, um representante da segunda geração de salesianos. Sentiremos sua falta. Justamente por isso tem mais valor o testamento espiritual salesiano que nos deixa o P. Pedro: a sua contemplação de Dom Bosco, belo comentário, talvez o mais elaborado do art. 21 das Constituições que no-lo apresentam como pai e modelo, justamente porque “esplêndida harmonia de natureza e graça”, como se a sua última palavra fosse esta: “Caríssimos irmãos, estudai-o, admirai-o, imitai-o”. A nós, a tarefa sagrada de fazer tesouro dela e fazê-la frutificar.
Padre Pedro, obrigado pela tua bondade, que te levava a pensar bem de todos e a falar bem de todos. Obrigado pela tua paternidade, que era fruto da tua experiência espiritual salesiana. Obrigado pela tua simplicidade e pelo teu fino senso de humor, que te levava a apreciar a vida e a não amar os profetas de desventuras. Obrigado pelo teu imenso amor a Dom Bosco e à Congregação, que te levava a vê-la renovada espiritualidade, atualizada no seu patrimônio educativo, santa.
Padre Pascual Chávez V.
Roma – Casa Geral, 21 de novembro de 2003