Roma, junho de 2013
Caríssimos irmãos e irmãs da Família Salesiana,
após dedicar o primeiro ano do triênio de preparação ao Bicentenário de Nascimento de Dom Bosco a conhecer a sua figura histórica e o segundo ano a colher nele os traços fisionômicos do educador e a atualizar a sua práxis educativa, queremos, neste terceiro e último ano, ir à fonte do seu carisma para apropriar-nos da sua espiritualidade.
A espiritualidade cristã tem como centro a caridade, ou seja, a mesma vida de Deus, que em sua realidade mais profunda é Ágape, Caridade, Amor. A espiritualidade salesiana não difere da espiritualidade cristã: como esta se concentra na caridade. Trata-se neste caso da “caridade pastoral”, ou seja, daquela caridade que nos impele a buscar “a glória de Deus e a salvação das almas”: «Caritas Christi urget nos».
Como todos os grandes santos fundadores viveu Dom Bosco a vida cristã com uma ardente caridade e contemplou o Senhor Jesus segundo uma perspectiva mui especial: a do carisma que Deus lhe confiou, isto é, a missão juvenil. A “caridade salesiana” é caridade pastoral, porque busca a salvação das almas; e é caridade educativa, porque encontra na educação o recurso que permite ajudar os jovens a desenvolver todas as suas potencialidades de bem. Deste modo, podem os jovens crescer quais honestos cidadãos, bons cristãos, futuros habitantes do céu.
Convido-os pois, caros irmãos e irmãs, membros todos da Família Salesiana, a beberem das fontes da espiritualidade de Dom Bosco, ou seja, da sua caridade educativo-pastoral, que tem seu modelo no Cristo Bom Pastor e encontra a sua oração e programa de vida, no lema de Dom Bosco «Da mihi animas, cetera tolle». Poderemos assim descobrir um “Dom Bosco místico”, em cuja experiência espiritual, se alicerça o nosso modo de viver hoje a espiritualidade salesiana, na diversidade das vocações que nEle se inspiram.
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Conhecer a vida de Dom Bosco e a sua pedagogia não quer dizer ainda compreender o segredo mais profundo e a razão definitiva da sua surpreendente atualidade. Não basta conhecer os aspectos da vida de Dom Bosco, das suas atividades e também do seu método educativo. Na base de tudo, qual fonte de fecundidade da sua ação e da sua atualidade, há qualquer coisa que com frequência se nos foge também a nós, seus filhos e filhas, isto é: a profunda vida interior, aquela que se poderia chamar de sua “familiaridade” com Deus. Quem sabe se não é exatamente isto o melhor que dele possuímos para podê-lo invocar, imitar, seguir, para encontrar-nos com Cristo e fazer com que os Jovens O encontrem a Ele.
Hoje poder-se-ia traçar o perfil espiritual de Dom Bosco, partindo das impressões expressas por seus primeiros colaboradores, passando em seguida ao livro escrito pelo P. Eugênio Céria, “Dom Bosco com Deus”, que foi a primeira tentativa de síntese, em nível divulgativo, da sua espiritualidade, confrontando em seguida as várias releituras da experiência espiritual de Dom Bosco feitas pelos seus Sucessores, para enfim chegar àquelas pesquisas que determinaram uma guinada no estudo do modo de viver a fé e a religião pelo mesmo Dom Bosco.
Estes últimos estudos revelam-se mais fielmente aderentes às fontes, abertos à consideração das várias visões espirituais que influíram em Dom Bosco ou que com ele tiveram contatos (S. Francisco de Sales, Santo Inácio, Santo Afonso Maria de Ligório, São Vicente de Paulo, São Filipe Néri, ….), disponíveis a reconhecer que a sua foi entretanto uma experiência original, genial. Seria interessante dispor, neste momento, de um novo perfil espiritual de Dom Bosco, isto é, uma nova hagiografia qual a entende hoje a teologia espiritual.
Dom Bosco “homem espiritual” chamou a atenção de Walter Nigg, pastor luterano e professor de História da Igreja na Universidade de Zurique, que assim escrevia: “Apresentar sua figura, subestimando o fato de que nos achamos perante um santo, seria como dizer uma só meia-verdade. A categoria de santo deve preceder a de educador. Qualquer outra classificação falsearia a hierarquia dos valores. Por outro lado, o santo é o homem em que o natural se abisma no sobrenatural; e o sobrenatural está em Dom Bosco de modo notável [….] Para nós não há dúvidas: o verdadeiro santo da Itália moderna é Dom Bosco”[1].
Nos mesmos anos 80s do século passado, a opinião era compartilhada pelo teólogo P. Dominique Chenu OP. À pergunta de um jornalista que lhe pedia indicasse alguns santos portadores de uma mensagem de atualidade para os novos tempos, respondeu: “Agrada-me recordar, antes de tudo, aquele que se antecipou ao Concílio de um século, Dom Bosco. Ele é já, profeticamente, um modelo de santidade por sua obra, que é ruptura com um modo de pensar e de crer dos seus contemporâneos”.
Em cada estação e contexto cultural trata-se de responder a estas perguntas:
- que recebeu Dom Bosco do ambiente em que viveu? em que medida é ele devedor ao contexto, à família, à escola, à igreja, à mentalidade do seu tempo?
- como reagiu? que deu ao seu tempo e ao seu ambiente?
- como influiu nos tempos subsequentes?
- como o viram os seus contemporâneos: salesianos, povo, igreja, leigos? como o entenderam as sucessivas gerações?
- que aspectos de sua santidade se nos revelam hoje mais interessantes?
- como traduzir no hoje, sem recopiar, o modo como Dom Bosco em seu tempo interpretou o Evangelho de Cristo?
Estas as perguntas a que deveria responder uma nova hagiografia de Dom Bosco. Não se trata de chegar à identificação de um perfil de Dom Bosco definitivo e sempre válido, mas de evidenciar-lhe um, que seja adequado à nossa época. É evidente que de cada santo se sublinham os aspectos que interessam por sua atualidade e se descuram os que se julgam desnecessários num exato momento histórico ou que se julgam irrelevantes para caracterizar-lhe a figura.
Os santos na verdade são uma resposta à necessidade espiritual de uma geração, a ilustração eminente de quanto os cristãos de uma época entendem por santidade. Evidentemente a desejada imitação de um santo não pode ser senão “proporcional” à referência absoluta, que é Jesus de Nazaré. De fato, cada cristão, na concreteza da sua situação, é chamado a personificar, de maneira própria, a universal figura de Jesus Cristo, sem obviamente exauri-la. Os santos oferecem um caminho concreto e válido para essa identificação com o Senhor Jesus.
No comento à Estréia que proporei à FS, estes serão os três conteúdos fundamentais que desenvolverei. Depois de fazer isso, ali apresentarei alguns empenhos concretos que já antecipo aqui na sua completeza.
1. Experiência espiritual de Dom Bosco
A espiritualidade é um modo caraterístico de sentir a santidade cristã e de a ela tender; é um peculiar modo de ordenar a própria vida na aquisição da perfeição cristã e na participação de um especial carisma. Em outras palavras, é a vida cristã uma ação conjunta com Deus, que pressupõe a Fé.
A espiritualidade salesiana compõe-se de vários elementos: é um estilo de vida, oração, trabalho, relacionamentos interpessoais; uma forma de vida comunitária; uma missão educativo-pastoral baseada num patrimônio pedagógico; uma metodologia formativa; um conjunto de valores e atitudes característicos; uma peculiar atenção à Igreja e à Sociedade através de setores específicos de empenho; uma herança histórica de documentação e escritos; uma linguagem característica; uma série típica de estruturas e obras; um calendário com festas e ocorrências próprias; .... .
O ponto de partida da experiência espiritual de Dom Bosco é “a glória de Deus e a salvação das almas”: e isto foi por ele formulado em seu programa de vida “da mihi animas, cetera tolle». A raiz profunda de tal experiência é a união com Deus como expressão da vida teologal, que se desenvolve com a Fé, a Esperança e a Caridade, e do espírito de autêntica piedade. Essa experiência se traduz em ações visíveis; sem as obras a Fé é morta e sem a Fé as obras são vazias. Por fim, ela tem como ponto de chegada a santidade: a santidade é possível a todos; depende da nossa cooperação com a graça, que para isso é dada a todos.
A nossa espiritualidade corre o risco de esvair-se, porque os tempos mudaram e por vezes a vivemos superficialmente. Para atualizá-la devemos repartir de Dom Bosco, da sua experiência espiritual, e do Sistema Preventivo. Os clérigos do tempo de Dom Bosco davam-se conta da conjuntura e religiosos é que não queriam ser: mas viam-se fascinados por ele. Os jovens precisam de “testemunhas”, escreveu Paulo VI. São necessários "homens espirituais", homens de Fé, sensíveis às coisas de Deus e prontos à obediência religiosa na busca do melhor. Não é a novidade que nos torna livres, mas a verdade; a verdade não pode ser moda, superficialidade, improvisação: «Veritas liberabit vos».
2. Centro e síntese da espiritualidade salesiana: a caridade pastoral
Há uma expressão de S. Francisco de Sales que diz: “A pessoa é a perfeição do universo; o amor é a perfeição da pessoa; a caridade é a perfeição do amor”.[2] É' uma visão universal que dispõe em escala ascendente quatro modos de existir: o ser, o ser pessoa, o amor como forma superior a qualquer outra expressão, a caridade como expressão máxima do amor.
A caridade é o centro de toda a espiritualidade cristã: não é só o primeiro mandamento, é também a fonte da energia para progredir. O acender-se da caridade em nós é um mistério e uma graça; não advém de iniciativa humana; é participação da vida divina e efeito da presença do Espírito. Não poderíamos amar a Deus se Ele não nos tivesse amado primeiro, fazendo-nos ouvir, dando-nos o gosto e o desejo, a inteligência e a vontade, de a isso responder. Não poderíamos sequer amar o próximo e nele ver a imagem de Deus, se não fizéssemos a experiência pessoal do amor de Deus.
A caridade pastoral é uma expressão da caridade, que tem muitas manifestações: o amor materno, o amor conjugal, a compaixão, a misericórdia, o perdão, .... Indica um modo específico de caridade. Evoca a figura de Jesus Bom Pastor, não somente pelas modalidades do seu operar – bondade, busca de quem se perdeu, diálogo, perdão – mas também e sobretudo pela substância do seu ministério: revelar Deus a cada pessoa, homem ou mulher. É mais que evidente a diferença com outras formas de caridade que miram preferencialmente a especiais necessidades das pessoas: saúde, alimento, trabalho. O elemento típico da caridade pastoral é o anúncio do Evangelho, a educação à fé, a formação da comunidade cristã, a fermentação evangélica do ambiente.
A caridade pastoral salesiana tem além disso uma sua característica própria, documentada outrossim pelos inícios da nossa história: “Na noite de 26 de janeiro de 1854 reunimo-nos nos aposentos de Dom Bosco, e nos foi proposto fazer com o auxílio de Deus e de S. Francisco de Sales uma experiência de exercício prático de caridade para com o próximo. .... Desde então foi dado o nome de Salesianos aos que se propuseram ou se propõem fazer esse exercício”.[3] A caridade pastoral é centro e síntese da nossa espiritualidade, que tem seu ponto de partida na experiência espiritual do mesmo Dom Bosco e na sua preocupação pelas almas. Depois de Dom Bosco, os seus Sucessores voltaram a reafirmar a mesma convicção. É interessante o fato que todos se tenham preocupado em repisá-lo com uma convergência que não deixa espaço a dúvidas. Ela se exprime no lema “Da mihi animas, cetera tolle».
3. Espiritualidade salesiana para todas as vocações
Se é verdade que a espiritualidade cristã possui elementos comuns e válidos para todas as vocações, é também verdade que ela se vive com peculiares diferenças e especificidades, segundo o próprio estado de vida. Assim, o ministério presbiteral, a vida consagrada, os fiéis leigos, a família, os jovens, os idosos… têm um seu modo típico de viver a experiência espiritual. O mesmo vale para a espiritualidade salesiana.
Na “Carta de Identidade Carismática da Família Salesiana” foram individuados os traços espirituais característicos de todos os seus grupos. Ressalta-se isso sobretudo na Terceira Parte do documento. Por outro lado, os vários grupos têm – legitimamente, por sua origem e desenvolvimento – histórias e características espirituais próprias que se devem conhecer e que constituem uma riqueza para toda a Família.
Com o passar do tempo desenvolveu-se também uma espiritualidade juvenil salesiana. Pensemos – além das três biografias dos jovens Miguel Magone, Domingos Sávio e Francisco Besucco, escritas por Dom Bosco – nas páginas que lhes dirige através de “O Jovem Instruído”, aos mesmos meninos, às Companhias, …. Seria interessante conhecer no tempo os desenvolvimentos da espiritualidade juvenil salesiana, até a chegada dos anos noventas, quando se deu outrossim uma formulação autorizada dessa mesma espiritualidade, também através do Movimento Juvenil Salesiano (MJS). Há que aprofundar o que e como propor – aos jovens não crentes, indiferentes ou pertencentes a outras religiões – elementos de espiritualidade salesiana juvenil.
Os grupos da FS envolvem numerosos leigos na sua missão. Temos consciência de que não se dará nenhum envolvimento pleno se não se atuar igualmente a partilha do mesmo espírito. Comunicar a espiritualidade salesiana aos leigos, corresponsáveis conosco pela ação educativo-pastoral, torna-se assim um empenho fundamental. Os Salesianos, como também outros Grupos da FS, fizeram um trabalho explícito de formulação de uma espiritualidade laical salesiana em seu CG24.[4] Os Grupos laicais da FS constituem certamente uma fonte de inspiração para tal espiritualidade.
Depois que nos tornamos maiormente conscientes de que não pode existir pastoral juvenil sem pastoral familiar, estamo-nos agora a interrogar sobre ‘qual espiritualidade familiar salesiana elaborar e propor’. Há experiências de famílias que se inspiram em Dom Bosco. Aqui o caminho está ainda em seus inícios. Mas é uma estrada que nos ajuda a desenvolver, além da missão juvenil, a nossa missão popular.
4. Empenhos para a Família salesiana
4.1. Esforcemo-nos por aprofundar qual foi a experiência espiritual de Dom Bosco, o seu perfil espiritual, para descobrir o “Dom Bosco místico”; poderemos assim imitá-lo, vivendo uma experiência espiritual com identidade carismática. Se não nos apropriarmos da experiência espiritual vivida por Dom Bosco, não poderemos ter consciência da nossa identidade espiritual salesiana. Só se o fizermos, seremos discípulos e apóstolos do Senhor Jesus, tendo a Dom Bosco por modelo e mestre de vida espiritual. A espiritualidade salesiana, reinterpretada e enriquecida pela experiência espiritual da Igreja do Pós-Concílio e pela reflexão da teologia espiritual de hoje, propõe-nos um caminho espiritual que conduz à santidade. Reconheçamos que a espiritualidade salesiana é uma verdadeira e completa espiritualidade: ela abeberou-se na história da espiritualidade cristã, sobretudo em São Francisco de Sales; tem sua fonte na peculiaridade e originalidade da experiência de Dom Bosco, enriqueceu-se com a experiência eclesial; e chegou à releitura e à madura síntese de hoje.
4.2. Vivamos o centro e a síntese da espiritualidade salesiana, que é a caridade pastoral. Esta foi vivida por Dom Bosco como busca d’«a glória de Deus e a salvação das almas», tornando-se para ele oração e programa de vida no “Da mihi animas, cetera tolle». É uma caridade que precisa alimentar-se da oração e nela fundamentar-se, fitando o Coração de Cristo, imitando o Bom Pastor, meditando a Sagrada Escritura, vivendo a Eucaristia, abrindo espaço à oração pessoal, assumindo a mentalidade do serviço aos jovens. É uma caridade que se traduz e se torna visível em gestos concretos de vizinhança, afeto, trabalho, dedicação. Assumimos o Sistema Preventivo não só como proposta de evangelização e metodologia pedagógica mas igualmente como experiência espiritual: ele encontra a sua fonte na caridade de Deus que se antecede a toda criatura com sua Providência, acompanha-a com a sua presença e salva-a doando a vida; dispõe-nos a acolher Deus nos jovens, chamando-nos a servi-Lo neles, reconhecendo-lhes a dignidade, renovando a confiança em seus recursos de bem e educando-os à plenitude de vida.
4.3. Comuniquemos a proposta da espiritualidade salesiana, segundo a diversidade das vocações, especialmente aos jovens, aos leigos envolvidos na missão de Dom Bosco, às famílias. A espiritualidade salesiana precisa ser vivida segundo a vocação que cada um recebeu de Deus. Reconheçamos os traços espirituais comuns aos vários grupos da FS, indicados na “Carta de Identidade”; façamos conhecer as testemunhas da santidade salesiana; invoquemos a intercessão dos nossos Bem-Aventurados, Veneráveis e Servos de Deus, pedindo outrossim a graça da sua canonização. Ofereçamos aos jovens que acompanhamos, a espiritualidade juvenil salesiana. Proponhamos a espiritualidade salesiana aos leigos empenhados na partilha da missão de Dom Bosco. No que diz respeito à pastoral familiar, indiquemos às famílias uma espiritualidade adaptada à sua situação. Convidemos por fim a fazer experiência espiritual também jovens, leigos e famílias das nossas comunidades educativo-pastorais ou dos nossos grupos e associações que pertençam a outras religiões ou que se encontrem em situação de indiferença perante Deus; também para eles é possível a experiência espiritual como espaço para a interioridade, para o silêncio, para o diálogo com a própria consciência, para a abertura ao transcendente.
4.4. Leiamos alguns textos de Dom Bosco, textos que possamos considerar fontes da espiritualidade salesiana. Proponho-lhes uma coletânea de escritos espirituais de Dom Bosco, em que Ele aparece como um verdadeiro mestre de vida espiritual.[5] Poderemos assim servir-nos de páginas que nos falam com imediatez do cotidiano espiritual salesiano e da experiência que cada um pretenda assumir.
P. Pascual Chávez Villanueva SDB
Reitor-Mor